Largo do Rato, uma questão de fachadas

A aprovação do aditamento ao projecto de arquitectura para o novo edifício do Largo do Rato, da autoria dos arquitectos Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus, apresenta contornos curiosos sobre os quais ninguém parece interessado em reflectir. Se, uma vez mais, se reacendeu momentaneamente a polémica, ficou omissa uma discussão sobre a questão de fundo. Afinal, o que está ali em causa?

Os termos da aprovação do projecto pela Câmara Municipal de Lisboa referem que o aditamento de que foi alvo promoveu um conjunto de alterações, entre as quais podemos encontrar um novo desenho das fachadas, abandonando a “imagem monolítica” e propondo “uma marcação de lajes e vãos menos abstracta”. Resulta assim que não conhecemos já a imagem final do edifício, naturalmente diferente da que foi divulgada publicamente em fase anterior; pesquisar aqui. Querer discutir o projecto nesses termos torna-se assim um exercício especulativo em que se tornará difícil não cair no plano da demagogia.

Se não podemos discutir o projecto, podemos no entanto discutir o processo de que foi alvo, em especial no que respeita aos contornos do procedimento na sua dimensão jurídica. E aqui estamos no território de um conflito recorrente entre a esfera dos direitos privados e dos interesses públicos em presença. É curioso o modo como, em Portugal, parece exercer-se um enorme fervor na defesa do interesse público, por vezes assente em argumentos de validade técnica débil ou pouco verificável, ao mesmo tempo que se aceita com grande facilidade o menosprezo pelo direito dos agentes privados. Falamos, entenda-se, de cidadãos, de empresas, de munícipes. Os motivos para tal fenómeno terão a sua justificação cultural e a sua contextualização é difícil no curto espaço desta reflexão. Mas devemos questionar as razões para tal, em especial porque dos desequilíbrios da gestão desta conflituosidade entre o público e o privado resultam disfunções que podem por em causa o próprio tecido do que entendemos como estado de direito.

Sobre este caso em particular um vereador referiu tratar-se de um projecto ilegal por carecer, nos termos do PDM, de um plano de pormenor. Confesso desconhecer os exactos termos em que o PDM da cidade de Lisboa estabelece a obrigatoriedade da aprovação de um plano de pormenor para aquela zona. Mas é um argumento questionável e demagógico, uma vez que tal obrigatoriedade impende sobre a própria câmara municipal e a validação de restrições à edificação resultantes da vigência de um plano de pormenor obedece a regras legais rígidas e limitadas no tempo. Caso contrário estaríamos perante uma expropriação do direito à edificação de todos os particulares da área de incidência desse plano – ou de qualquer outro – por tempo indeterminado e estabelecido de forma discricionária.

É certo que muitas câmaras o fazem, ou fizeram, no passado, atropelando os termos da própria legislação. Mas tal é tão inaceitável como a violação da lei por parte dos particulares. A autoridade dos agentes do Estado resulta da sua actuação competente, coerente e legal. A discricionariedade, afinal, será sempre uma arma perigosa na mão dos incompetentes.
Não se compreende por isso as queixas veiculadas por diversos vereadores que se opuseram no passado à aprovação do projecto, quanto à acção judicial promovida contra eles pelo requerente. Os eleitos não têm o poder de violar a lei e o agente privado está no seu direito de defender-se judicialmente contra decisões que julgue serem ilegais. São essas as regras do estado de direito. Se tais vereadores estivessem certos da validade das suas decisões, então deviam defendê-las até às últimas consequências em vez de se lamentarem pelo facto de estarem a ser alvo de processo judicial, ao dizer que não é admissível colocar a faca em cima da cabeça de um vereador. Essa faca é a lei e está em cima de todos os envolvidos.

O que resulta de todo este processo é o vazio que pende sobre a câmara de Lisboa quanto a uma visão urbanística para o Largo do Rato, um espaço que a própria câmara reconhece como um lugar hostil e perigoso para o peão. No fundo, estamos perante um episódio sintomático de uma realidade que parece agravar-se à medida que o Estado vai perdendo capacidade económica e técnica para dirigir o planeamento das cidades. Os municípios vão assim a reboque da iniciativa particular e dos seus precedentes, perdendo iniciativa e actuando no contexto de discussões pejadas de demagogia e polémica, com pouco discernimento quanto ao interesse público, à história e aos valores de que deveriam ser os principais defensores e responsáveis.

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