A balada de Arthur Morgan; ou o apocalipse do Velho Oeste



Este texto contém spoilers sobre o videojogo Red Dead Redemption 2.

Numa breve conversa, registada em 2010, Salman Rushdie reflectia sobre a importância dos videojogos para o futuro da expressão narrativa. Questionava, afinal, o modo como esta jovem mídia se constituía como veículo para contar histórias de maneiras muito particulares, tão diversas daquelas que se estabeleceram ao longo de séculos por outras formas de expressão humana tais como a literatura, o teatro ou o cinema.

Apontando como exemplo o popular Red Dead Redemption, lançado nesse mesmo ano, Rushdie sublinhava a natureza aberta da narrativa, ou o modo como as narrativas habitavam aquele mundo aberto e se constituíam como parte da sua textura, permitindo, no entanto, uma infinitude de incursões e excursões divergentes para lá das estórias que o compunham.

Esta dimensão orgânica, experiencial, do tempo e do espaço, que os videojogos são capazes de abarcar é, por certo, uma das suas características mais distintas e marcantes. O extenso território do original Red Dead Redemption constituía a apoteose do género “open-world” (mundo aberto), inspirando-se na iconografia do Velho Oeste Americano para dar corpo a um genuíno sentido de paisagem, com as suas povoações habitadas e uma vasta região envolvente, hostil e selvagem.

Muito por efeito da rápida evolução da tecnologia, os jogos de mundo aberto tornaram-se bastante populares na última década. Com essa popularidade veio também uma crescente formatação do género, dando lugar a convenções e fórmulas repetitivas que se parecem substituir, tantas vezes, a concepções mais originais e inovadoras. Um exemplo bem conhecido desta conformação é ilustrado pela “regra dos 40 segundos”, um conceito introduzido pelos criadores do jogo The Witcher 3 que traduz a forma como o mundo do jogo é densificado com vista a proporcionar a descoberta de novos desafios e actividades com frequência – idealmente de 40 em 40 segundos – e assim manter um ritmo de entretenimento eficaz para captar a atenção e a motivação do jogador.



Talvez o primeiro traço da radicalidade de Red Dead Redemption 2 seja o seu aparente desprezo pelas regras do género, em particular no que respeita aos títulos de categoria blockbuster dirigidos ao grande público tais como os recentes Assassin’s Creed Odyssey, Far Cry 5, Spider-Man ou Horizon Zero Dawn, entre tantos outros. Se não é verdadeiramente revolucionário, o recente título da Rockstar Games parece ir buscar inspiração a produções independentes como, por exemplo, os RPG clássicos ou jogos de simulação de sobrevivência; títulos que desafiam o jogador a “existir” num lugar, sujeitos às suas regras e aos seus tempos.

Em boa verdade, Red Dead Redemption 2 não parece ter urgência em conduzir o jogador pela mão ou levá-lo para onde está a acção. Após as primeiras missões introdutórias, em que são dadas a conhecer as mecânicas que lhe servem de base, o jogador é entregue à vastidão do horizonte e, acima de tudo, à lentidão do tempo e do espaço que ele encerra. É essa dimensão existencial que constitui o pano de fundo para a narrativa; um lugar onde o jogador é livre para se perder em busca da infindável flora e fauna, procurar tesouros perdidos, comer uma refeição ou embriagar-se no saloon local, tomar banho e dormir no hotel da cidade ou pernoitar num acampamento sob as estrelas. Subtilmente, é também durante esses aparentes interlúdios, os tempos que distam entre cada “missão” que faz avançar a narrativa, que muitas das estórias que a compõem nos são apresentadas.



Sobre tudo isto está a história de Arthur Morgan, um fora-da-lei, membro do gangue Van der Linde, liderado pelo carismático Dutch, nos idos de 1899. Sendo um retrato apocalíptico do fim do Velho Oeste perante a marcha imparável da civilização no dealbar do século XX, Red Dead Redemption 2 não se entrega a idealizações melancólicas quanto ao passado, implícito em toda a sua brutalidade sobre as muitas personagens que intersectam a vida do nosso anti-herói: nos nativos americanos, nos escravos, nas mulheres, nos vulneráveis. E, no entanto, se o passado é um lugar brutal, o futuro meramente parece erguer uma fachada de modernidade sobre a verdadeira natureza do Homem.

