Arquitectura líquida


If architecture is an extension of our bodies, shelter and actor for the fragile self, a liquid architecture is that self in the act of becoming its own changing shelter. Like us, it has an identity; but this identity is only revealed fully during the course of its lifetime.
Marcos Novak

A arquitectura define-se sobre o espaço do real. Esse espaço não é um lugar neutro; ele estabelece as relações entre o mundo físico e as leis naturais que o regem. Assim, o ambiente da arquitectura cria o seu próprio conjunto de regras que lhe conferem o sentido de realidade, materialidade, tempo e espaço.
Se o nosso planeta tivesse o comportamento gravítico da Lua, a leveza dos materiais permitiria produzir vãos resistentes de dimensões colossais. Os edifícios poderiam ser muito mais altos; as pontes imensamente mais longas. A arquitectura assumiria outras condições e daria lugar a formas que nos estão inacessíveis. Quando o contexto físico é removido, como nos sonhos ou no mundo virtual, desaparecem as condicionantes da realidade que nos prendem a essas regras. Sem gravidade, sem chuva ou vento, a arquitectura deixa de obedecer às suas imposições. Torna-se possível voar, passar por entre paredes e manipular o espaço de formas antes impossíveis. Deixamos de falar de arquitectura nos termos em que a conhecemos e o próprio espaço se torna uma metáfora de si mesmo.

Um dos primeiros jogos a romper as barreiras da bidimensionalidade foi Elite. Com gráficos vectoriais tridimensionais, ou wireframe, tratava-se de um simulador de vôo espacial que oferecia ao jogador enormes galáxias para explorar e milhares de planetas para visitar. Na verdade, os sistemas estelares de Elite eram gerados semi-aleatoriamente através de uma sequência matemática e os planetas consistiam em modelos geométricos primários. Só assim era possível recriar um universo inteiro em poucas dezenas de Kbytes de memória.
Na sua simplicidade Elite proporcionava uma experiência inteiramente nova do que se podia fazer com um computador. Ainda assim, seriam precisos quase dez anos para que Doom definisse os termos do que viria a ser a imersão espacial. O violento jogo de acção futurista na primeira pessoa conduzia o jogador por entre espaços tridimensionais com variações de altura e diferentes ambientes de luz. Arcaico em termos tecnológicos, Doom transfigurou os limites da experiência sensorial num espaço virtual.

Seria o sucessor de Doom, Quake, a constituir-se como uma primeira experiência inteiramente 3D. Enquanto os cenários de Doom eram renderizados a partir de uma base bidimensional à qual estavam associadas diferentes altimetrias (o que impedia a sobreposição de níveis), Quake continha um motor gráfico inteiramente tridimensional. Todos os espaços, objectos, criaturas eram modelações sólidas, acompanhadas de um sistema inovador de processamento de luz com fontes dinâmicas.
Quake foi uma das primeiras experiências de imersão tridimensional, produzindo atmosferas densas compostas por ambientes híbridos. A sua incoerência formal, que misturava influências medievais num contexto futurista, resultava não tanto de liberdades criativas mas de mudanças na concepção do jogo durante a produção, inicialmente orientada para o género role-play fantástico.

O mesmo ano de 1996 viu nascer o clássico Tomb Raider. A primeira aparição de Lara Croft tornou-se um enorme sucesso mediático e ajudou a mudar a percepção da sociedade para com a indústria dos videojogos. O título fazia uma clara evocação às aventuras cinematográficas de Indiana Jones, contribuindo para o processo de diluição das duas formas de entretenimento.
Tomb Raider era original na integração de influências arquitectónicas para servir os propósitos do jogo. O notável mosteiro medieval fictício de São Francisco (St. Francis Folly) e os ambientes de inspiração egípcia eram particularmente eficazes e conferiam espessura dramática à experiência. Os anos que se seguiram vieram consolidar esta tendência, valorizando cada vez mais a composição de ambientes reminiscentes do real, mesmo quando no domínio do fantástico. Clássicos como Unreal, Thief e Half Life torná-lo-iam um dado adquirido. A experiência de um mundo próprio (um planeta, uma cidade, um edifício) de contornos internamente coerentes tornou-se um aspecto crucial dos videojogos, quando não um tema em si mesmo.

