Muito embora as palavras continuem a ser as mesmas, as noções de separação, de ausência, de distância, de retorno, já não contêm as mesmas realidades. Para a compreensão do mundo de hoje, usamos uma linguagem criada para o mundo de ontem. E afigura-se-nos que a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza pela única razão de corresponder melhor à nossa linguagem.
Imagem do livro Saint-Exupéry - Le Dernier Vol, de Hugo Pratt.
Se julgamos que a máquina deita o homem a perder, é talvez porque necessitamos de recuar um pouco para apreciar os efeitos de tão rápidas transformações como aquelas por que temos passado. Que são os cem anos da história da máquina, à vista dos dois mil e cem anos da história do homem? Quase que ainda nos não instalámos nesta paisagem de minas e de centrais eléctricas. A bem dizer, mal começámos a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir. Tudo mudou tão depressa à nossa volta: relações humanas, condições de trabalho, costumes. A nossa própria psicologia foi abalada nas suas bases mais profundas. Muito embora as palavras continuem a ser as mesmas, as noções de separação, de ausência, de distância, de retorno, já não contêm as mesmas realidades. Para a compreensão do mundo de hoje, usamos uma linguagem criada para o mundo de ontem. E afigura-se-nos que a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza pela única razão de corresponder melhor à nossa linguagem.
Cada progresso nos empurrou um pouco mais para fora de hábitos que mal acabáramos de adquirir, e em boa verdade somos emigrantes que ainda não fundaram a sua pátria.
Somos todos bárbaros jovens a quem os novos brinquedos ainda deslumbram. Outro significado não têm as corridas de aviões. Aquele sobe mais alto, corre mais depressa. Esquecemos por que motivo o fazemos correr. Temporariamente, a corrida sobreleva ao próprio objectivo. E é sempre a mesma coisa. Para o colonial que funda um império, o sentido da vida é conquistar. O soldado despreza o colono. Mas o alvo dessa conquista não era a fixação desse colono? Assim, na exaltação dos nossos progressos, temos obrigado os homens a trabalhar como escravos no assentamento de vias férreas, na construção de fábricas, na perfuração de poços de petróleo. Esqueceramo-nos um pouco de que levávamos a efeito esses trabalhos para servir os homens. Enquanto durou a conquista, a nossa moral foi moral de soldados. Mas agora, é-nos mister colonizar. É-nos mister tornar viva essa casa nova ainda sem rosto. A verdade para um foi construir, para outro é habitar.
Pouco a pouco, a nossa casa há-de tornar-se mais humana. A própria máquina, quanto mais se aperfeiçoa, mais se apaga à sombra do seu papel. Dir-se-ia que todo o esforço industrial do homem, todos os seus cálculos, todas as suas noites de vigília sobre os desenhos, não conduzem, ao que parece, senão à mera simplicidade, como se fosse precisa a experiência de várias gerações para, a pouco e pouco, dar forma à curva duma coluna, duma quilha ou da fuselagem dum avião, até lhes transmitir a pureza elementar da curva dum seio ou duma espádua. Tem-se a impressão de que o labor dos engenheiros, dos desenhadores, dos calculadores dos gabinetes de estudos não será, portanto, na aparência, senão o de polir e encobrir, aligeirar esta juntura, equilibrar esta asa, até não darmos já por ela, até deixar de ser uma asa presa a uma fuselagem, para se tornar uma forma perfeitamente desabrochada, liberta enfim da sua ganga, uma espécie de conjunto espontâneo, misteriosamente coeso e de natureza análoga à do poema. Daí a ideia de que a perfeição é alcançada não quando nada mais há a acrescentar, mas quando nada mais há a suprimir. No fim da sua evolução a máquina dissimula-se.
A perfeição do invento confina assim com a ausência do invento. E do mesmo modo que no instrumento toda a mecânica aparente a pouco e pouco desapareceu, e nos é entregue um objecto tão natural como um seixo polido pelo mar, é igualmente admirável que, até no seu próprio emprego, a máquina se faça a pouco e pouco esquecer.
Outrora achávamo-nos em contacto com uma fábrica complicada. Hoje, porém, esquecemo-nos de que um motor está em funcionamento. Ele corresponde afinal à sua função, que é a de rodar, como o pulsar dum coração, e nós nem sequer atentamos no pulsar do nosso coração. Essa atenção já não é absorvida pelo utensílio. Para além do utensílio e através dele, é a velha Natureza que tornamos a encontrar: a do jardineiro, do nauta ou do poeta.
[Antoine de Saint-Exupéry em Terra dos Homens]