É neste contexto que a figura de Dutch van der Linde nos é revelada em todo o seu fascínio. Pois que, em boa verdade, este não é um mero gangue de foras-da-lei, mas antes um bando de proscritos. Dutch pode ser um líder implacável, mas é também alguém que exprime genuína compaixão pelos excluídos da sociedade. Muitos dos seus membros são almas perdidas, órfãos analfabetos, mulheres brutalizadas, a quem este ofereceu acolhimento e protecção. E, no entanto, Dutch parece colher um inusitado júbilo na dívida de gratidão daqueles que o rodeiam, cedendo à cólera quando questionado quanto à lucidez dos seus propósitos.

Inevitavelmente, o progressivo declínio mental de Dutch irá ditar o destino de Arthur Morgan, o seu braço direito. Arthur, um homem sem ambições de liderança, até então conformado na posição de número dois do gangue, acaba por ver-se confrontado com a urgência de assumir a iniciativa na salvação do grupo em tempos de desespero. O destino, por fim, ditará a necessidade de repensar as suas escolhas, num percurso em que, magistralmente, se conjuga a narrativa com a disrupção das convenções da própria jogabilidade – pois que as circunstâncias da sua vida irão impor a perda de faculdades, expressa na regressão das aptidões do jogador. E eis que um videojogo se torna veículo para contar, de forma experiencial, a frustração da nossa vulnerabilidade e, afinal, a fragilidade da condição humana.



Red Dead Redemption 2 ficará como uma das grandes histórias contadas sobre o formato de videojogo e Arthur Morgan ascenderá por certo ao panteão das grandes personagens com que este meio de expressão artística nos presenteou, inscrevendo-se também entre as grandes figuras do Velho Oeste, lado a lado com William Munny, com quem poderemos traçar maior paralelismo, ou nomes míticos tais como Shane, o Homem Sem Nome ou o xerife Will Kane.

Um conto universal sobre a vida, a morte e os laços que nos unem, num mundo onde a injustiça por vezes se abate sem qualquer sentido, mas onde, em singulares, silenciosos momentos, a felicidade com que sonhamos passa pelas nossas mãos, num tempo que não mais voltará.

The day is done, the time has come
You battled hard, the war is won
You did your worst
You tried your best
Now it's time to rest
Now it’s time to rest…

Ellis Marsalis, o professor de música


Ellis Marsalis, Jr. em Carrolton, Nova Orleães. Imagem via City Of Color.

Há quase trinta anos trouxe-me o destino às mãos o disco The Resolution of Romance – Standard Time, Vol. 3, de Wynton Marsalis. Os standards tocados com a eloquência clássica de Wynton são uma boa porta de entrada no jazz para principiantes. Ouvi-lo ao vivo no Coliseu dos Recreios no dia 24 de Junho de 1992, com uma primeira parte servida pelo lendário Cab Calloway, que faleceria apenas dois anos depois, foi por certo uma das grandes noites musicais da minha vida.

Se é verdade que o trompete nas mãos do magistral Wynton é um bom veículo para escancarar os horizontes do género para os mais leigos, era o som do piano que verdadeiramente me deslumbrava naquelas gravações. Viria, um pouco mais tarde, a descobrir tratar-se do seu pai, Ellis Marsalis, o homem por detrás daquele cair de notas. Se todos os grandes músicos têm uma voz própria, Ellis é, ao piano, incomparável. O som que o seu dedilhar extrai é diferente de todos os outros. É como se os seus dedos fossem de veludo, ou talvez seja apenas o fruto da alma imensa daquele coração de ouro – título de um dos seus primeiros álbuns.


Harry Connick, Jr. e Branford Marsalis no alpendre do Ellis Marsalis Center for Music, edifício integrado no projecto Musicians Village construído com o apoio da Habitat for Humanity.

Uma nota biográfica no iTunes lembra com ironia que Ellis teve de esperar que os seus filhos, Wynton e Branford, se tornassem famosos para ter finalmente a oportunidade de gravar com regularidade e receber o devido reconhecimento, há muito merecido. No entanto, perseguir uma carreira a solo ou partir em busca da celebridade nunca parecem ter sido objectivos na sua vida. Em boa verdade, o seu coração estava no ensino, actividade que pratica na sua cidade natal, Nova Orleães, há mais de meio século.

Foi como professor que deixou o seu maior legado. Entre os seus alunos passaram nomes como Terence Blanchard, Marlon Jordan, Donald Harrison e Harry Connick, Jr., este último figura bem conhecida, dentro como fora da música. Indiscutivelmente, na obra de todos estes músicos, bem visível na entoação de trompete de Wynton ou na forma de cantar de Connick, Jr., encontramos o modo peculiar de atacar a melodia do seu mestre.

