Quarta-feira
Sidónio Pardal viu o seu Estudo sobre o Novo Diploma para a RAN, REN e Disciplina da Construção fora dos Perímetros Urbanos ser “chumbado” pelo Ministério do Ambiente. O facto passou quase despercebido por entre a enxurrada mediática deste final de legislatura. Fazendo o brilharete, o ministro Luís Nobre Guedes conseguiu adiar uma questão polémica e colher os aplausos das associações ambientalistas.
Apresentando as suas discordâncias profundas ao estudo do arquitecto paisagista, o ministro determinou habilidosamente que se faça um novo estudo, de forma a que venha a ser preparada uma proposta legislativa de grande consenso, num contexto de processo participado. Acrescentou que este novo estudo, ao contrário daquele apresentado por Sidónio Pardal, deverá ser compatível com o quadro jurídico existente e deve apostar na valorização daquelas áreas, considerando, por um lado, a natureza de restrição de utilidade pública e a coerência e a lógica dos objectivos nacionais que neste domínio incumbem ao Estado, por força da Constituição, e, por outro, a necessária agilização e a fixação de usos compatíveis com tais restrições de utilidade pública.
Evidentemente, a constituição da equipa encarregue de produzir este novo documento e os prazos para a sua execução não foram divulgados. Com eleições legislativas em Fevereiro também não consta que venham a sê-lo. Assim se faz política em Portugal.
Triste país em que um trabalho desta importância não chega sequer a ser discutido e apreciado. Quem se dê ao trabalho de mergulhar nas 177 páginas do documento descobrirá que se trata de uma análise profunda e fundamentada, com conteúdo histórico e técnico, sobre as disfunções que existem na mecânica dos instrumentos de planeamento no nosso país. Sendo evidente que as conclusões de Sidónio Pardal levantam alguma perplexidade e merecem por isso ser debatidas e possivelmente modificadas, não é no entanto aceitável que um trabalho desta rara qualidade seja pura e simplesmente atirado para a gaveta de um ministério só porque a questão é incómoda.
O ministro Luís Nobre Guedes tomou a decisão mais fácil sem necessidade de qualquer sustentação científica, justificando-se na procura de um amplo consenso de circunstância que se sabe impossível e ainda consegue sair aplaudido de tudo isto.
Quais foram então os principais pecados de Sidónio Pardal. Extraio de recentes artigos de imprensa os seguintes:
O estudo pressupõe que as reservas ecológica (REN) e agrícola (RAN) foram responsáveis pelo desordenamento que grassa em Portugal.
O documento desmistifica com clareza as diferenças entre os preâmbulos das duas leis e os reais efeitos dos seus conteúdos. Na prática, é posta em causa a execução territorial da RAN e da REN, uma vez que a prossecução das suas premissas é aplicada sem uma clara sustentação técnica e científica.
Não é dito que a RAN e a REN sejam “responsáveis pelo desordenamento que grassa em Portugal” mas sim apresentado o modo como estes instrumentos (nomeadamente a REN) têm contribuído para fomentar a degradação do território. Isto é difícil de explicar quando a REN é proclamada como um instrumento-travão ao crescimento urbanístico descontrolado. O problema é que na prática a ela foi concebida através de critérios genéricos, sem identificação de valores naturais concretos ou ecossistemas a proteger.
A REN assume-se assim como um instrumento cristalizador daquilo que existe, interditando qualquer alteração. Este estatuto proibicionista não está sujeito a qualquer planeamento subsequente que concretize sobre ela acções de salvaguarda ou usos compatíveis. Ora, porque as realidades do território são múltiplas e complexas, acabam por gerar-se situações perversas e contrárias aos objectivos de ordenamento que se pretendem proteger. O estudo de Sidónio Pardal oferece vários exemplos concretos.
O estudo defende que a RAN e a REN deviam ficar sob a alçada dos municípios, perdendo-se assim o seu âmbito nacional.
A afirmação “ficar sob a alçada dos municípios” é uma simplificação intencional daquilo que está no documento. O estudo defende a exclusividade dos Planos Directores Municipais na afectação dos usos do solo, neles se introduzindo a delimitação dos instrumentos das reservas ecológica e agrícola que dariam lugar a uma Carta de Valores específica.
No caso da REN, os usos e intervenções compatíveis com esses espaços estariam dependentes da aprovação de um Regulamento municipal de reserva ecológica, sujeito ao parecer prévio da Direcção-Geral dos Recursos Florestais, do Instituto da Conservação da Natureza e do Instituto da Água.
Ao contrário do que alguns afirmam, a RAN e a REN não têm uma real contextualização de nível nacional. A sua elaboração tem por base parâmetros genéricos que amalgamam uma mancha de realidades territoriais estruturalmente diferenciadas. Sucede que promovem a ambiguidade de se apresentarem simultaneamente como condicionantes e como afectações de solos ao uso agrícola (RAN) e a um suposto “uso natural” (REN) em que o solo é entregue a uma regeneração selvagem, num estatuto de quase intocabilidade.
A RAN e a REN sobrepõem-se a tudo sem se verificarem ou avaliarem os valores, interesses e necessidades em presença.
O estudo defende que dentro do perímetro urbano não possam existir espaços naturais, espaços agrícolas, RAN e REN. O estudo não é compatível com o quadro jurídico existente.
Junto estas duas questões porque estão indirectamente associadas. O documento de Sidónio Pardal assenta numa nova lógica de funcionamento dos instrumentos de planeamento do território. A fusão de diversos níveis de competência dentro do âmbito dos PDM e a clara separação do planeamento do solo urbano, assentam nessa procura de tornar mais claras e eficazes as suas directivas e a interacção destas. Evidentemente, é posto em causa o “quadro jurídico existente”. Ora eram as deficiências desse quadro jurídico que se deveriam estar a discutir.
O estudo considera que as restrições e servidões por utilidade pública tais como a REN reduzem o conteúdo do direito de propriedade do solo de forma tão grave e intensa que podem ser consideradas como tendo um carácter expropriativo, devendo por isso estar sujeitas a indemnização.
A ausência de regulamentação da REN e a impossibilidade incondicional de sobre ela actuar tem perpetuado uma real situação de expropriação dos direitos de propriedade do solo, tornando-a num real “pretexto para proibir”. Isto é tão mais grave quando não estão associadas à REN quaisquer responsabilidades de gestão ou preservação dessas áreas.
Para concluir, resta dizer que não é a validade do estudo que está em causa mas a forma como ele não chegará sequer a ser discutido e apreciado com abrangência e honestidade intelectual. Catalogado de atentado ao ambiente e devidamente chumbado, o país continuará a persistir na teia kafkiana de sobreposição de planos, servidões e competências que tornam a gestão territorial numa tarefa incompreensível. Mas o pior de tudo é não querer sequer ver, é não aceitar sequer a reflexão sobre as disfunções deste quadro legal. É certamente mais fácil apelar a “aproveitamentos emocionais e ideológicos do problema” como fazem as associações ambientalistas com o beneplácito temor dos políticos, nada contribuindo para a correcção das suas incoerências e dos erros que elas produzem.
Certo é que nada neste problema é visível nos grandes centros urbanos do litoral onde se produz a legislação que nos governa e a cultura mediática que nos dirige. Lá, onde já todos os atropelos se fizeram, ditam-se as regras do bem-fazer que os outros hão-de cumprir.
Assim ditam os preâmbulos das suas leis. Mesmo as que não funcionam.
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