Paroxismos

Image credits: Iñaki Otaola.

O cidadão avisado tenderá a franzir o nariz sempre que um comentador se entrega ao exercício de presumir o que “as pessoas” pensam. “As pessoas” serão, à luz das sábias luminárias que comentam os assuntos do dia na televisão, nos jornais e nos blogues, uma massa de pouca espessura mental cujo pensamento pode ser rigorosa e cientificamente auscultado através do mural do Facebook.

Com a emotividade própria de um ambiente regido pela falta de lucidez dos intervenientes a detenção do ex-primeiro-ministro motivou os maiores paroxismos. É verdade que o caso é notável e é grave seja qual for o desfecho do processo. Mas só o imediatismo dos dias pode motivar as vozes que nos querem fazer querer que está em causa o regime. Outros temas deviam merecer tal preocupação – os níveis elevados de desemprego, o empobrecimento crónico, a elevada emigração jovem, a baixa natalidade – não a possível acusação de um ex-dirigente político que, mesmo ao mais alto nível, não será caso inédito na Europa ou no mundo. E no entanto parece certo que uma boa orquestra de profissionais de comunicação irá arrastar o esqueleto de Sócrates até às próximas eleições legislativas.

Ora o caso, na sua dimensão política, é este: os portugueses já resolveram a “questão Sócrates” em 2011 – e resolveram-na com as alternativas políticas apresentadas pelos partidos com representação parlamentar. Se eram más opções, ou não, é algo que nos deve remeter para a velha frase de Winston Churchill para quem a democracia era a pior forma de governo, depois de todas as outras que já foram experimentadas.

Não está aqui em causa uma discussão sobre a idoneidade de José Sócrates. Ele poderá ser odioso. Pode até vir a revelar-se culpado. Mas a presunção de inocência é mesmo para levar a sério num Estado de Direito, pelo menos por aqueles que se queiram levar a sério no espaço público.¹

Mais importante ainda, vem agora um coro de vozes apresentar Sócrates como o “culpado disto tudo”, símbolo maior de todos os males de que enferma a classe política. Ora o aspecto perigoso que decorre dessa fogueira inquisitorial é fazer da crucificação de um ex-político um exercício de redenção de todos aqueles que instrumentalizaram o poder governamental durante décadas. Os banqueiros e os construtores civis com os seus consórcios, os advogados e outros intermediários com as suas ramificações ocultas para dentro dos partidos, mil e um empresários e os seus negócios privilegiados com ou através do Estado, os titulares de cargos nas principais áreas sectoriais da administração pública e tantos outros actores do sistema político e económico.

Não bastando a personalização de todas culpas, vem um artigo de opinião publicado no sítio web do Instituto Mises Portugal inferir que o processo movido ao ex-primeiro-ministro José Sócrates é também o julgamento de um país e de um povo que gerou políticos à sua imagem. Deve dizer-se, independentemente da distância que possamos ter com a orientação política daquele think-tank, que o texto em questão é próprio dos padrões da blogosfera caceteira e seria de impensável publicação na página-mãe daquele instituto. O entusiasmo que o move é tal que nem tem o pudor de esconder o seu desdém pelo sistema democrático. Mas importa denunciar o bias tóxico que está subjacente àquela prelecção moralista. É que se o país gerou políticos à sua imagem, gerou de igual modo banqueiros à sua imagem, e gerou empresários, construtores civis, advogados, jornalistas, bloggers e tudo o mais à sua imagem.

Já o povo, essa massa que os comentadores tanto gostam de interpretar com condescendência e desconsideração, não se move pelos partidos nem chega às administrações de bancos e empresas, não redige estudos para os governos nem escreve para os jornais. Pelo contrário, vive amarrado a um dia a dia, mês a mês, com o seu espaço de liberdade restringido pelas limitações da sua conta mensal, e não é chamado a votar para este peditório.

¹Adenda: a este respeito vale a pena sublinhar o comentário de António Bagão Félix, que não é estranho à preocupação com a ética em democracia, dizendo que sobre isto eu também tenho a minha opinião mas deixo-a em casa.

