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Sexta-feira

A nossa cultura assenta em grande parte no poder da palavra. Assumimos a linguagem verbal como a base em que reside o conhecimento de cada povo. Há mesmo quem afirme que a riqueza de uma cultura se pode medir pela quantidade de vocábulos que existem na sua língua. Em certa medida isto é verdade. O idioma de um povo contém o universo descritivo essencial e próprio de cada sociedade. Aquilo que nós chamamos apenas de “lua” ou “sol” podem ser elementos que noutras línguas dispõem de grande quantidade de vocábulos para definir os seus estados de observação, ou seja, diferentes substantivos para as várias formas que pode ter uma só entidade. Existem no entanto outras linguagens como a dança, a música, a arquitectura e um número infindável de outras formas de expressão e comunicação humanas. A essas linguagens chamamos de “não verbais”.
Porque temos uma predisposição para verbalizar o pensamento tendemos a aceitar que todos os conceitos das outras linguagens são traduzíveis para palavras. No entanto existe em cada uma delas processos específicos de expressão, estritos ao seu universo próprio. As linguagens não verbais também são formas de expressão da inteligência e da cultura humana, e em certa medida existe entre cada uma delas um nível de intraduzibilidade daquilo que é intrínseco a si mesma.
O filme Filhos De Um Deus Menor (1986) dá um belo exemplo da dificuldade de comunicar para lá da língua. James (William Hurt), um professor de terapia da fala, está em casa com Sarah (Marlee Matlin), uma intrigante mulher surda com quem se envolveu romanticamente. James está a escutar um disco, ouvindo um belo concerto para violino, de Bach, e Sarah pede-lhe que lhe mostre como é a música. James tenta transmitir-lhe a emoção e beleza da melodia triste que sai do gira-discos, através de uma mistura de dança com linguagem gestual, movendo o corpo, abanando os braços, torcendo-se, agitando-se. Tenta repetidamente expressar tudo o que lhe inspira aquela música, até que desiste, pára, olha para Sarah e diz: “Não consigo”.
Podemos através de palavras descrever uma música até à exaustão, definir os sentimentos que a percorrem, analisar o ritmo, a métrica, a forma em toda a sua complexidade, e no fim quem nos ouvir será incapaz de reproduzir a música de que falamos. Podemos categorizar a natureza dos espaços de um edifício, aqui austero, ali esbelto, teatral, místico, opressivo, libertador. No entanto, todas as descrições são parcas quando comparadas com a experiência de sentir a arquitectura de um lugar. Interessam-me os aspectos próprios da linguagem arquitectónica, aqueles que têm pouca expressão fora dela. Por exemplo, a ideia do “abstracto” na arquitectura é uma ideia da arquitectura “ela mesma”, tal como a construção dissonante na música é um diálogo estrito do universo da música. Parece-me complexo, e ao mesmo tempo assustador, o mergulho numa linguagem não verbal, porque é algo que choca com a natureza adquirida do nosso pensamento. E no entanto, é para lá das palavras que se alcançam várias formas de experimentar a inteligência e se constroem as outras linguagens que desde sempre o homem sentiu necessidade de expressar.

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