Quando a realidade que nos rodeia assume contornos dramáticos – como os da actual crise, por exemplo – surgem reacções de perplexidade. Como foi possível chegar até aqui? Tais reacções esquecem o óbvio: um encadeamento de causas, factos e decisões que só poderiam conduzir a estas consequências. E que tais acções servem os interesses de um grande número de pessoas.
O filme brasileiro Tropa de Elite apresenta, a certa altura, um mosaico do negócio do tráfico de droga. É mesmo o maior motivo de interesse de todo o filme. Ali se retratam três mundos diferentes: os gangues do morro, a corrupção policial e a classe média-alta do Rio, em particular do meio universitário. Aquilo que nos é dado a ver é um sistema em perfeito funcionamento, uma cadeia de interesses de diversos intervenientes que actuam de forma convergente. Os motivos para tal são muito diversos, percorrendo um espectro que vai da ambição de poder à necessidade de sobrevivência. Mas nenhum desses “actores” – traficantes, polícia, jovens – é, por si só, ideólogo da violência. O crime brutal é uma consequência colateral da realidade do tráfico.
Outro aspecto interessante é o papel da força policial, o BOPE, naquele contexto. Não está em causa se a sua acção é certa ou errada; por vezes é mesmo altamente questionável. Mas ao actuar fora daquela pirâmide de interesses, este quarto actor choca com todos os outros fazendo despoletar uma inusitada violência. Eles são a anomalia na ordem estabelecida.
O que quero dizer é que quando olhamos para a pobreza, as desigualdades, as perplexidades que nos rodeiam nas actuais circunstâncias, esquecemos que todas essas consequências são o sub-produto de um sistema que funciona perfeitamente. Nele se estabeleceu uma rede de interesses que actua de forma colaborante e em que todos, de uma forma ou outra, participam. Partidos políticos, empresas, banca, estado e funcionários, corporações, ordens, sindicatos. Podemos não gostar das consequências que esse sistema produziu. Mas só uma enorme desatenção pode motivar qualquer perplexidade por algo que só podia ser evidente. O Portugal de hoje é um país em que ninguém está disposto a fazer concessões, seja em que circunstância for. Ninguém quer perder o seu estatuto, o seu poder, o seu conforto, a sua paz de espírito. E quase todos contribuíram num enquistar de interesses, optimizando as suas circunstâncias sem nunca medir os efeitos da sua acção individual.
Num tempo em que se fala de responsabilidade deveríamos questionar se a auto-regulação é possível em democracia. É isso que está em causa. Será possível à nossa democracia corrigir internamente os seus desvios, as suas disfunções, contra o próprio sistema que entretanto se estabeleceu? Ou estaremos condenados a mudar, de rojo, pela insolvência absoluta? As perspectivas parecem, hoje, pender para o lado da insustentabilidade, pondo em causa as noções de sociedade e democracia que pensávamos estar a construir.
Podemos não gostar do mundo em que vivemos. Mas não podemos dizer que estamos surpreendidos com tudo o que está a acontecer.
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Boa reflexão! Se tiveres tempo, lê "Doutrina de Choque" de Naomi Klein e descobrirás que a auto-regulação é impossivel e que as correcções, não se conseguem fazer...em democracia!
ResponderEliminarfico feliz com o teu regresso!
ResponderEliminarboa reflexão.
Bom ver uma reflexão comparativa vinda dai.
ResponderEliminarO tráficante só não é um ideólogo da violência em uma versão romantizada e saudosista. Para ser traficante é necessária uma postura violenta devido extrema competitividade e por ser intrinsecamente ilegal. Ser traficante já pressupõe ser violento.
Sobre a democracia, só ver aonde ela não existe e constatar que os problemas, desvios e disfunções são similares, apenas não são expostos.
Deixei transparecer, possivelmente, essa ideia romantizada do papel do traficante, o que não era de todo a minha intenção. É certo que o tráfico de droga carrega toda uma cultura de violência. Queria exprimir apenas que o crime não é um fim em si mesmo, e que com ele colaboram vários factores que se conjugam para construir uma determinada realidade. Essa realidade produz repercussões notavelmente violentas, mas elas são uma espécie de dano colateral, mesmo daqueles que não têm um papel directo no tráfico e no consumo - até por resultado de posturas ideológicas, de condescendências sociais, ou por uma necessidade de sobrevivência no meio policial, por exemplo.
ResponderEliminarPareceu-me um bom retrato, extremo é certo, de patologias sociais que também ocorrem na sociedade democrática, ainda que de forma mais dissimulada.