[preconceitos urbanos]

Sexta-feira

O texto que aqui publiquei na íntegra (ler A Bolha Imobiliária: Causa Ou Efeito?) da autoria do Arquitecto Nuno Portas levanta o véu a alguns dos preconceitos que enfermam as políticas de ordenamento do território em Portugal. A tese de Portas reflecte sobre a percepção generalizada (mas simplista) de que os problemas urbanísticos e ambientais do país se devem ao excesso de oferta imobiliária fomentado pela inconsciência dos municípios, que pelo sobredimensionamento das áreas urbanas dos planos que aprovam e pela permissividade do licenciamento procuram encher os cofres camarários. Mas o seu texto vai muito para além disto, aflorando alguns dos principais problemas do planeamento para os quais essa percepção pública e política não está sequer desperta. É sobre eles que gostava de contribuir com uma reflexão.

Os planos de ordenamento do território, nomeadamente os de nível local, têm por obrigação estabelecer um correcto equilíbrio entre as pressões promotoras do crescimento urbano e o respeito pelos valores ambientais e culturais do território. Não se pode nem deve escamotear as responsabilidades dos municípios nos erros de gestão urbanística que se vão cometendo por todo o país, que continuam a gerar massas urbanas amorfas que destroem qualquer resquício de qualidade de vida que aí se possa estabelecer. O problema é realmente grave é gera esse grau 0 de arquitectura onde residem as maiores densidades populacionais a quem é negada a possibilidade de usufruir de equipamentos essenciais, de espaços públicos, de lazer ou de desporto, enfim, todos aqueles que deveriam ser normais e acessíveis numa sociedade desenvolvida.

A pouco e pouco, os portugueses têm vindo a descobrir as insuficiências e deficiências da realidade urbana onde vivem. À medida que as necessidades básicas dos cidadãos vão sendo satisfeitas, vai igualmente nascendo uma consciencialização da comunidade urbana para com um nível mais elevado de preocupações: a qualidade do ar que se respira, a poluição sonora, o arranjo dos espaços exteriores, a ocupação dos tempos livres, a cultura erudita e o valor estético do ambiente urbano. Como escreveu Leonardo Benevolo, estas novas exigências contemporâneas exigem que se combine numa verdadeira síntese um sentido de responsabilidade social, ou seja, um empenhamento colectivo na produção de cidade, ao mesmo tempo que se salvaguarda o respeito pela privacidade e individualidade dos cidadãos.

Qualquer modelo de planeamento urbano passa por estabelecer, como diz Nuno Portas, regulamentos administrativos limitativos de direitos. A justificação para tal reside nessa exigência colectiva do fazer cidade. À luz da experiência e da doutrina do urbanismo europeu, não consigo sequer conceber outro modelo, ou aquilo a que o Lourenço chama de liberalismo no planeamento urbano . Será esse liberalismo a que se deu o nome de AUGI, Áreas Urbanas de Génese Ilegal, vulgo bairros clandestinos. Aqueles que se caracterizam por ruas com passeios de 50 centímetros quando os têm, ausência de equipamentos e zonas públicas, elevadas concentrações de construção habitacional e ausência de princípios urbanísticos ou de arquitectura? Também me parece que não.

Mas voltando ao texto original, essa afectação de regulamentos ao território não pode ser fixada ad eternum, seja pela vontade autoritária dos municípios ou pela incapacidade de alterar em tempo útil os planos quando estes estão desactualizados ou contrariam empreendimentos necessários com pressupostos que entretanto deixam de fazer sentido.
E porque estas realidades são diversas no âmbito do território, os termos e os princípios de regulação urbanística não podem ser idênticos para todo o país. Portas alerta para as diversas variáveis do problema, resumidas a uma frase lapidar: que nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida, tendo que oferecer várias frentes de desenvolvimento e capacidade para responder pela incerteza relativa ao aparecimento de novas necessidades no tecido urbano.
É por esse grau de incerteza que os mitos que alguns professam em relação ao crescimento urbano (mesmo quando fundados em boas intenções) acabam por ter efeitos perniciosos e contrários aos inicialmente pretendidos. O controle e restrição cega do aumento do perímetro das áreas urbanas é um exemplo desses mitos.

A acção municipal ao nível da oferta de solo urbano pressupõe a gestão equilibrada da extensão da área construída, por diversos factores. Poderia sublinhar vários como a racionalização das necessárias infra-estruturas e a viabilidade da sua gestão, a necessidade de integração e respeito ambiental ou ainda factores de interesse colectivo bastante diversos. Mas por outro lado, o planeamento municipal interfere directamente com o mercado privado do solo, da urbanização e da construção. Sendo o sector privado o actor principal das realizações urbanísticas, e actuando numa realidade concorrencial, torna-se necessário garantir uma folga de actuação, ou seja, um sobre-dimensionamento das áreas urbanizáveis que garanta prevenir situações de monopólio ou oligopólio.
E porque muitas vezes não existe sensibilidade nas autarquias para este facto, nem capacidade técnica para o abordar ao nível dos planos, acaba pela sua acção por desestabilizar a capacidade de auto-regulação do mercado e criar perversões de todo o sistema.
Não se podem assim criar mitos e diabolizar determinados fenómenos, construíndo uma doutrina legislativa à luz dos problemas dos grandes centros urbanos do país que são, ao mesmo tempo, os centros de decisão jurídico-política, pensando que o problema é idêntico ao nível das cidades médias ou do interior.

A inconsciência desta realidade dá azo a desvios entre a oferta de espaço urbanizável e o mercado real, ora promovendo um crescimento caótico (quando em excesso), ora provocando o aperto e a especulação do mercado (quando em falta). Estas distorções tornam difícil assegurar a defesa do interesse público tanto quando é necessário assegurar usos públicos ou regular os custos da oferta. De passagem, Nuno Portas refere que este problema tem de ser combatido através do reforço técnico e participativo das autarquias. Mas infelizmente, em Portugal, assistimos exactamente ao fenómeno inverso, ou seja, a uma desregulamentação da prática do planeamento urbanístico. Ora o exercício de atribuições e competências delegadas ao nível municipal exige cada vez mais a sua dotação em meios adequados, meios que no âmbito do planeamento urbanístico são essencialmente técnicos e humanos. Infelizmente não só não vemos aprofundar a competência técnica dos orgãos estatais como vemos esboroar qualquer sentido e entendimento do que é o serviço público e a causa pública neste sector.

No nosso país, a falta de capacidade técnica e conhecimento especializado é mais uma das carências do sistema estatal, acentuando a falta de compreensão do significado da missão pública e da responsabilidade que lhe está associada. Sem desenvolver processos contínuos de avaliação da realidade e mediação dos interesses activos na área do urbanismo, os decisores políticos parecem julgar que resolvem as carências existentes com doutrinas fundadas em percepções superficiais e parciais do problema. Este simplismo é e será o caminho para a insustentabilidade.

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