Há uma fraseologia muito própria em Ellis Marsalis, um modo de retardar aqui e ali, quase fora de tempo, o cair das notas, enfatizando, de forma subtil mas imprevisível, cada música. Diferente de infindáveis interpretações dos mesmos standards nas mãos de tantos outros músicos. Só comparável, porventura, à sua maneira, com a angularidade única de Thelonious – ainda que sem os seus demónios.


Stardust, por Harry Connick, Jr., acompanhado ao piano por Ellis Marsalis.

Pianista extraordinário, figura mítica daquela que é a genuína música clássica Americana, Ellis é, também para quem ouve, um professor generoso. Ficam ligações para algumas das suas interpretações, especialmente dedicadas para aqueles que queiram aventurar-se, talvez pela primeira vez, nas paisagens abstractas do jazz, levados pelas mãos de um dos seus melhores representantes, agora e sempre.

A última viagem do Terror



Este texto contém spoilers sobre a série The Terror, co-produzida por Ridley Scott.

É um dos eventos televisivos do ano. Adaptação do livro de Dan Simmons com o mesmo nome, The Terror é a aventura ficcionada da expedição dos navios HMS Erebus e HMS Terror, entre 1845 e 1848, lançada com o objetivo de atravessar a mítica Passagem do Noroeste – a ligação marítima entre o Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico através dos perigosos estreitos gelados do Árctico.

Com a chancela da companhia de Ridley Scott e o seu envolvimento na produção executiva, a série conta com a presença de grandes actores britânicos, com destaque para as interpretações de Jared Harris, Tobias Menzies, Paul Ready e Adam Nagaitis, do veterano irlandês Ciarán Hinds e ainda Nive Nielsen, actriz e cantora nascida na Gronelândia, no papel de uma misteriosa shaman Inuk conhecida apenas como Lady Silence.

Tendo como pano de fundo o retrato exaustivo do modo de vida a bordo de um navio expedicionário em meados do século XIX, The Terror é, acima de tudo, a crónica de uma viagem de infortúnio que se viria a revelar no maior desastre da campanha de exploração marítima da região polar na história da Marinha Real Britânica. Com a chegada do primeiro inverno, os dois navios da expedição comandada pelo Capitão Sir John Franklin ficariam encalhados no gelo, num dos muitos canais profundos entre as ilhas que compõem o Arquipélago Árctico Canadiano, condição que se prolongaria pelos anos seguintes.

Apesar dos esforços inéditos investidos pelas autoridades Britânicas na preparação da expedição – tratando-se dos primeiros navios da Marinha Real a dispor de propulsão mecânica, com motores a vapor e hélices em parafuso, para além de um casco reforçado para resistir à pressão do gelo – contando ainda com uma forte provisão de mantimentos, a longa temporada acabaria por impor condições de sobrevivência extremamente difíceis para toda a tripulação. Por fim, o desespero causado pelas muitas dificuldades vividas a bordo, entre as quais a doença e uma perigosa contaminação alimentar, motivaria a difícil decisão de partir, a pé, em direcção ao Canadá, numa travessia através da paisagem inóspita da região polar de mais de mil quilómetros.

Sendo certo que The Terror nos apresenta uma narrativa ficcionada, não faltando a dimensão do fantástico materializada pela presença de um estranho monstro – porventura manifestação do espírito primitivo evocativo de uma antiga lenda inuíte – não é menos verdade que a série é sustentada pela reconstrução minuciosa da realidade da Expedição Franklin. Para tal serviu não apenas o detalhe literário da novela de Dan Simmons, publicada em 2007, mas também a informação recolhida já nesta década com a descoberta dos destroços das duas embarcações: primeiro o HMS Erebus, encontrado no fundo do mar a oeste da Península Adelaide, no dia 7 de Setembro de 2014, e depois o HMS Terror, a 11 de Setembro de 2016, afundado a sudoeste da costa da Ilha do Rei Guilherme; ambos em excelente estado de conservação, a cerca de cem quilómetros de distância um do outro.

Longe de ser uma epopeia épica ou uma história de aventuras, The Terror é um retrato impiedoso dos processos de desagregação humana numa situação de grande isolamento, bem como dos esforços corajosos levados a cabo pelos seus comandantes na tentativa de manter viva a esperança e o sentido de disciplina dos seus homens. Que o verdadeiro terror, afinal, pode não ser o monstro do desconhecido, oculto algures lá fora na escuridão gelada, mas os horrores trazidos pelos próprios viajantes, nos lugares impenetráveis da mente.

