Estive na
Open House 2008 – Festa da Arquitectura da Católica no passado dia 15 de Fevereiro em Viseu. Partilhei algumas ideias em torno da cultura blog e de como a arquitectura se tem apropriado da nova paisagem da rede. Segue-se um curto “draft” da minha apresentação.
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Crítico de arquitectura instantâneo. Ou de como os blogs nos permitem assumir um qualquer papel, crítico instantâneo de áreas do saber anteriormente vedadas ao espectador comum, domínio da elite, hoje abertas à opinião pública. A crítica caiu na rua, com tudo o que isso tem de bom, de mau, e de muito mau.
A propósito de blogs comecei por recordar a imagem da
roda de relva, projecto muito divulgado no circuito blog, criado por alunos de uma faculdade americana. A ideia é fácil de apreender. Perante a ausência crescente do natural na paisagem urbana, nada melhor do que criar o espaço verde individual, portátil. O nosso pequeno mundo. E isto pareceu-me uma boa metáfora para os blogs, porque são um lugar onde todos podem inventar regras de relação com o exterior, extensões de uma outra forma de existência.
A blogosfera é uma infraestrutura de comunicação global. O blog é um interface. Não mais, não menos. Não é uma entidade social, não acarreta em si mesmo dimensão moral ou ética. Mas o seu exercício constrói espaço, um lugar que é uma construção cultural, pois que os lugares são isso mesmo, instituídos pela prática da expressão humana.
Trocando impressões com várias pessoas vou recolhendo um retrato, em particular nos meios académicos, de um fenómeno apreendido com conotações tendencialmente negativas.
Pacheco Pereira descreveu bem esse mundo como o oeste selvagem, território sem parâmetros ou regras. Uma crua descrição da blogosfera portuguesa.
Não é por se usar a mesma ferramenta de software que os americanos, brasileiros, japoneses e chineses que deixamos de ser portugueses, de levar para lá o nosso mundo exterior. Não somos ricos na Rede se somos pobres cá fora, não somos sofisticados em linha, se somos trogloditas cá fora, não sabemos mais e pensamos melhor nas páginas do Blogger do que pensamos cá fora, nos cafés de província, ou no Bairro Alto ou no Lux ou nas páginas dos jornais, não se é cosmopolita lá dentro se se é provinciano cá fora, não se é subserviente cá fora e independente no ecrã diante do computador, não se é burro cá fora e inteligente lá dentro.
O que se passa é que esse verdadeiro mostruário em linha, feito de mil egos à solta, revela mesmo a nossa pobreza, a nossa rudeza, a falta de independência face aos poderosos, grandes, pequenos e médios, os péssimos hábitos de pensar a falta de estudos e trabalho, de leitura e de "mundo", que caracterizam o nosso "Portugalinho". Nem podia ser de outra maneira. Com a diferença que nos blogues o retrato é mais brutal porque mais arrogante e mais solto, ou pelo anonimato, ou pela completa falta de noção de si próprio de quem, por poder escrever sem edição para os milhões de leitores potenciais da Rede, acha que é crítico de cinema instantâneo, engraçadista brilhante, analista político, escritor genial de aforismos, herói único da denúncia dos males do mundo, e portador de todas as soluções que só não são aplicadas porque os outros, a começar pelo blogue do lado e a acabar no fim do mundo, são todos corruptos, vendidos e tristes.
[A cultura de blogue nacional, via Abrupto]
Existirão várias razões para ser esta a nossa blogosfera mais visível e aquela mais facilmente referenciavel em órgãos de comunicação. Em parte porque trazida para o campo dos “media” por pessoas da imprensa escrita e da política, cujas regras de reflexão se pautam por: a) actualidade ruminante (o assunto do dia); e b) conflituosidade latente. O diálogo racional e uma base de referência fundada em valores de cidadania avançada (na tolerância perante “o outro”, na contraposição argumentativa, na prevalência do racional sobre o emocional) sucumbem no caldo cultural dominante. Algo que ninguém parece interessado em questionar “de dentro”. A fazer lembrar a tese de
Bjarke Ingels relativamente à cultura de vanguarda – a ideia de rebelião contra o estabelecido, a ideia de que o progresso ou o radical se associa ao negativo, a “estar contra”, que tornando-se na corrente dominante se transforma numa nova forma de seguidismo.
Esta degradação do espaço público das ideias não é exclusiva da rede, mas é agravada pelo esbater de barreiras de comportamento social que existem no exterior. Confunde-se contundência com intolerância, personalidade por “opinião forte”, tantas formas de extremismo intelectual.
A outro nível, processam-se fenómenos de dimensão global resultantes de uma nova cultura de massas. O problema é identificado no livro de Andrew Keen, na tese do
Culto do Amador. A dissolução de referência de cultura específica, a submersão do técnico perante o ideológico. A subjectivização indistinta do saber, processado com poucas variáveis. A negação da margem de erro e da complexidade do real.
A blogosfera é por isso um mundo com vários perigos. Mas não é apenas isto. É também uma paisagem promissora para a troca de ideias, a comunicação e a partilha. Falando da blogosfera de arquitectura, referenciei o
Postopolis como ilustração exemplar.
O Postopolis foi um evento promovido por Joseph Grima, director da
Storefront for Art and Architecture, a célebre galeria de arte nova-iorquina desenhada por Steven Holl e Vito Acconci. Grima convidou quatro dos mais notáveis bloggers de arquitectura - o Geoff Manaugh do
BLDGBLOG, a Jill Fehrenbacher do
Inhabitat, o Bryan Finoki do
Subtopia e o Dan Hill do
City of Sound.
