A grande questão política do nosso tempo



Tenho vindo a dedicar alguma atenção ao tema da economia e, em particular, à natureza do actual sistema monetário, ao real papel exercido pelos bancos comerciais e às profundas distorções sistémicas que um tal modelo faz incidir sobre a nossa sociedade em todos os aspectos da nossa vida. Acredito que esta é, no contexto das economias desenvolvidas, a questão política do nosso tempo.

No passado dia 20 de Novembro teve lugar no Parlamento Britânico um debate sobre a criação de dinheiro com o título Money Creation and Society. Em discussão esteve o facto de no actual sistema de moedas fiduciárias como a Libra, o Euro ou o Dólar, a esmagadora percentagem do money stock em circulação não ter sido criada pelos governos (ou pelos bancos centrais) mas por bancos comerciais através da concessão de crédito.

Em causa está o facto dos bancos criarem dinheiro do nada, electronicamente, sobre a forma de crédito e que o volume de dinheiro criado por essa via aumentou exponencialmente nas últimas décadas – ascendendo, no caso Britânico, a 97% da totalidade do money stock.

Tratou-se de um debate promovido por quatro parlamentares da Câmara dos Comuns, de cada uma quatro forças políticas ali representadas: Conservadores, Trabalhistas, Verdes e Ukip. A discussão assertiva que se gerou demonstrou bem que as preocupações em torno da reforma monetária não são apenas opiniões de um pequeno grupo com ideias alternativas sobre economia, mas antes apreensões fundamentadas de um vasto conjunto de pessoas com diferentes sensibilidades políticas.

Alheios à natureza do sistema monetário moderno muitos cidadãos são conduzidos por conceitos do senso comum que iludem a compreensão real dos problemas. Um exemplo imediato revela-se no modo como as pessoas entendem o significado de um “empréstimo” bancário. No entendimento de muitas pessoas um banco é uma instituição intermediária que tem à sua guarda os depósitos de outros cidadãos, redistribuindo-os através de empréstimos sobre os quais incidem juros que revertem a seu favor, de que depois beneficiam também os depositantes originais.

Sucede que a realidade é bem diversa. Quando um banco concede um crédito a um particular essa instituição assume uma responsabilidade desse valor mas a dívida deste é registada como um activo do banco. Ao fazê-lo, os bancos estão simultaneamente a criar dinheiro (electrónico) novo na conta do cliente, bem como a dívida que lhe é correspondente. O processo é descrito de forma detalhada num documento publicado pelo sítio web Positive Money que pode ser descarregado aqui – corroborado de forma inequívoca por uma outra publicação emitida pelo Banco de Inglaterra.

Significa isto que no contexto actual o principal objecto de actividade dos bancos não é mais aquilo que outrora entendemos como banking, fazendo recircular as poupanças na economia como crédito a novos investimentos, mas sim a criação de money stock através de crédito sobre a forma de novos depósitos electrónicos.

Decorrem deste processo vários aspectos a ter em conta. Faço referência ao exemplo Britânico pelo facto de conter documentação mais acessível mas valerá a pena lembrar que o Euro, pese embora ter tido uma gestão mais conservadora, opera segundo um paradigma idêntico.
No caso Britânico, com um money stock de 2.200 mil milhões de libras, apenas 8% foi concedido a empresas do sector não financeiro. O volume de crédito emitido a entidades financeiras é três vezes superior. E um terço daquele money stock foi canalizado para o sector imobiliário ou para empréstimos sobre hipoteca de casa.

Estamos perante um fenómeno que contradiz um princípio básico em que parecem acreditar muitos economistas: que, no actual sistema, o dinheiro não é neutral – facto muito enfatizado no debate da Câmara dos Comuns pelo Conservador Steve Baker. O dinheiro tem sido maioritariamente criado por bancos – sem correspondência com os seus activos e em valor que lhe é muito superior, ao abrigo das regras do fractional reserve banking – fazendo reverter em seu benefício os juros correspondentes e extraindo desse modo riqueza do todo da economia, empobrecendo gradualmente a sociedade.
Assistimos assim ao desenrolar de um desequilíbrio sistémico extremamente perigoso, por via do aumento exponencial do endividamento sobre economias de lento crescimento. E temos assim que o peso dos juros que tal volume de crédito faz agora incidir é de tal forma elevado que comprime a economia real e a sua possibilidade efectiva de crescimento.

De igual modo, os cidadãos têm vindo a ser iludidos quanto ao papel exercido pelos “Mercados”, maioritariamente representados por instituições financeiras que estão na primeira linha de acesso ao crédito, em condições de muito baixo custo de financiamento.

