Ao contrário do João Miguel Tavares, esta senhora sabe o que é o dinheiro.
Permitam-me o recurso a uma metáfora futebolística, figura tão recorrente no comentário político. Imagine o João Miguel Tavares – imagine o leitor – que o seu clube de futebol de eleição participa num campeonato que você sabe, à partida, estar todo viciado. Os árbitros estão todos comprados contra si, os adversários estão encharcados em “doping”, a vossa equipa tem menos jogadores à disposição. Isso, no entanto, dirão os comentadores, é “a realidade” inevitável que não vale a pena discutir nem pôr em causa – e, se o fizerem, serão expulsos da competição.
Resta-vos apenas debater qual a táctica que deverão aplicar para procurar não perder os jogos.
Boa sorte…
É um pouco isto que nos dizem também mil e um cronistas que vão pregando o fatalismo moralista da realidade. Exemplo disso é o recente texto de
João Miguel Tavares no Público, repetindo aos quatro ventos o quanto estamos falidos. Pese embora o tom irreverente que lhe é habitual, o texto é mais um exemplar da ignorância típica da “economia do senso comum” com que se vai intoxicando diariamente a opinião pública.
Desagradado com a ginástica negocial que o governo português procurou estabelecer com a Comissão Europeia, o jornalista começa por dizer que
não vale a pena chamar “políticas de direita” à matemática. A matemática não é de esquerda nem de direita – é apenas matemática. Falir não é de esquerda nem de direita – é apenas falir.
Acreditando que a política económica obedece a uma racionalidade ideologicamente neutra – porque os números, supostamente, não têm emoções nem têm ideologia – repete o enunciado da austeridade inevitável. A busca de um caminho político alternativo é, nesse pressuposto, uma “negação da realidade”. E assim conclui João Miguel Tavares:
Negar a realidade é uma deserção ideológica: a esquerda, em vez de se colocar ao serviço daquilo que aí está (como distribuir o dinheiro que temos?), coloca-se ao serviço daquilo que não está (como distribuir o dinheiro que não temos?). Ora, este viver em permanente estado de negação da realidade é uma tragédia para o país. Falimos. Arruinámo-nos. Não temos dinheiro. Estamos de mão estendida. Antes de seguir pelo caminho da esquerda ou da direita, será assim tão difícil começar por admitir isto? Falimos. Fa-li-mos. F-a-l-i-m-o-s.
Falimos?
Como nos lembrava há alguns meses Philippe Legrain, ex-consultor de Durão Barroso na Comissão Europeia e uma das vozes mais críticas do rumo político-económico da União Europeia, os anos da “troika” deixaram Portugal com mais dívida, menos PIB, mais desemprego, mais pobreza e valores históricos de emigração.
No entanto, sendo a nossa situação objectivamente pior em 2015 do que aquela em que nos encontrávamos há quatro anos, por que motivo atingiram então os títulos de dívida pública portuguesa juros recorde, superiores a 10%, nos mesmos mercados que hoje nos financiam a juros inferiores a 3% e até a 2%?
A razão porque os juros baixaram tem explicação fácil. O Banco Central Europeu está a levar a cabo, desde o ano passado, uma gigantesca operação de “quantitative easing”, introduzindo dessa forma uma enorme pressão negativa nos juros de títulos dos países da zona Euro e facultando aos bancos reservas disponíveis para suportar a emissão de novos créditos.
Menos consensual é o motivo por que os juros tanto subiram em 2011. A resposta estará na conjugação perigosa de vários factores. Consideremos, em primeiro lugar, a inactividade das instituições da União, em particular do BCE que só iniciou o seu processo de QE em 2015, sabendo-se que os Estados Unidos o fizeram logo a partir de 2008 e o Reino Unido em 2009.
A isto somou-se o agravamento violento dos “ratings” dos países mais vulneráveis da zona Euro por parte das agências de notação financeira, catapultando a subida vertiginosa dos juros dos seus títulos de dívida. As mesmas agências (Standard & Poor’s, Moody’s, Fitch) que até 2007 asseguravam “rating” triplo-A aos CDO’s tóxicos com que as grandes instituições financeiras de Wall Street quase fizeram colapsar a economia mundial.
Importa dizer que não está em causa ignorar as responsabilidades dos governos que seguiram políticas de expansionismo imprudente, colocando os seus países numa circunstância de perigosa vulnerabilidade. Mas não podemos deixar de nos interrogar sobre o motivo por que o Banco Central Europeu coloca, ainda hoje, nas suas próprias regras, o destino dos países que devia defender, na mão de tais agências financeiras.
Em boa verdade, tivessem as instituições da União agido em defesa das nações e teríamos sido poupados, no passado como no presente, a anos de austeridade empobrecedora e inútil.
Tudo isto, claro está, leva-nos por fim à grande questão que o João Miguel Tavares aflora mas é incapaz de aprofundar: a questão do dinheiro – que temos, que não temos, que define essa “realidade” tremenda que tantos invocam.
É aqui, na dimensão política, não matemática, do dinheiro, que a ignorância do senso comum se torna perigosa. Ignora João Miguel Tavares – como tantos outros comentadores – que vivemos num sistema financeiro em que a esmagadora maioria do “money stock” em circulação (mais de 95%) foi criado pelos bancos através do processo de emissão de crédito – e não pelos bancos centrais.
Eis um dos grandes paradoxos do nosso tempo: que lidamos com dinheiro todos os dias, durante toda a vida, sem conhecer o que ele é, como se cria e se introduz na economia. Na verdade, a emissão de crédito pela banca comercial corresponde à criação de dinheiro novo e não ao “empréstimo” de dinheiro já existente – como intuem erradamente tantos cidadãos.
Usando e abusando do poder de criar dinheiro “do nada”, ao abrigo dos mecanismos do “fractional reserve banking” e da sucessiva desregulamentação da actividade bancária, os bancos produziram em poucas décadas um aumento geométrico do volume de dinheiro disponível – bem como da dívida que lhe é correspondente.
Trata-se, em boa verdade, de uma trágica concessão da soberania monetária das nações. Algo que nunca foi deliberado democraticamente pelos povos ou assumido publicamente pelos seus governos, e cuja discussão está de todo ausente dos mídia generalistas. Se os cidadãos despertassem para esta outra “realidade”, talvez se interrogassem quanto aos motivos por que no contexto de moedas fiduciárias como o Euro, os Estados se colocam na contingência de se financiarem exclusivamente em instituições privadas que beneficiam da criação de dinheiro sobre a forma de crédito, em vez de se financiarem, de forma necessariamente regulada, junto de instituições centrais de natureza pública.
Ou talvez o público questionasse ainda o absurdo de uma Europa cujo banco central se permite insuflar 1.2 biliões (milhão de milhões) de euros em “quantitative easing” para o interior do sistema financeiro privado, mas que para alavancar um plano (Juncker) de estímulo económico obriga os países a financiarem-se junto da banca comercial, através da emissão de mais crédito, logo com aumento da dívida ao sector privado.
Mas tudo isto, claro está, não se enquadra no discurso moralista da “direita da realidade” que nos apresenta João Miguel Tavares e tantos outros comentadores que laboriosamente, na televisão e nos jornais, vão erguendo o mundo à frente dos nossos olhos, para nos cegar da verdade.
Adenda: para os leitores regulares do blogue, este texto não deixará de parecer revisão de matéria dada. Para os restantes, ficam ligações para artigos anteriores onde se tratam, em maior profundidade, algumas das questões aqui abordadas. A ler: O lastro; De onde vêm as dívidas; Sabia que os bancos criam dinheiro do nada? e A grande questão política do nosso tempo.