Serão os homossexuais um grupo de desviantes sexuais com a intenção de minar a instituição do matrimónio, ou apenas pessoas perfeitamente normais que se apaixonam e querem casar?
A enorme fila de casais gay que se reuniu à porta do City Hall de São Francisco durante esta semana não era composta daquelas personagens que percorrem as paradas de orgulho gay: travestis em topless, motoqueiros com correntes e cabedal, drag queens e esse tipo de coisa. Em vez disso, as imagens mostravam casais apaixonados aguardando horas e mesmo dias pela oportunidade de casar, pessoas aparentemente iguais a tantas outras à espera de concretizar o seu sonho.
A verdade é que os três mil casais gay reunidos em São Francisco não seriam capazes de infligir uma pequena parte do prejuízo feito ao matrimónio enquanto instituição, como fez Britney Spears no seu mini-casamento em Las Vegas fruto de um fim de semana de bebedeira. Ao surgir a oportunidade de tomar parte numa cerimónia tão importante e solene como o casamento, a comunidade gay de São Francisco apareceu em grande compostura, tratando o momento com a seriedade e alegria que merece. E apesar da tentativa de interpor uma proibição ao casamento gay que a direita conservadora americana (com o patrocínio do Presidente Bush) tentou promover, sente-se o aroma da inevitabilidade histórica no ar, uma espécie de lucidez cultural que começa a descer à terra.
Existe um problema com a nossa sociedade, que é o de não exprimir em relação a cada um de nós uma verdadeira preocupação com o bem estar, se somos felizes, se sentimos estar a fazer as escolhas acertadas para a nossa vida. No entanto, já lhe é relevante aquilo que fazemos, com quem o fazemos e porquê. Ora o amor, nas suas várias formas, é um bem precioso. Não estou a falar do lirismo apaixonado dos namorados, mas do amor construído da vida a dois que resiste à passagem dos momentos difíceis. O amor e a família é algo que deve ser preservado e cabe à sociedade ajudar a defender aqueles que resolvem criar um núcleo familiar, uma estrutura estável para as suas vidas futuras. Por isso acolho bem a notícia de que o casamento gay começa a ser consagrado nos Estados Unidos, esperando que se venha a alastrar aos restantes países ditos desenvolvidos.
A realidade é que o nosso país está bem mais próximo das declarações recentes de Luís Villas-Boas (Presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção Portuguesa) do que muitos de nós gostaríamos de admitir. Para além das suas considerações gerais em relação à homossexualidade, é certamente digna de registo a sua sentença final, de que é preferível uma criança passar toda a vida numa instituição ou em famílias de acolhimento à infelicidade de ser educada por homossexuais. Argumenta Villas-Boas que uma criança não deve nunca ser adoptada por homossexuais porque tal iria interferir com a sua sexualidade natural, além de que ser lésbica não é ser mulher na plenitude natural do termo.
O Professor Júlio Machado Vaz, na sua crónica matinal na Antena 1, ofereceu uma boa resposta a estes argumentos: levado ao absurdo, se a orientação sexual dos pais é determinante para a orientação sexual futura do filho, então não existiriam homossexuais filhos de pais heterossexuais (logo não existiriam homossexuais). Mas, mais importante, existem estudos estatísticos que parecem evidenciar não existir uma correlação entre uma coisa e outra, ou seja, uma maior percentagem de filhos homossexuais criados em lares de pais do mesmo sexo, relativamente aos filhos criados de pais heterossexuais.
Estes dados sustentam-se na orientação que instituições como a Associação Americana de Psiquiatria (APA), têm manifestado em relação ao seu apoio a medidas que permitam aos casais de pessoas do mesmo sexo a adopção de crianças e à concessão de todos os direitos, benefícios e responsabilidades decorrentes da adopção que decorram de tais medidas. Suportam esta ideia acrescentando que investigações realizadas nos últimos 30 anos demonstram, de forma consistente, que as crianças criadas por pais homossexuais têm o mesmo nível de funcionamento emocional, cognitivo, social e sexual que as crianças criadas por pais heterossexuais. Os estudos citados pela APA demonstram de forma repetida que são o afecto e o empenho dos pais – e não a orientação sexual – que constituem os factores decisivos para que as crianças cresçam e se tornem adultos estáveis e saudáveis. Esta orientação relativa à adopção por parte de casais homossexuais é também partilhada pela Associação Americana de Psiquiatras Infantis e Juvenis e a Associação Americana de Médicos de Família.
A adopção enquanto tal é um direito para as crianças que devem usufruir do amor, carinho e atenção de uma família seja ela qual for desde que se disponha a corresponder às necessidades dessa mesma. A sociedade tem de assumir o seu papel, que cumpre em dotar o maior número de casais possível da capacidade de poder dar o seu amor a crianças, cumprindo o estado o seu papel de auxílio e cooperação, de defesa da família, nas suas diversas formas. E isto é mais que uma verdade ideológica, é uma necessidade e, repito-o, uma inevitabilidade histórica.
Adenda (2004-02-28): Eu errei. A afirmação de que "em Portugal os casais gay nem sequer podem alcançar reconhecimento legal por via da união de facto" não é verdadeira, e sustentava-se num documento da Associação ILGA Portugal que fora redigido em 2000. A Lei Nº7 de 2001, de 11 de Maio, veio consagrar a união de facto a casais que vivam juntos há mais de dois anos, independentemente do sexo. Peço desculpa pelo meu erro, ficando aqui a devida correcção dos factos.