Exposição Montemor-o-Novo, cidade como tema (fotos)



A exposição «Montemor-o-Novo, cidade como tema» vai estar patente (numa 1ª fase) durante a primeira quinzena de Junho n’O Espaço do Tempo, o centro de artes transdisciplinares situado no Convento de Nossa Senhora da Saudação.

Os trabalhos de projecto desenvolvidos pelos alunos de Mestrado Integrado em Arquitectura da Universidade de Évora debruçam-se sobre diversos locais importantes de Montemor-o-Novo, apresentando intervenções possíveis, por vezes pragmáticas, outras utópicas, mas sempre estimulantes como forma de refletir sobre os muitos potenciais adormecidos no nosso ambiente construído. Destaque para as ideias apresentadas para a zona do centro histórico da cidade (Convento da Saudação e Quarteirão do Almansor), da Avenida, do Rossio (Praça de Touros, terreno nas traseiras dos prédios da Rua D. Sancho, Antigo Matadouro Municipal), zona da Antiga Estação de Comboios, do Mercado Municipal e ainda do Moinho da Abóbada (também conhecido como Moinho do Chico Virtuoso).

Ficam algumas fotografias da exposição, incluindo imagens da sessão de apresentação dos trabalhos pelos alunos, com a presença dos professores João Barros Matos e Pedro Pacheco, e ainda do coreógrafo Rui Horta e do arquitecto convidado João Mendes Ribeiro. Mais imagens serão partilhadas nos próximos dias através do Instagram.






Exposição Montemor-o-Novo, cidade como tema



Montemor-o-Novo, cidade como tema é uma exposição dos alunos de Mestrado Integrado em Arquitectura da Universidade de Évora, com coordenação dos professores João Barros Matos e Pedro Pacheco. A exposição inaugura já na próxima sexta-feira, dia 1 de Junho, pelas 17h00, estando patente n’O Espaço do Tempo, o centro de artes transdisciplinares dirigido pelo coreógrafo Rui Horta e situado no Convento de Nossa Senhora da Saudação, em pleno recinto monumental do castelo da cidade.

Educação para a vida online



O que não deixa de ser curioso no seu discurso (…) é o facto de todo ele tentar encerrar-se em questões de natureza técnica, repelindo qualquer reflexão cultural sobre o Facebook. Mais exactamente: Zuckerberg não quer (ou não é capaz de) reconhecer que qualquer dispositivo técnico – para mais com a dimensão planetária que o seu negócio adquiriu – envolve sempre os modos de viver, pensar e comunicar dos cidadãos, quer dizer, os valores da sua existência. Numa palavra: a sua cultura.
— João Lopes, Facebook: os "erros" de Mark Zuckerberg.

O recente escândalo que envolveu a Cambridge Analytica, uma empresa de consultoria política sediada em Londres que levou a cabo uma operação de data-harvesting em larga escala através do Facebook, vem lembrar-nos de uma frase que se popularizou na internet: se não estás a pagar por um serviço, não és o cliente; és o produto que está a ser vendido.

Com o conhecimento que hoje podemos ter sobre a actividade das grandes empresas que dominam o tráfego na rede, onde se destacam a Google – também proprietária do YouTube – e o Facebook, não deixa de surpreender o facto de grande parte do público desconhecer aspectos básicos do modo como estes gigantes operam. São curiosos alguns desabafos mais singelos de utilizadores que falam “do seu Facebook”, ignorando não só que o lugar que ocupam na plataforma de Mark Zuckerberg não é um espaço privado individual seu, como não é sequer um espaço público onde todos podem ver aquilo que partilham. Trata-se, afinal, de um espaço privado de outrem; uma empresa de informação privada que vende o seu público – todos nós – a um vasto conjunto de empresas e serviços – tais como a Cambridge Analytica.

O sucesso que corporações como o Facebook ou a Google foram capazes de alcançar depende grandemente do conhecimento profundo que estas empresas reúnem a nosso respeito a partir da monitorização de tudo o que fazemos enquanto estamos online, traçando automaticamente, através de poderosos sistemas de processamento de informação, perfis muito complexos sobre aquilo que somos, as nossas tendências e preferências. Num tempo em que a atuação destas plataformas se revela tão intrusiva sobre as vidas de cada um de nós, importa ainda mais ter presente que a acção destas páginas e, acima de tudo, a informação que recolhem, vai muito para lá das coisas que escrevemos ou partilhamos, dos comentários ou dos “gostos” que exprimimos na rede.



