Helena Roseta assinou um artigo intitulado Urbanismo e Corrupção, publicado na revista Visão de 21 de Dezembro. Trata-se de uma reflexão que pretende pôr o dedo na ferida da situação portuguesa relativa à apropriação privada das mais valias urbanísticas, resultantes da mera alteração de uso de solo, de rústico em urbano.
A arquitecta afirma que em Portugal, ao contrário dos restantes países europeus, é aceite o princípio de que a apropriação das mais-valias urbanísticas seja inteiramente privada. A recuperação pública desses dividendos é reduzida, póstuma e realizada por via fiscal. Correctamente, Helena Roseta refere que o problema não resulta tanto da construção civil propriamente dita – fase em que incidem taxas municipais e outros impostos – mas sim da transformação de um solo rústico em urbano ou urbanizável pela simples alteração dos perímetros das áreas urbanas ou o aumento dos seus índices de ocupação.
Trata-se de constatar que um mesmo terreno, enquanto rústico, pode valer 2 ou 3 euros por m2, passando a valer 50, 100 euros ou muito mais o m2, aquando da sua passagem a solo urbanizável. Bem entendido, o valor do solo enquanto urbano devia resultar do acréscimo de infraestrutura que lhe está subjacente - na afectação de redes, vias, espaços públicos e todo o suporte envolvente que o devia qualificar enquanto cidade. Verifica-se afinal que não é isso que sucede. Assim, é o simples efeito especulativo que o torna mais valioso enquanto bem de mercado, sem que lhe tenha sido introduzido o investimento dessa qualificação, de que deveriam resultar as consequentes mais valias.
Esta perversão dos mecanismos legais de fazer cidade é um dos motores para a falta de transparência dos processos de planeamento. Importa no entanto levar esta reflexão mais além, questionando o papel do Estado enquanto planeador do solo e a sua capacidade operacional para conduzir estes fenómenos de forma diferente.
Os planos demoram anos a fazer, diz Helena Roseta sem aprofundar as reais razões por que tal sucede. Presume-se dessa morosidade a necessidade de permitir a sua discussão pública e a supervisão que lhe garanta a transparência. E aqui reside um dos pressupostos sempre presentes na mentalidade dos planeadores públicos. Um pressuposto que teima em impedir que dentro do Estado se produza uma análise autocrítica sobre a sua acção de décadas. Na verdade, a demora a que estão sujeitos os planos resulta de vários factores que importa identificar.
Temos em primeiro lugar a incapacidade dos vários órgãos da administração pública (autarquias, ccdrs, administração central) em actuarem como efectivos gestores do planeamento urbano. Gerir planeamento significa estar à frente da iniciativa privada e ser capaz de acompanhar as suas pulsões, conduzindo essa dinâmica de forma organizada, garantindo a salvaguarda do interesse público, ou seja, a melhoria de qualidade da cidade e da vida dos seus habitantes.
Mas fazê-lo implica possuir o músculo técnico e financeiro para desempenhar tal função. A falta de investimento que se tem feito em meios técnicos e humanos dentro do Estado transformou o absurdo em normalidade: planos que deviam levar um ou dois anos a fazer demoram várias vezes mais.
Tal acaba por suceder, por vezes, com a aplicação de impedimentos ao licenciamento das áreas afectas aos planos, sem que sejam tomadas as medidas preventivas nos termos legais para a suspensão dos regulamentos em vigor. Algo que, como consta da lei (Decreto-Lei n.º 380/99, art.º 112), só pode ser estabelecido para um período de vigência de dois anos prorrogáveis por mais um.
Mais escandaloso do que o tempo que os planos demoram a fazer, é o tempo que demoram a licenciar dentro do próprio Estado. E aqui entramos no domínio da aberração completa com processos que, no caso dos PDMs ou da sua revisão, chegam a durar uma década. Esta situação dita a completa falência da capacidade do Estado em ser um interventor sério em matéria de urbanismo.
Perante isto é necessário fazer mais do que acusar os agentes privados pela má cidade que andam a produzir; o território que, como escreve Helena Roseta, se vai tornando em tecido urbano descontínuo, desconexo e disfuncional. Há que perguntar que cidades anda afinal a administração pública a planear, com os processos kafkianos que juridicamente construiu.
Sucede então que o Estado, tecnicamente incapaz de planear urbanidade, segue cada vez mais a reboque da iniciativa particular reduzindo-se a elocubrações moralistas em substituição de assumir um protagonismo interventivo e operacional. Mas também aqui importa olhar para os números e identificar aquilo de que se está a falar.
Helena Roseta cita o crescimento do tecido urbano em Portugal de 42,2% em 15 anos, correspondente a uma área de 70 mil hectares. São, bem entendido, 700 Km2 num país com um território de 92000 Km2; menos de um por cento. Poderá dizer-se que o crescimento é, ainda assim e para esse período, avassalador. Mas também isto é uma falácia: 15 anos é o tempo de instituição da primeira vaga de PDMs, com a correspondente definição dos seus perímetros urbanos. Um crescimento desta ordem não tem afinal continuidade futura, uma vez que a mecânica de alteração desses planos não o permite.