6 comentários:

  1. Daniel não sei se é um caso daqueles ao estilo do copo meio cheio, que eu confesso ver sempre meio vazio.
    Mas onde vês um coro de gente considerando Sócrates como o culpado disto tudo, eu vejo um coro de gente apresentando-o como o inocente disto tudo, desde o MRPP clamando que está em curso um golpe de estado, aos quase engraçados do Eixo do Mal, a relapsa Clara Ferreira Alves outra vez num jornal, o Marinho e Pinto, dizem-me que o Alberto João Jardim, logo nos primeiros minutos o João Soares, Pinto Monteiro (além de um almoço dias antes)… são tantos… podes já juntar para breve um Proença de Carvalho, um Júdice…
    Se o MRPP é anedótico, muita desta gente não disse muito menos e de forma vagamente menos anedótica, colocando de facto em causa o estado de direito, o que aliás, foi amplamente conseguido pelo próprio Sócrates durante anos. E não são assuntos que se resolvam em eleições. Nem o não ser eleito faz dele culpado, nem o ser eleito o torna inocente (veja-se Fátima Felgueiras, Isaltino, Valentim Loureiro ou o cacique do Marco de Canavezes, todos a clamar inocência por via eleitoral).
    Nesse sentido (o de colocar o estado de direito em causa) veja-se mais uma vez a actuação de Mário Soares. É repugnante. Confesso que me custa a ver onde está o tal coro de vozes… e ainda a procissão vai no adro. -- José Rui

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  2. José Rui, obrigado pela visita.

    Acho que o Proença de Carvalho e o Júdice também já vieram a terreiro. ;)

    O caso tem mesmo dois lados, é verdade. E as crises existenciais paroxísmicas estão a ocorrer em todos os campos.

    Também achei curiosa a preocupação da comunicação social com o alarme social, expressão repetida à exaustão na longa noite de domingo, quando os mesmos canais noticiosos fomentavam o caso em toda a sua emotividade. Bem brincava o Bruno Nogueira, que só faltava uma contagem "três, dois, um" para o anúncio das medidas de coacção.

    Em tudo isto temos pouca lucidez e ponderação, mas é a cultura (i)mediática em que vivemos.

    Acompanho a caracterização que descreves. Somo-lhe apenas o olhar alargado ao outro lado - é ver o Blasfémias, o Insurgente, o 31 da Armada, ou os comentadores do Observador, do Económico e demais - para testemunhar a exploração limite do jogo da culpa.

    Ainda a procissão vai no adro como dizes, e vai ser um espectáculo triste de assistir dos dois lados dessa barricada de maniqueísmo.

    O mais engraçado, agora com alguma distância, é que José Sócrates é uma personagem fascinante, nas virtudes e nos defeitos, tolhido por um cabotinismo trágico que o faz colocar-se no centro do palco contra o que recomendaria toda a prudência. Se isto fosse a América de Hollywood já um Oliver Stone estaria a fazer um filme sobre o nosso ex-primeiro-ministro. E que interessante retrato seria deste período de vida da nossa democracia e da história recente da nação, e que interessantes personagens secundários por ali passariam.

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  3. E por falar em paroxismos, já viste o filme "Hysteria"? É "delicioso", para usar o verbatim do Prof. Júlio Machado Vaz.

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  4. Não vi, mas vou ver então :) .

    Sobre o coro, repara que desse calibre, arranjas muitos a dizer o inverso. Já não é blogo que frequente, mas no Jugular ou Câmara Corporativa (se me lembro) devem andar consternados…
    No resto, o panorama é muito diferente. O maquiavel das beiras, Proença de Carvalho já ditou que o juíz é de tabóides, Pinto Monteiro anda preocupado com o segredo de justiça, não com jantares, nem com o que aconteceu no tempo dele, designadamente fuga de informação em sede de investigação, que permitiu ao Vara saber que estava a ser escutado, ou não anda preocupado com escutas que implicavam este indivíduo preso, cortadas à tesoura…
    O Proença de Carvalho é à décadas um autêntico catalizador de corrupção e quando a coisa começa a cheirar a queimado, funciona como retardante e tem funcionado bem.
    Quando foi o caso Casa Pia, alguns dos mesmos actores tentaram a mesma tese, a mesma abjecção e no fim conseguiram mudar a lei de modo a que 500 crimes continuados sobre uma criança fossem iguais a um. Isto é gente que não olha a meios para se safar.
    No caso Sócrates, fala-se em 25 milhões, mas os documentos que foram divulgados de uma off shore da família demonstram 100 milhões movimentados… tudo feito em paralelo, enquanto conduzia o país para outra bancarrota, noutra intervenção do FMI.
    Este indivíduo quando foi denunciado pelo António Balbino Caldeira, utilizou todos os meios "democráticos" ao seu dispôr para o intimidar, prejudicar e liquidar como cidadão — e no entanto os factos mantêm-se, o trafulha nem engenheiro é de nada. Nem tem pós-graduação de nada. E esta pseudo-tese que alguém lhe escreveu enquanto era turista de luxo em Paris, pelos vistos compra exemplares à dezenas de milhar… enfim, como diria alguém no início do século XX, vão -se descendo os degraus da abjecção até à miséria integral. -- José Rui

