Porque as pessoas não cabem em caixinhas

A propósito da introdução de legislação que obriga o uso de cinto de segurança nos automóveis nos Estados Unidos levantou-se uma discussão interessante. Colocava-se o problema da legitimidade da intrusão estatal sobre o espaço de liberdade individual dos cidadãos.
A questão pode parecer-nos, numa perspectiva europeia, algo anedótica. Revela-nos no entanto o cuidado com que naquele contexto se mede a relação entre Estado e cidadãos e a ênfase colocada na protecção da esfera de acção individual como um espaço a preservar.

Vivemos num país onde essa intrusão é total, da regulamentação das instituições culturais que nos ligam à parametrização das mais pequenas coisas da nossa vida. Esta falta de pudor tornada cultura está não apenas presente mas entranhada de tal forma que já poucos questionam a sua legitimidade. É uma realidade que reflecte a nossa desconfiança colectiva – tantas vezes justificada pelos atropelos de um povo mal educado para a vida em comunidade – e que tem na lei a representação máxima de uma infantilização do cidadão pelo Estado.

Talvez aqui encontremos algumas razões que tornam o debate sobre o casamento homossexual que agora se reaviva num “tema fracturante”. De um conjunto tão vasto de pessoas como um país inteiro não podemos esperar outra coisa que não seja a diversidade de opiniões e pontos de vista. No entanto, dessa diversidade poderia resultar um debate construtivo, reflectindo as perplexidades de uns e os sentimentos de outros. Não será, no entanto, de esperar que seja esse o clima que regerá o debate público sobre o tema. Teremos antes o debate impositivo de argumentos para a anulação “do outro”.

A esse respeito recordo um depoimento de um cidadão, médico, registado num Fórum TSF sobre o tema da eutanásia há já alguns anos. Afirmava que, pelas suas convicções, a eutanásia era uma prática que julgava lamentável e, em todas as circunstâncias, inaceitável. Dito isto, concluiu dizendo que, apesar da força das suas convicções, considerava ser uma matéria tão íntima do foro da vida pessoal, pelo que o Estado não deveria impor uma regra legal para a sua proibição. Antes tudo fazer para evitar as circunstâncias que a tornam legítima aos olhos de quem sofre.

Esta atitude de cidadania, tão rara entre nós, está muito longe do padrão com que regemos os nossos conflitos de opinião. A compreensão de fazermos parte de uma comunidade, um colectivo de pessoas onde possa haver lugar para muitas escolhas diferentes, e o respeito devido a cada uma delas. Um respeito capaz de levar alguém a defender a protecção da liberdade para escolher algo que nos é moralmente inaceitável.

Sobre o casamento homossexual tenho também uma opinião. Mas o que me entristece, neste debate, não é existir quem tenha a opinião contrária. É antes que da discussão entre uns e outros sobressaia um desrespeito que vai para lá da incompreensão. Fica, a este respeito, um pequeno filme que reflecte essa complexidade de um mundo feito de pessoas que não cabem em rótulos ou caixinhas.
Para ver: ”Fidelity”: Don’t Divorce….

Obrigado Mimi.



Video: ”Fidelity”: Don’t Divorce…, part of the Courage Campaign.

10 comentários:

  1. Muito obrigado pela postagem. Me emocionou bastante.

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  2. Bom post... Efectivamente é precisamente é essa a postura a que se assiste em qualquer blog onde o tema tenha vindo à baila.
    é ainda triste a mentalidade intolerante a que se assiste neste país, e não estou a elaborar opinião sobre o casamento mas sim sobre a incapacidade de diálogo ou por outras palavras à permanente radicalização dos discursos seja em relação a que tema for.

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  3. "A propósito da introdução de legislação que obriga o uso de cinto de segurança nos automóveis nos Estados Unidos levantou-se uma discussão interessante. Colocava-se o problema da legitimidade da intrusão estatal sobre o espaço de liberdade individual dos cidadãos."

    Coloca uma questão interessante. Sim, na Europa estamos muito mais habituados à intrusão do estado nas nossas vidas. Nos EUA, ao invés, os cidadãos prezam um maior distanciamento do estado, a vários níveis. Mas as coisas não são tão lineares como poderão parecer. Fica aqui um exemplo: um professor americano contava que muito estimava patinar no lago gelado que havia perto de sua casa. No entanto, é proibido por lei, nesta localidade, patinar em rios ou lagos gelados por uma questão de segurança. O lago estava situado numa zona arborizada, portanto, em grande medida escondido dos olhares indiscretos. O professor aproveitava esse facto para ir patinar com a sua filha. Contudo havia uma estrada nas redondezas que tinha um semáforo numa zona onde havia uma aberta na vegetação que permitia ver o lago. Não era caso raro que os automobilistas parados no semáforo telefonassem para as autoridades a denunciar os patinadores.