Perante estas circunstâncias afiguram-se pouco elaboradas as preocupações dedicadas por alguns economistas à possibilidade de criação de dinheiro pelo BCE e aos riscos que tal representa, tendo em conta que os bancos andaram a fazer isso mesmo de modo descontrolado nas últimas décadas. Na verdade, o recurso ao quantitative easing levado a cabo pelo BCE é um processo que continua a operar em benefício directo dos agentes financeiros e não da economia. E de novo a apresentação do Plano Juncker se apresenta como mais uma demonstração de como a Comissão Europeia prefere actuar no interesse dos bancos, introduzindo um mecanismo que volta a colocar os Estados na dependência de se financiarem através da banca privada, acumulando assim mais dívida ao sector privado emissor de crédito.

Coloca-se afinal a interrogação quanto aos motivos porque no contexto de moedas Fiat, como o Euro, os Estados se colocam na contingência de se financiarem em instituições privadas que beneficiam da criação de dinheiro sobre a forma de crédito, em vez de se financiarem, de forma necessariamente regulada, junto de instituições centrais de natureza pública.

A solução para um problema desta magnitude só pode passar por uma reforma monetária que faça transferir as dívidas públicas dos Estados para um organismo central Europeu, de que beneficiem os seus cidadãos e não os bancos que emprestaram aquilo que efectivamente não tinham, em proveito próprio. A não o fazer, continuaremos a viver ao abrigo de um sistema monetário que constitui uma imoralidade e uma distorção sistémica profunda das regras do próprio Capitalismo.

8 comentários:

  1. Obrigada por estas reflexoes q me vao ensinando sobre o sistema monetario.
    Muito assustadores estes tempos q vivemos. A tal ausencia de lideres politicos q se oponham a esta situação é deprimente! O que podemos fazer?

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    1. A solução seria, no caso de Portugal, regressar ao Escudo. O Banco de Portugal criava dinheiro físico para a circulação na Economia, sem dívida associada. Os Bancos comerciais poderiam conceder crédito, mas sem cobrar juros. Mas isso pode ser uma utopia porque há intereses para que isso não aconteça.

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  2. Olá Sara. Não tens nada que agradecer. É sempre bom ter o retorno dos leitores desse lado manifestando interesse nas coisas que escrevemos.

    Este é um tema que me interessa muito e continuarei a escrever pontualmente sobre ele. Não vou tornar o blogue num espaço sobre economia, mas não descartarei a importância que o tema tem para as nossas vidas, inclusivamente para aquilo em que opera a arquitectura e o urbanismo.

    Dito isto, julgo que a importância de falarmos nestas coisas não se prende com o objectivo de deprimir as pessoas, apenas de despertar para a consciência de realidades que nos são desconhecidas mas que a todos afectam directamente.

    O que podemos fazer?

    Penso que essa interrogação deve ser colocada numa dimensão colectiva, e não de dimensão individual onde, cada um de nós, é efectivamente impotente a qualquer mudança e tenderá a recair nessa depressão de pensamento.

    A campanha em marcha no Reino Unido sobre a reforma monetária, chamada Positive Money, é um caso que nos merece, se não optimismo, pelo menos esperança. O seu principal promotor é um jovem chamado Ben Dyson, com um discurso directo e assertivo, que tem vindo a conquistar terreno e muitos adeptos.

    Num debate muito recente fizeram-lhe exactamente a pergunta sobre a dificuldade e a lentidão para alcançar mudanças efectivas no sistema monetário. Deixo a ligação:

    http://youtu.be/I10gjsM6YIw?t=1h12m13s

    O Ben Dyson respondeu dando conta da grande evolução que, em apenas quatro anos, aconteceu em torno do tema. E disse que não podemos esperar mudanças num confronto político de curto prazo directo com os bancos, pelo seu enorme poder e influência. O caminho é assim alargar a base de conhecimento e apoio, interessar os jornalistas pela questão, e aproximar pessoas influentes na sociedade e meios académicos para reforçar um movimento de mudança. Não se obterão resultados de um dia para o outro, mas se cada um falar sobre o tema a outras pessoas, se o conhecimento sobre esta realidade se for tornando domínio público, quem sabe o que todos juntos serão capazes de fazer.

    Obrigado pelo comentário. Volta sempre.

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  3. Disseminar a informação e suscitar o debate público independentemente de questões ideológicas ou partidárias é o mais urgente.