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  5. Só mais duas coisinhas:
    A consternação nos meios oficiais do regime, agarra o segredo de justiça (o Ferro Rodrigues quando lhe tocou exclamou logo que "me estou cagando para o segredo de justiça") e em algo vagamente abstrato que é este desenrolar de acontecimentos ser mau para a democracia e para a imagem do país.
    É uma tese de facto ao nível de um engenheiro Sócrates… porque bom para a democracia foi ter um primeiro ministro deste jaez, que seguindo o percurso normal, com jeitinho ia para presidente da república. Isso é que é bom para a democracia! Nesse sentido, estou indeciso, sobre se não será exactamente o presidente que a república merece.
    Sobre o texto do Mises que não li, também tem um fundo de verdade. Eu conheço pessoalmente gente que admira José Sócrates pela capacidade invulgar de ser videirinho… e no fundo, queriam ser como ele. Ou como o amigo Vara, que sobe de caixa da CGD em alguidares de baixo, para senhor administrador do BCP (é ver como ficou o BCP depois de ser tomado de assalto por essa gente, com a ajuda do amigo Constâncio). Este tipo de videirinhos é admirado por uma franja da sociedade portuguesa muito maior do que eu gostaria de admitir. E é dessa franja que têm saído muitos dos políticos. A elite dos videirinhos.

    E desculpa ter tomado de assalto os teus comentários! :) -- José Rui

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  6. José, desculpa a demora, tenho passado demasiado tempo debaixo do capot do blogue. Deixo-te algumas observações.

    Não tenho perdido muito tempo a ler notícias sobre o caso Sócrates. Quantos milhões, onde, etc. Por um motivo simples. Porque já deviamos ter aprendido com outros casos mediáticos recentes o que vale a informação proveniente de "fontes próximas da Justiça".

    Sobre o caso Casa Pia, ou o caso McCann, pudemos ler nos jornais durante mais de um ano "tudo" e "o seu contrário". Literalmente. Deviamos aprender com isso quando nos querem levar novamente neste carrossel.

    Citas a frase de Ferro Rodrigues sobre o segredo de justiça, e vários blogues (invariavelmente da direita) a têm trazido agora à memória. Ora aí está um caso sério de reflexão.

    O que temos ali. Uma frase gravada de uma escuta, feita no âmbito do processo Casa Pia. Ou seja, tens uma escuta ao líder do maior partido da oposição (à data), sobre nada de relevante para o caso, trazida para a comunicação social.

    Eu não sei se as pessoas não têm a noção da gravidade disto. Ah, o célebre direito à informação. O que está ali em causa é uma escuta que "o público não tem o direito de saber" e "o escutado tem o direito de que não se saiba". Como é que aquela escuta, repito, ao líder do maior partido da oposição, chega à comunicação social sem que haja sérias consequências no sistema judicial?

    Só num país das bananas.

    Eu não digo que a matéria de escutas não possa ser de interesse público e jornalístico. Se estivéssemos a falar de conversas que presumem responsabilidades de prática de corrupção ou crime. Mas não de todo isso que estava ali em causa. Ali tratava-se de matar politicamente um líder de um partido.

    Por isso digo que nestas coisas já temos lastro suficiente para assumir distância da mediatização de casos de justiça e das informações bombásticas que vão sendo lançadas sobre a opinião pública. Caso contrário aí vamos nós, o público feito manada, agora a apontar o dedo, depois a perdoar, ao sabor de gente sem escrúpulos que há sempre dos dois lados da barricada.

    Abraço!

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