Ainda e sempre, não se trata de demonizar o Facebook (…). Trata-se tão só, para já, de contrariar a perspectiva tecnocrática – também política, sem dúvida – segundo a qual se está apenas a viver um percalço técnico. Importa exigir um pouco mais de todos nós e perguntar de onde vem – e, sobretudo, para onde vai – esta cultura virtual que leva milhões de pessoas a tratar muitos dados da sua identidade (social, familiar, muitas vezes íntima) como coisa partilhável com uma empresa gerada na perspectiva de angariar gigantescas receitas publicitárias. Se não soubermos formular tal questão, então devemos concluir que aquilo que oferecemos ao Facebook envolve o nosso próprio conceito de humanidade.
— João Lopes, Facebook: o alarmismo mediático.

Somos nós, afinal, que construímos, voluntariamente, ao passo e passo de cada post e like, ou involuntariamente, através das aplicações que instalamos nos tablets e telemóveis, os nossos perfis pessoais nas bases de dados destas corporações privadas. Importa por isso dramatizar junto do público, e em especial dos mais jovens, o modo como tudo aquilo que hoje fazemos se pode vir a repercutir no futuro.

Em alguns países, em particular nos Estados Unidos, é já uma prática regular de grandes empresas ter em conta a identidade online dos candidatos em processos de contratação – recorrendo para isso a consultoras altamente especializadas. No momento em que o candidato se apresenta numa entrevista de emprego, caso tenha sido pré-seleccionado, o júri já tem em sua posse um perfil pré-elaborado daquele indivíduo que se estende desde as suas preferências e orientações pessoais, simpatias políticas, gostos, actividades e até mesmo traços da sua personalidade: se social ou introvertido, dinâmico ou passivo, reactivo ou pensativo, etc.

É sabido que em muitas universidades americanas os departamentos de admissão também procedem ao escrutínio prévio do perfil dos candidatos na internet, aconselhando os alunos a removerem imagens lesivas, mensagens de cariz político ou humor considerado inadequado ou ofensivo. E são também conhecidos alguns casos em que episódios mais controversos de exposição da vida privada se revelaram, anos mais tarde, obstáculos inadvertidos ao avanço de carreiras profissionais e políticas.

Existem muitas formas de encarar esta realidade que tenderá a universalizar-se. Podemos optar pelo silêncio, procurando eliminar os traços da nossa pegada digital, ou podemos, em alternativa, assumir de forma consciente os riscos e as consequências de viver este nosso tempo. Mas, para que cada um possa verdadeiramente escolher, é fundamental estar informado quanto ao alcance e à complexidade deste novo meio que habitamos, e esse saber deve envolver todos os cidadãos, pais, professores, especialistas, com o apoio do Estado e o suporte esclarecido dos meios de comunicação. Caso contrário, serão as gerações mais novas que pagarão o maior preço, crescendo por defeito num mundo cheio de armadilhas. Tão apelativo, agora, quanto perigoso, anos mais tarde.

Os blogues ainda resistem?



No Verão de 2007 teve lugar na cidade de Nova Iorque o Postopolis!. Promovido pela Storefront for Art and Architecture, o evento era organizado por quatro bloggers muito conhecidos e teve por base uma série de debates e conversas com especialistas das mais diversas disciplinas, incluindo domínios exteriores à arquitectura tais como o design, paisagismo, ecologia e sustentabilidade, arte digital, música, cinema ou jornalismo. Nos cinco dias em que decorreu o evento, transmitido em directo para todo o mundo, passaram pela icónica galeria nova-iorquina desenhada por Steven Holl e Vito Acconci figuras incontornáveis como Lebbeus Woods, Mark Wigley e Michael Sorkin, entre tantos outros.

O Postopolis! sinalizava o alcance pluridisciplinar da blogosfera de arquitectura, caracterizando-se tanto pela informalidade da abordagem como pela capacidade de promover uma interacção directa entre leitores e criadores de conteúdos, convocando bloggers, a academia e o público.

