A morte simbólica do 25 de abril



A morte simbólica do 25 de abril – foi assim que, há quase vinte anos, Eduardo Lourenço se referiu à escolha de Salazar como o melhor português de sempre num concurso de televisão. Em boa verdade, apenas 7 mil dos mais de 50 mil votos recebidos por telefone pela RTP recaíram sobre o ditador que governou Portugal durante trinta e seis anos. Tal não impediu que o programa se tornasse num pequeno evento cultural de teor politico-psicológico; os seus intervenientes pareceram impelidos a colocar a nação no divã, buscando explicações, algures entre o irrelevante e o fim de tudo.

Sem grande significado científico, talvez germinasse ali o murmúrio de um país profundo que por décadas passou envergonhado e alheio aos nossos olhares. Certo é que mais de 1,3 milhões de eleitores não apareceram do nada. Conseguimos vê-lo agora, como sempre nos acompanharam nestes cinquenta anos de democracia.
Saudosistas de um grande Portugal que nunca existiu? Desiludidos da Democracia? Talvez não seja fácil responder. Afinal, sempre existiu um partido declaradamente fascista, apologista do nacionalismo, que nunca acolheu grande empatia popular. Não, o Chega parece ser de facto outra coisa. Mas que coisa é esta?

Se é difícil identificar o que convoca pulsões tão diferentes para o Chega, parece sobressair um sentido de animosidade e ressentimento. Os eleitores do Chega estão zangados. A expressão desse sentimento toma várias formas: a intolerância, o racismo, o desejo de castigar “o outro”. Na perplexidade que suscita a consolidação de um novo mapa eleitoral, a Esquerda interroga-se. Alguns perguntam-se “se agora já podemos dizer mal deles”? Vale a pena refletir sobre o que isto nos diz, não apenas sobre “eles”, mas sobre nós próprios. Que luta estamos a travar? E, nessa luta, o eleitor do Chega é o inimigo?

Acima de tudo, devemos começar por compreender a anomalia em que estamos. Se os males que o Chega congrega sempre existiram, a sua normalização para o discurso de primeira linha requer um esforço sistemático e persistente de destruição, de corrosão do pensamento. Desenganem-se aqueles que julgam que o motor desse movimento está no povo. Não, o inimigo é uma infraestrutura de construção da perceção social que está a reconstruir a História todos os dias, a construir falsas realidades, a tornar aceitável o inaceitável, a normalizar a mentira, a boçalidade, a falta de seriedade, de idoneidade. E essa infraestrutura está nas elites, em alguns agentes políticos, nos grupos de comunicação social, no jornalismo televisivo, nos spin doctors do comentário em horário nobre, nos influenciadores e nas suas máquinas de propaganda digital.

Os exemplos da decadência em que estamos repetem-se. No Presidente da República que envereda em jogos palacianos. No Presidente da Assembleia da República que deixa normalizar a boçalidade na casa da Democracia. Em profissionais de opinião que torcem a perceção perante as maiores monstruosidades. Na comunicação social que desiste do jornalismo para participar numa agenda de saturação e culto de personalidade. Todos eles participando num processo de degradação de valores que serve o ataque à Democracia pelo terraplanismo do “são todos iguais”.

A anomalia em que estamos depende dessa saturação. Não importa assim se o protagonista político do momento é o campeão das mentiras do Polígrafo. O que importa é que a mentira de hoje será comutada pela mentira de amanhã. O que importa, acima de tudo, é que passe a mensagem simplista, que exalte e mantenha viva a cólera coletiva. Disseminada por uma máquina de propaganda bem oleada que invade o espaço público, na televisão, nas redes sociais, no X, no Whatsapp, no Youtube, no Reddit, no Tiktok.

Durante o período de debates pré-eleitorais, uma busca para os rever no Youtube resultava, invariavelmente, em canais de liberais patrocinados pela Prozis, quando não mesmo canais do Chega, puro e duro. Eles aí estão, bem organizados, todos os dias. Onde é que acham que os jovens, por exemplo, estão a receber a sua "informação" política?
Não basta para a Esquerda, neste pesadelo, ter argumentos. Não basta estarem todos em uníssono nas suas bolhas, no Bluesky ou no X. É preciso ocupar o novo espaço público mediático e digital nos lugares onde as pessoas estão. Quais são, afinal, os nossos equivalentes ao Sam Seder, à Emma Vigeland, ao David Doel, ao David Pakman e tantos outros?

Se queremos combater este inimigo, temos de compreender o mundo em que estamos. O verdadeiro inimigo da Democracia é esta saturação sistemática pela mentira, assente numa infraestrutura sustentada por gente de poder. De onde vem o dinheiro? Quem paga os cartazes do Chega em todas as rotundas deste país? Quem financia este aparelho de desinformação que enche os novos veículos de informação digital, promove influencers, produz fake news sofisticadas que simulam notícias de jornal que nunca existiram? Que paga as campanhas de bots que as propagam, para acabarem em grupos de Whatsapp onde nunca serão escrutinadas? Aceites, por fim, por cidadãos comuns, vítimas do seu analfabetismo digital, como verdades. E eles por aí andam, muito transtornados e zangados com a cultura “woke”, com casas de banho sem género, com atletas trans, com problemas que nunca nunca viram e que nunca existiram.

Importa compreender que este estado de coisas não é normal. Os impulsos de intolerância que corroem a Democracia e alimentam o fascismo são contrários à nossa própria natureza. Vivemos assim uma anomalia, construída sobre um projeto populista de extrema direita, com enorme sucesso. Um projeto que conseguiu esvaziar a representatividade de classe da Esquerda nas grandes questões sociais e políticas – em alguns casos por culpa própria. Sabemos, pelas lições da História, que tudo isto é uma farsa, uma mentira. Que a extrema direita acaba sempre por aniquilar a sua base popular de apoio. Mas sabemos também que isso só acontece com grande dano social e humano. A obrigação da Esquerda é lutar pelos seus princípios, em todo o lado, para evitar que seja preciso perder tudo para voltar a ganhar alguma coisa.