E desafiou-os a organizar um evento de cinco dias, preenchido por debates com imensos convidados, especialistas das mais diversas áreas: arquitectura, design, landscaping, ecologia e sustentabilidade, arte digital, música, imprensa de arquitectura, cinema.
Tudo.
Debates intensos em pleno verão, na cidade de Nova-Iorque. Mas o que o Postopolis teve de único e extraordinário foi o facto de ter os seus conteúdos altamente disseminados na rede. Através dos blogs dos organizadores e de uma rede espontânea de bloggers, de visitantes ou de curiosos em todo o mundo, o que ali se passou foi recebido e debatido pelo globo fora. Em meia dúzia de dias apareceram galerias no Flickr com centenas de fotografias do evento. Vídeos das conferências foram colocados no Youtube, vistos, divulgados, comentados. Várias páginas web abriram fóruns de debate. No
Archinect, o canal do Postopolis recebeu durante aqueles dias centenas de mensagens. Um exemplo a mostrar que outra blogosfera é possível, capaz de produzir conteúdos, reflexão, inteligência crítica.
Longe da cultura do “o que tu queres sei eu”, da presunção da má fé. Onde a assertividade e a cidadania podem ser não a excepção mas a regra.
Conclui partilhando algumas preocupações que fazem parte do meu percurso pelo mundo da arquitectura. O tema, um cartaz fictício com o título de
Architecture is dead. Uma composição feita a partir do cartaz do famoso filme de ficção científica dos anos 50, “Invasion of the Body Snatchers”. Uma visão catastrófica da Torre do Burgo, de Souto Moura, sendo destruída por uma chuva de meteoros com a forma da Casa da Música, de Koolhaas.
No fundo trata-se de reflectir sobre o facto de que a arquitectura está a mudar. O modo de fazer, pensar a arquitectura, está a mudar.
Claro que a arquitectura não morreu, nem vai morrer, pelo facto de sofrer transformações. A mudança sempre fez parte da história da arquitectura, algumas dessas mudanças bastante radicais, e talvez nenhuma mais profunda do que o movimento moderno. Mas a produção de arquitectura é hoje diferente daquela do passado. E esta provocação pretende fazer reflectir sobre isso, sobre aquilo em que consiste essa mudança.
Dizia Alfred Hitchcock que era capaz de visualizar um filme todo, antes de o realizar, na sua mente. O seu anseio por domínio era tal que, ele próprio o disse, ao realizar o filme, até os actores eram um estorvo. Algo que estava entre ele e a obra perfeita, que ele teria de subjugar à sua visão maior.
Também a nossa profissão tem uma dimensão doutrinária em que pesa enormemente o factor autoral. O papel do arquitecto-autor está fortemente entranhado na doutrina académica e é assim de uma forma assumidamente resistente. Mas será esse o nosso papel no mundo de hoje?
Não se trata já de uma questão de opção, em que podemos ser assim ou de outra forma. A esse respeito, várias vezes vi debatida a ambivalência da arquitectura enquanto arte e enquanto técnica. Claro que a arquitectura é uma arte, quando produz emoção estética nas pessoas que a vivem.
A arquitectura, para ser erudita, tem de carregar essa dimensão da arte, da transcendência das ideias. E, quando se alcança essa arquitectura, então estamos perante uma obra capaz de transformar a percepção e as nossas referências, abalando a verdade do que somos, do nosso ponto de partida.
Mas a arquitectura é acima de tudo muitas coisas. Arte, técnica, mas também jurídica, económica, ambiental, com implicações sobre a sociologia e a história. É essa a grandeza da disciplina, o facto de tocar em muitas áreas do saber humano.
E porque as exigências que se colocam à arquitectura são cada vez mais amplas, mais complexas, desafia-nos a desenvolver mecanismos para processar essa complexidade. No fundo, como dizia Mark Wigley, o arquitecto é um especialista em incerteza e em multi-tasking..
Somos arquitectos no tempo da sustentabilidade. Algo que não se traduz por incorporar nos projectos umas quantas tecnologias high-tech green. Sustentável significa fazer uso dos recursos adequados para o fim a que se destinam. Significa combater desperdício. A arquitectura também é um acto de economia, até no que respeita especificamente ao desenho.
Podemos ignorar tudo isso, assumindo como prioritárias as razões de factor estético e elaborando-as à última potência. Mas não somos esteticistas. Fazer perfeitos objectos estéticos não significa necessariamente estar a fazer boa arquitectura. E fazer boa arquitectura não depende apenas de reunir o cardápio de materiais de topo ou fazer uso de meios tecnológicos de última geração.
Pelo contrário, a boa arquitectura estabelece-se a partir da capacidade de encontrar o grau de eficácia mais apurado na resposta a todas as vertentes da complexidade do real.
O mundo lá fora será sempre mais complexo. Não é por se ser jovem, por se ter muito voluntarismo ou vontade, ou opiniões fortes, que lá fora tudo aquilo que foram dificuldades para gerações que nos precederam serão facilidades para os que virão. Lá fora aguarda o mesmo atrito, as mesmas frustrações e até, por vezes, o desânimo.
Mas outra coisa é certa. Não está tudo inventado. Está tudo inventado – grande mentira. Nunca está tudo inventado. É sempre possível fazer melhor, com o menor dos meios. Inovar depende da capacidade de olhar para os problemas de forma diferente, dissecando-os nos seus vários graus, apreendendo os diversos elementos de cuja combinação resulta a complexidade aparente, aparentemente irresolúvel, que neles reside. E por isso o sucesso em arquitectura depende de muitos retornos, de produzir várias iterações, de experimentação, de especulação.
Nada está inventado. Na verdade, está quase tudo, como sempre foi, na arquitectura como em tudo o resto, por descobrir.
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