Apenas uma década passada podemos verificar o quanto mudou a paisagem do mundo online. A ascensão das redes sociais ditou a secundarização da blogosfera enquanto espaço de debate público na internet. No caso da arquitectura, muitos dos principais blogues de então desapareceram, em especial os de autoria individual, e os que ficaram evoluíram do formato blogue para se assumirem como autênticas plataformas de divulgação de conteúdos. O universo da opinião e da crítica deu lugar a um vasto caudal de informação asséptica assente na divulgação descontextualizada de imagens, entre pré-visualizações de projectos virtuais a fotografias profissionais de obras construídas.

Os sítios de maior visibilidade são hoje agregadores de informação e competem para partilhar o mais recente material visual disponível na rede aos seus leitores. Press-releases corporativos são publicados em apenas alguns minutos numa competição frenética onde todos tentam chegar em primeiro lugar, sem que lhes seja aditado contexto ou reflexão, sem tempo para elaborar um olhar crítico mais aprofundado.

Apesar de todas as contradições que marcaram o fenómeno da blogosfera é inquestionável que os blogues tiveram um papel determinante na definição de um espaço público global sem precedentes na História, protagonizando a primeira vaga de expressão individual na Internet com repercussão no mundo exterior. Na sua subjectividade, no seu descontrolado imediatismo, os blogues abriram uma constelação de novos lugares de expressão pessoal capazes de estabelecer infinitas ligações entre si, no directo da rede.

Alimentando a ilusão de uma horizontalidade democrática, importa reconhecer que os blogues deram também corpo a manifestações de grande toxicidade e, por vezes, de devastadora terraplanagem intelectual. Não estando sujeitos aos constrangimentos de uma supervisão editorial – com toda a responsabilidade pública ou institucional que esse exercício encerra – os blogues ensaiavam-se sem escrutínio prévio, não tendo monitores e sem responder perante ninguém. Para o bem, e para o mal, aí residia a sua força e, como seria fácil de depreender, a sua latente fraqueza.

Talvez tenham sido os ecos dessa rede contraditória e caótica feita de mil egos à solta – como caricaturava Pacheco Pereira n’A cultura de blogue nacional – a motivar o desinteresse generalizado das universidades por esta nova infraestrutura de comunicação, porventura por pudor em concorrer com o ruído emergente de uma multidão de vozes não credenciadas. Prevaleceu assim entre nós o distanciamento das academias e da generalidade da crítica quanto a este espaço de debate de ideias, tornando inimaginável uma experiência semelhante àquela que o Postopolis! protagonizara de forma tão cosmopolita e promissora.

Chegados aqui vale a pena reflectir sobre o momento crítico que hoje vive a Internet. A ascensão das novas plataformas, em particular as redes sociais, relevaram o fenómeno blogue para longe dos holofotes mediáticos e vieram conformar uma nova paisagem corporativa da comunicação global. Nesta realidade, o caos e a anarquia do passado – mas também a liberdade de expressão e o pluralismo – estão a dar lugar a um panorama onde um conjunto reduzido de mega-empresas detém o domínio dos principais veículos de transmissão da informação.

Em resultado da consolidação deste oligopólio assistimos à tendência para a conformação de uma Internet subjugada a sofisticados mecanismos de selecção e filtragem de conteúdos, constituindo, em alguns casos, formas insidiosas de censura automática através de complexos algoritmos, tais como a ocultação de resultados de busca no Google, a desmonetização de conteúdos no YouTube ou ainda a utilização de técnicas de ghost-deleting no Facebook, no Twitter e nos espaços de comentário em inúmeras plataformas digitais.

A eficácia destes mecanismos deriva directamente da desfragmentação do factor humano na mediação do conhecimento através da Internet, onde os blogues constituíram, no passado recente, um exemplo particularmente bem-sucedido de debate público, divulgação e confronto de ideias. Perante os riscos que tal introduz, em concreto pela perda de uma curadoria humanizada do saber, importa mais do que nunca resistir ao predomínio da cultura do mínimo denominador comum, dos gostos e das partilhas das redes sociais, ou à imposição de restrições ao pensamento em função daquilo que corporações privadas julgam ser ou não aceitável.

Se os blogues deixaram de fazer sentido enquanto fenómeno mediático do momento – que porventura nunca voltarão a ser – talvez o seu papel enquanto espaço de resistência crítica seja hoje mais relevante do que nunca, na arquitectura e em tudo aquilo que nos rodeia. Num tempo em que múltiplas crises se intersectam, um pouco por toda a parte, é ainda mais urgente instituir referências de saber que nos permitam em conjunto, de forma colaborativa e livre, vislumbrar o sentido do mundo, sempre tão difícil de conhecer e interpretar.