O projecto está a ficar bom! Agora vamos meter uma roda de carroça lá dentro.
Que concessões estamos dispostos a fazer em relação aos princípios em que acreditamos. Onde traçamos o limite daquilo que fazemos? E que razões sustentam esses limites?
Ao longo da vida profissional estamos destinados a enfrentar o dilema de contemporizar entre o que julgamos certo e o que sabemos ser viável. O autor do blogue Life of an Architect enuncia este problema na sua lista de razões para não ser arquitecto onde refere, com uma boa dose de ironia, que «os ideais não servem para nada». Aqui fica uma passagem da sua reflexão:
Os teus clientes contratam-te para lhes dares o produto que eles querem, não necessariamente aquilo que gostarias de fazer. (…) A maior parte dos projectos são desenvolvidos pelo lucro e apesar ser verdade que um bom design equivale a boas soluções, o que por sua vez se traduz numa forma de sucesso mensurável, na prática toda a gente quer mais por menos. Vão ocorrer situações em que te será exigido produzir algo que sabes ser terrível e a coisa absolutamente errada a fazer. Baseado na tua necessidade de trabalho, ou na força da tua personalidade, vais fazer concessões que te farão morrer por dentro.
Nos tempos de faculdade assisti a uma apresentação de projectos de uma equipa de arquitectos jovens. Tinham-se formado havia poucos anos e iniciado a sua própria firma. Aos olhos dos estudantes da academia eles pareciam estar a viver o sonho, lutando para conquistar o seu lugar no mundo real da prática da arquitectura.
Deram-nos a conhecer diversos trabalhos de desenho respeitável. E então contaram a história de um projecto particular que haviam feito para um restaurante. O projecto estava a chegar ao fim, o cliente satisfeito, tudo corria bem. E eis que o cliente surge com um requisito final: uma grande roda de carroça adornaria a entrada do estabelecimento.
A coisa tornou-se motivo de grande discussão. Equipa e cliente extremaram posições e tudo resvalou para uma questão de vida ou morte. Aceitem a roda de carroça ou percam a comissão, nada menos do que isto. Os arquitectos permaneceram firmes e recusaram-se a aceitar tal exigência; e assim foi. O trabalho ficou perdido.
Todos estamos destinados a encontrar as nossas rodas de carroça no decurso da vida profissional. Quando uma tal metáfora assume a forma literal de uma roda de carroça, esse epítome icónico da rusticidade, suponho que as coisas possam resvalar rapidamente para o drama. Todos temos de traçar uma linha algures e uma roda de carroça parece um bom lugar para o fazer. No entanto, e reconhecendo a decisão corajosa daqueles nossos colegas, tenho vindo ao longo destes anos a reflectir repetidamente naquele episódio.
Os arquitectos não são vendedores. O nosso trabalho constitui uma prestação de serviços, o que traz implícita uma relação contratual com o cliente. Um contrato é isso mesmo, uma aceitação mútua de condições sobre as quais se desenvolve um processo. Quando essas condições não são aceitáveis para uma das partes, seja por que motivo for, desaparecem as bases que sustentavam aquela relação.
O episódio daquele restaurante é isto mesmo, mas a faca da incompatibilidade tem dois gumes. Nem sempre os desentendimentos surgem por imposições do cliente – por vezes o que está em causa é exactamente o oposto: somos nós que argumentamos a favor de soluções que o cliente considera indesejáveis. Nesses momentos devemos ter boas razões para sustentar, com objectividade, o que estamos a defender. Tão nefastos quanto os desejos irracionais do cliente são os devaneios de um projectista que se escuda por detrás da mera intenção formal – algo que, a maioria das vezes, assenta numa espécie de subjectividade que se pretende inquestionável.
Recordo um professor de arquitectura que, tanto quanto sei, desenhou dois projectos na sua carreira. Ambos foram cancelados por «incompatibilidades com o cliente». Estou certo que ele morrerá um herói sem nunca ter metido os pés na lama. Mas se querem a minha opinião, a vida é mais interessante quando enfrentamos aquelas malucas rodas de carroça que andam à solta por aí.
Infelizmente o tempo das rodas de carroça já foi...
ResponderEliminarVivemos hoje um período em que as rodas são de tractor!
E o dilema é simples, coração cheio, ou barriga +- cheia.
É realmente extraordinária a raridade de vezes que o coração e a barriga dos arquitectos se enchem em simultâneo...
Teremos que concluir que haverá aqui um problema, seja ele nosso, ou deles (mercado).
Talvez seja essa a razão pela qual cada vez mais arquitectos viram as costas à arquitectura.
Saudações Daniel.
ResponderEliminarEste post me lembrou uma palestra que assisti sobre o projeto de Palmas, cidade planejada, capital do estado brasileiro do Tocantins, em que os autores do plano urbanístico por muito pouco não abandonaram os planos devido a interferência do então governador de estado que ordenou que a localização do palácio do governo fosse alterada para o local onde hoje se encontra. Por um capricho do rei o palácio se encontra num local descabido e totalmente fora dos planos da equipe de urbanistas. Durma-se com um barulho destes....
Esta história faz-me lembrar a minha infância, quando eu abominava salada de tomate e o meu pai dizia que eram rodas de carroça... - andamos sempre no fio da navalha...
ResponderEliminarJá agora o professor não seria por acaso o Carlos Lameiro (Professor e Doutor)?
São opções, porventura dignas. Por vezes também acho que já engoli a minha dose de sapos vivos...