Resta então perceber se é nesse um por cento de território nacional que reside a perda de território ecologicamente fértil, e o que aconteceria se retirássemos este crescimento urbano da economia, do emprego e do orçamento do Estado, nestes últimos 15 anos.
Compreenda-se que, em boa fé, não desejo branquear os atropelos constantes a que o território tem sido sujeito pela acção da construção civil. Apenas pretendo desconstruir pressupostos panfletários que mais não fazem do que iludir a dimensão dos problemas.
Interessa por isso compreender que a apropriação ilegítima de mais valias resultante da transformação do uso do solo é um factor relevante do que funciona mal no urbanismo, mas bem entendido, um factor apenas. Podemos demonizar este ou aquele interveniente, mas as soluções só irão resultar de respostas que acudam à dimensão técnica do problema. A deliberação do Congresso da Ordem dos Arquitectos é, nessa matéria, importante: definir o princípio de recuperação pública, pelo menos parcial, das mais valias urbanísticas. Mas importa também que esse retorno financeiro sirva para consolidar um Estado tecnicamente mais musculado e eficaz, e não para suportar mais fontes luminosas e equipamentos insustentáveis que 30 anos de poder local democrático ajudaram a construir em Portugal.
Para concluir, resta-me dizer que subscrevo estas palavras com a legitimidade de quem exerce actualmente funções no Estado, preservando no currículo vários anos de experiência no sector privado. E dizê-lo sabendo que este tipo de reflexão para pouco mais serve do que votar-me ao isolamento intelectual. Porque o Estado vive hoje tomado de assalto por técnicos e políticos, novos e velhos, imbuídos deste tipo de moralismo missionarista. Agarram-se aos seus ambientalismos, patrimonialismos, esteticismos, sem possuir a robustez técnica que lhes permita dar uma real resposta aos problemas que a defesa dos seus princípios exige. Cita-se o exemplo da Holanda ou da Finlândia, incapaz de se identificar as diferenças da sua actuação, de participação cívica, de honestidade intelectual, de saber técnico. Sustenta-se assim o activismo da inacção e a mais profunda paralesia do planeamento, de que resulta o maior atentado que o Estado exerce sobre a actividade económica, social, humana, do país. E sobre isto paira um absoluto silêncio, sem que transpire dos nossos doutrinadores do urbanismo uma névoa de autocrítica, de auto-análise.
E aqui discordo em absoluto com o tom moralista de Helena Roseta quando afirma que o urbanismo não é uma actividade meramente técnica. Pelo contrário, estes problemas são eminentemente técnicos e é nessa base que importa consolidar soluções. Não chega produzir acusações nebulosas sobre a corrupção que paira. Acusações que alimentam a presunção de má-fe que reina na relação entre agentes públicos e privados, e mais não fazem do que atingir a dignidade daqueles que, dentro do Estado, desenvolvem com seriedade e boa fé a sua profissão.
Destes moralismos não se extrai consequência, sendo certo que passa impoluta a caravana dos oportunistas. Alguns podem aplaudir tais manifestações, em tom de “quero justiça”. A mim, confesso, sabe-me a muito pouco.
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Muito bem!
ResponderEliminarEnquanto Arquitecto, que desempenha actualmente numa CM as funções de Chefe de uma Divisão de Planeamento e Ordenamento do Território, apenas posso dizer que este post é simplesmente...BRILHANTE e merecedor a minha inteira concordãncia.
ResponderEliminarOs meus parabéns, para quem fala do que conhece!
ResponderEliminarConcordo e lamento o tom da "nossa" bastonária.
A realidade da nossa prática profissional (quer nas câmaras, onde também já fiz planeamento e gestão urbanística) quer na actividade privada (onde actualmente exerço) não se compadece de chavões que apenas instigam uns contra os outros sem contribuir para a resolução dos problemas.
A realidade é dura, mas resolve-se com capacidade técnica que se desenvolve no dia-a-dia da prática profissional honesta e esforçada, em que algum espírito de missão ajuda bastante.
Mais do que clamar permanentemente contra os corruptos e incompetentes (isso é fácil e popular), é necessário demonstrar que só é possível trabalhar com rigor, qualidade e competência, cumprindo prazos.
Quem quiser contribuir para alguma melhoria, tem que começar por compreender e aceitar que o urbanismo e o planeamento são processos complexos que envolvem muitos agentes,cada um com o seu papel específico, seus direitos e responsabilidades que devem afirmar e defender/exigir abertamente.
Não se consegue avançar numa base de desconfianças mútuas permanentes e veladas, de posições e (hiper)sensibilidades antagónicas.
Afinal, talvez bastasse uma regra base, cada vez mais esquecida: a da urbanidade...
Muito e muito bem Daniel!
ResponderEliminarTenho um gosto enorme em vê-lo colocar o dedo na ferida, este é um espaço de agradáveis consensos onde um texto como este pode fazer a diferença pelo toque no tema sensível.
Fiquei bastante satisfeito e muito obrigado pela "ousadia", a arquitectura deverá agradecer.