Somos todos Charlie #lolwat
Amanhã os líderes europeus estarão em Paris na linha da frente de uma marcha em solidariedade com as vítimas do atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo. Por um dia, todos Charlie. Todos Charlie, desde que façamos do slogan uma expressão de sentimento e não de pensamento. Todos Charlie, desde que não nos interroguemos: porquê? Pouco importa que não os mova um único projecto social para a Europa. Pouco importa que sejam os maestros de um penoso processo de empobrecimento generalizado e não revelem, perante tantos sinais de desagregação, uma réstia de desígnio ou coragem.
Querem-nos fazer crer, com mais ou menos subtileza, que está em causa uma batalha entre a liberdade e o terrorismo, a civilização e a barbárie. Maria Fátima Bonifácio define-o como a defesa d’O nosso modo de vida, uma variante sofisticada do nós contra eles – a mesma Charlie que há pouco mais de seis meses lamentava a “ambiguidade constitucional” que absolveu um artista português da acusação de ultraje à bandeira nacional. A hipocrisia anda à solta.
Curioso que alguns dos mais inflamados Charlies venham do espaço de comentário da direita liberal, n’O Insurgente e no Blasfémias, tão céleres a abater-se sobre aqueles que ousem questionar os motivos pelos quais estes terroristas germinam no coração do velho continente.
Bem podem querer reduzir esta tragédia a uma guerra contra o jihadismo, bombardear todos os campos de treino do ISIS na Síria e até implementar a pena de morte na Europa, como anuncia a Frente Nacional. No fim teremos de nos perguntar por que motivo gente de quinze, dezoito ou vinte e cinco anos se torna matéria-prima pronta a ser recrutada por manipuladores profissionais e encontra no fundamentalismo religioso o único projecto capaz de dar sentido à sua vida ou, possivelmente, à sua morte.
Que ninguém se iluda. A resposta à monstruosidade do Charlie Hebdo encontra-se no coração da França, no caos social em que estão mergulhados alguns dos banlieues em redor de Paris, palco de racismo institucionalizado, guetização de pobreza, violência policial. Quantos muçulmanos, árabes e negros lutam diariamente para viver com dignidade numa sociedade que os despreza, sem cair na violência? Serão eles, lamentavelmente, os que mais vão sofrer quando assentar a poeira destas exibições colectivas de sentimentalismo. O burburinho do medo e do ódio já se sente por aí.
Adenda:
Imagem via Facebook (autor não identificado).
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