    Para participares e partilhares informação junta-te a nós em

    https://www.facebook.com/boamoeda

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  4. É um tema que também me interessa muito. Obrigado pelo serviço de divulgação. Abraço.

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  5. Caro Daniel, sobre este assunto eu gostaria de partilhar consigo e com seus leitores o vídeo que segue neste link: https://vimeo.com/50210131

    Ao ler seu texto, me parece que faz um bom diagnóstico da situação, mas o prognóstico que indica é tão ou mais desastroso.

    Espero poder ler sua opinião sobre o conteúdo do vídeo. Até mais!

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  6. Deixo as minhas impressões (um pouco a correr) acerca do documentário "Fraude - Explicando a grande recessão".

    Lamento dizer que não me revejo de todo na tese que o filme procura estabelecer nem nas soluções expostas na sua conclusão. E é pena porque é um documentário que expõe de maneira muito clara e bem detalhada o processo de expansão monetária a que assistimos na última década.

    Devo dizer que concordo em absoluto com o que diz Juan Ramón Rallo a partir do min. 35, sobre o modo como a crise devia ter sido encarada pelos Estados. Quanto ao resto, tenho de divergir.

    Faz algum sentido falar da acção dos bancos centrais como "socialismo"? Que diferença existe hoje naquilo que uns chamam de Capitalismo de Estado e outros de Imperialismo Financeiro? O que é hoje o Estado, afinal?

    O documentário sustenta a tese, promovida pelos subscritores da escola austríaca, que assenta em estabelecer uma espécie de "cordão sanitário" entre o Estado e a Finança que hoje simplesmente não existe. As soluções aplicadas pelos Estados após a crise 2007/8, que o documentário critica, são as que o sistema financeiro lhes impôs. Haverá exemplo mais notável do que o resgate de 700 mil milhões de dólares da banca americana com dinheiro público, sob a direcção de Henry Paulson, homem forte da Goldman Sachs, e Ben Bernanke, aprovado no Congresso com a complacência da presidência Bush? Isto foi um acto de "socialismo"?

    Lamento dizer que o que este documentário promove é um branqueamento de responsabilidades do sector financeiro - os bancos que teriam ido a reboque da má influência dos Estados e dos políticos maus. É para rir?

    O problema é outro. Os bancos detêm um duplo poder que não deveria estar concentrado numa só entidade - o poder de criar dinheiro e o poder de decidir onde esse dinheiro deve ser aplicado (ou seja, os sectores para onde pode ser preferencialmente direccionado). Os bancos usaram e abusaram desse poder. E capturaram o poder político, de tal modo que passamos a observar o percurso de actores políticos, vindos do sector da banca, para os governos, para transitarem de novo para o sistema bancário após a sua carreira política. Portugal é um bom exemplo: quantos ministros e secretários de Estado vieram do sector bancário nas últimas décadas? Várias dezenas. Só ministros das Finanças, 19 desde o 25 de Abril, 14 vieram directamente da banca.

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  7. [continuação do comentário anterior]

    E o que propõe o documentário como soluções.

    1. Abertura dos mercados - mais desregulação financeira e laboral. Mais "liberdade" para os agentes da bolha monetária actuarem sem supervisão ou regras.

    2. Reduzir os gastos públicos, os impostos, a dívida pública. São na teoria os objectivos das políticas de austeridade impostas pelas instituições europeias através dos seus memorandos - e os resultados são os que se vêm. Acima de tudo, os custos dessa redução assentam nos cidadãos e nos contribuintes, nunca se pondo em causa os agentes que promoveram activamente as políticas de endividamento público e privado que nos conduziram até aqui.

    3. Reformar o sector bancário para que a sua capacidade de criar bolhas seja "um pouquito mitigada no futuro". Fica bem falar disso, mas como o documentário não deixa de enfatizar que o excesso de regulação é o problema, temos de nos interrogar como se espera alcançar esse objectivo. de Soto nem tem pejo em falar em acabar com a regulação financeira, com os bancos centrais, e voltar ao padrão ouro. A cegueira política e social parece-me completa.

    Não sou economista mas sei que o mundo não tem botão de "undo". O que estes neoliberais advogam é uma desalavancagem de tal modo violenta que não é compatível com qualquer processo de condução democrática. Estas teorias podem ser muito estimulantes num aquário académico de economia. A mim interessam-me soluções que procurem a sustentabilidade e o incrementalismo. O problema é imenso, mas está aí, criado - como partir de onde estamos para encontrar melhores soluções. Não me interessam soluções perfeitas no mundo da abstracção teórica, que corresponderiam a uma bomba atómica política e social.

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