À medida que a tecnologia vai permitindo conceber emulações de realidades físicas mais complexas a arquitectura está a tornar-se um dos seus suportes fundamentais. Em Halo o jogador é introduzido num planeta artificial de origem desconhecida. Um gigantesco arco espacial com 10.000 Km de raio e 22 Km de espessura serve de palco para o famoso épico da Microsoft, visão limite para uma estrutura de defesa milenar fictícia. A geografia de Halo tem paralelo com a realidade terrestre, desenvolvendo um ecossistema de superfície de natureza multi-climática que esconde uma complexa rede de túneis e maquinaria misteriosa. Também o sucessor de Half Life, Half Life 2, faz do ambiente de jogo um dos seus temas principais. Influenciada pela arquitectura das cidades do leste europeu, a Cidadela 17 e as suas áreas envolventes apresentam uma estrutura coerente de áreas urbanas habitadas e zonas costeiras, em cuja viagem se estabelece o fio condutor da narrativa.
Este fenómeno tem alargado o alcance e influência do domínio da arquitectura. Seguindo um entendimento mais convencional, a aplicabilidade funcional e a interacção são elementos críticos à criação do sentido do lugar. Que “lugares” serão então estes domínios de emulação do real que servem de suporte ao evento do jogo? O polémico Grand Theft Auto: San Andreas expande as fronteiras do espaço de jogo para se alargar a um vasto território que inclui diversas cidades. Um dos aspectos mais interessantes de San Andreas é a forma como reproduz uma realidade urbana e suburbana cuja exploração se revela parte crucial da experiência, bem para lá da simples narrativa que a suporta. O evento do jogo transcende assim a sua mera concretização para entrar no domínio da vivência. O espaço e o tempo do jogo criam regras próprias e mergulham o utilizador no seu universo interno.
Presentemente a arquitectura tem vindo a estabelecer-se como parte importante da conceptualização dos videojogos. Servindo para unir os seus diferentes motivos e componentes, ela serve para dar corpo a novas abordagens sobre o domínio espacial. O alcance da sua expressão artística torna-se quase ilimitado uma vez que já não se define como suporte do real; nos termos em que não se destina a construir edifícios ou estruturas de base funcional. É, antes, o veículo para fabricar novas ideias de realidade, projecção e cenário de simulações subjectivas do mundo do jogo, onde tudo pode acontecer.

Referências:

(1) Gamasutra: The Role Of Architecture In Video Games [artigo]
(2) Game Research: The Road Not Taken - The How's And Why's Of Interactive Fiction [artigo]
(3) Polygonweb: Videogames And Architecture [artigo]
(4) SimCity Essay: Making Sense Of Software: Computer Games And Interactive Textuality [artigo]
(5) ESA, Entertainment Software Association [sítio web]
(6) DiGRA, Digital Games Research Association [sítio web]
(7) Ludology, Videogame Theory [sítio web]
(8) Game Studies [sítio web]
(9) Water Cooler Games [sítio web]

Jogos:

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Elite, David Braben and Ian Bell, BBC Micro, 1984.
Link: http://www.frontier.co.uk/
Video: Elite Comercial

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Doom, id Software, 1993.
Link: http://www.idsoftware.com/
Video: Doom 1 Video

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Quake, id Software, 1996.
Link: http://www.idsoftware.com/
Video: Quake 1 Video

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Tomb Raider, Core Design, 1996.
Link: http://www.tombraider.com/
Video: Tomb Raider 1 Video

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Unreal, Epic Games, 1998.
Link: http://www.unreal.com/
Video: Unreal 1 Video

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Thief: The Dark Project, Looking Glass Studios, 1998.
Link: http://www.eidosinteractive.com/gss/legacy/thief/
Video: Thief: The Dark Project Video

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Half Life, Valve Software, 1998.
Link: http://www.valvesoftware.com/
Video: Half Life 1 Trailer

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Halo, Bungie Software, 2001.
Link: http://www.bungie.net/
Video: Halo Trailer

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Grand Theft Auto: San Andreas, Rockstar North, 2004.
Link: http://www.rockstargames.com/sanandreas/
Video: Grand Theft Auto: San Andreas Trailer

4 comentários:

  1. Sem querer ser picuinhas:

    Doom saiu em Dezembro de 1993
    http://en.wikipedia.org/wiki/Doom

    Antes dele, milhares de pessoas usufruiram da nauseante experiência 3D de Wolfenstein (o original, em 3D), que foi lançado em Maio de 1992.
    http://www.mac-archive.com/wolfenstein/history.html
    Honra lhe seja feita, pois foi Wolfenstein que definiu o género. Doom (e depois Quake e clones)desenvolveram o aspecto gráfico e os níveis de violência, mas foi Wolfenstein que definiu as regras. Um ano e meio antes.

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  2. Tanto o Wolfenstein 3D como o Doom usavam motores gráficos "pseudo-3D", ou seja, "renderizavam" (processavam graficamente) uma aparente construção tridimensional de base a duas dimensões. Sem questionar a relevância de Wolfenstein 3D, Doom tornou-se um título bastante mais importante por permitir diferenças de altimetria, planos inclinados e variações de luz.
    A inovação mais revolucionária surgiu posteriormente com a introdução do modo de visualização livre ("freelook", ou também "mouselook"), que transformou bastante a experiência de imersão espacial. Via Wikipedia descubro que o primeiro jogo a introduzir o modo "mouselook" foi menos conhecido Terminator: Future Shock, mas viria a ser popularizado pelo clássico dos clássicos Quake.

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  3. Nada comparado ao velhinho "Matchday"... ou o primordial "Worldcup".
    Dannyboy, vai uns Maziacs???
    Um grande abraço.

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  4. "Na sua simplicidade Elite...", ora na jogabilidade é que já não tinha simplicidade nenhuma. Difícil, difícil, nem que fosse por todas as teclas fazerem algo. O meu Cobra acabava quase sempre destruído por um pirata qualquer em poucos minutos... ;)

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