    Com isto quero dizer que, sim, é verdade, os norte-americanos prezam um estado pouco intrusivo. Mas por outro lado e em nome da liberdade, são uma sociedade mais repressiva que as europeias. Não nos termos habituais, duma imposição de força exterior, como há numa ditadura, mas por um condicionamento moral e de valores, em parte derivado do sentido de cidadania e de vida comum mais marcado que o nosso. Todavia nem sempre esse sentimento de vida colectiva é, como afirma, para que "possa haver lugar para muitas escolhas diferentes, e o respeito devido a cada uma delas", mas precisamente pelo contrário, para manter um status quo, nem sempre reagindo bem à inovação que dessas escolhas diferentes advém. Terá vantagens e desvantagens. Em Portugal, por exemplo, o denunciante (ou "bufo") é quase sempre mal visto, independentemente da validade da denúncia.

    Não venho criticar o seu discurso, e certamente que apoio o que afirma sobre a necessidade de dar lugar às escolhas e ao respeito, mas apenas venho apontar que as coisas "do outro lado do atlântico" não são tão lineares como poderão parecer.

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  4. Aliás, é brilhante a história da laranjada na TED Talk do seu post anterior para ilustrar estas questões.

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  5. Obrigado pelos comentários.
    Caro Francisco [scheeko], agradeço – mesmo muito – o contraponto tão acertado. Aquilo que observei – como sei que entendeu – não foi uma comparação linear de bom/mau, americano versus europeu, antes tomar como ponto de partida um contexto cultural diverso do nosso em relação à presença do estado na decisão sobre áreas da esfera da vida privada. Sou muito crítico da nossa falta de cultura de comunidade. Acredito que é uma fonte (estrutural, para usar uma palavra do léxico mediático na moda) da nossa corrosão de comportamentos e valores sociais. Um país onde se instalou a indiferença perante “o outro”, onde todos se agridem (na estrada, por exemplo), todos acabam por ser diariamente agredidos. Depois, chegamos a casa e desabafamos que tudo isto é uma violência – mas não damos o passo seguinte de compreender que é o resultado inevitável do comportamento instalado em que todos participamos.
    Mas como bem demonstra o exemplo que adiantou, tudo é complexo, e o caso americano é também lugar de contradições entre a estrutura ideológica e a cultura de relacionamento entre as pessoas. Afinal, os americanos fazem séries inteiras sobre isto, basta ver a complexidade sociológica tão contraditória do retrato das Desperate Housewives, por exemplo, entre os valores e a sua representação.
    A história da laranjada apresentada pelo Barry Schwartz é outro caso notável das contradições dessa vivência. E considero os argumentos finais da sua exposição mesmo muito importantes – e que não deixam de ter tudo a ver connosco também. Espero vir a poder escrever mais sobre tudo isto. O tema merece e é interminável.

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  6. Quando há uns anos o uso do cinto de segurança passou a ser obrigatório indignei-me com essa medida, achei o que acha o autor do post, com que direito o Estado tem que me obrigar a usar o cinto...percebia que a companhia de seguros o fizesse, procuraria então outra que me desse liberdade de escolha, mas nunca o Estado. A forma subtil, como o Estado vai dominando cada vez mais a nossa vida particular é que é assustador, e é assustador porque não nos damos conta.

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  7. concordo, mas como dizia ao Arrumário, aqui estão 2 artigos para pensar
    http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,984875,00.html
    e
    http://www.realclearpolitics.com/articles/2006/03/and_now_polygamy.html

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  8. Este apelo para uma melhor cultura de debate é um dos melhores textos que li nos últimos dias!

    Obrigada também pelo filme - comentário da minha filha: eles parecem tão felizes e equilibrados!
    (tão nos antípodas do preconceito!, acrescento eu)

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  9. Parabéns mais uma vez pelo blog.

    A este propósito aconselho a visita a este blog:

    http://rprecision.blogspot.com/

    The times they are a-changin':

    "A História dos Homens demonstra-nos que todas as conquistas no sentido da evolução da ética, do humanismo e da igualdade entre todos os seres humanos são conseguidas passo a passo, e frequentemente à custa do sofrimento de tantas pessoas."

    No meu entender, mais do que estabelecer se alguma coisa é moralmente aceitável, importa saber se é éticamente correcto, e é no campo da ética que defendemos a liberdade e a igualdade.

    Assim compreendemos porque Rosa Parks não se levantou do lugar no autocarro onde estava sentada; algo que era na altura moralmente inconcebível.
    _____

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  10. Talvez fora do contexto dos demais comentários, este post recordou-me de uma manifestação, penso que na Grécia, em que uma criança segurava num cartaz com algo do género:
    "Se Jesus teve dois pais, porque não posso ter eu também?"

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