Ao propor-me reflectir sobre este projecto importa alertar os leitores que a procura de isenção de um olhar é limitada pelas contingências da subjectividade e da experiência pessoal. O esforço que aqui se inicia consiste na materialização de um pensamento argumentativo, aberto, e não um discurso com base no apelo emocional, carregado de juízo e adjectivação. Fica por isso o convite à reflexão de cada um, recomendando abaixo algumas das muitas ligações acessíveis na web sobre o tema para um posterior aprofundamento.
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1. Contexto
O início dos trabalhos preparatórios de construção do Novo Museu dos Coches ocorre em simultâneo com o aparecimento de uma petição na internet apelando à sua não edificação. O projecto de Paulo Mendes da Rocha, em colaboração com Ricardo Bak Gordon, tem sido acompanhado por alguma conflituosidade e polémica desde que foi apresentado ao público em meados do ano passado.
Para além dos aspectos particulares que decorrem da sensibilidade da operação levantados pelos técnicos do Serviço de Arqueologia do IGESPAR, é o próprio processo que tem motivado diversas críticas. Não será alheia a esta situação a importância simbólica do sítio que, apesar de actualmente vedado ao espaço público pelo recinto murado das Oficinas Gerais do Exército, constitui a pedra de fecho de uma das mais importantes frentes urbanas da cidade de Lisboa.
O projecto foi alvo de uma revisão motivada pelo parecer negativo da autarquia lisboeta, pela objecção quanto à edificação de um silo automóvel a implantar na área próxima da estação fluvial de Belém. Em entrevista ao semanário Expresso o arquitecto Mendes da Rocha reconheceu o seu desagrado pela alteração ao conceito original, salientando a manutenção do longo passadiço pedonal que liga o novo museu à frente ribeirinha.
A construção do novo museu celebra o centenário do Dia da Implantação da República. A obra tem custo previsto de 31.5 milhões de euros, verbas provenientes de contrapartidas do Casino de Lisboa destinadas à área do Turismo. A proximidade da data de inauguração – Outubro de 2010 – terá sido o factor que motivou uma maior celeridade do processo, sobressaindo uma reduzida permeabilidade quanto a um desejável debate público de especial importância num contexto tão sensível.
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2. Projecto
Na sustentação do conceito original do novo museu o arquitecto Paulo Mendes da Rocha sublinhou duas questões: «do lado da museologia, um critério básico para a exposição do notável património»; do lado do urbanismo, a implantação no recinto monumental, amparada no projecto governamental ‘
Belém Redescoberta’».
O conteúdo programático do projecto ‘Belém Redescoberta’, lançado pelo governo Português em 2006, apresentou como objectivo o reforço da atracção turística da zona que se estende do Centro Cultural de Belém até ao Museu da Electricidade. A documentação oficial destaca a dimensão económica da iniciativa, assente na criação de um pólo de atracção artístico e cultural «com forte impacto na procura turística internacional e interna». Trata-se da «maior intervenção urbana em Lisboa com objectivos turísticos-culturais desde a Expo’98» e pretende «aproveitar o melhor e mais único da nossa História para projectar uma imagem de modernidade para o futuro».
No que refere à programação específica do novo Museu Nacional dos Coches registam-se já algumas alterações às directivas então anunciadas. A intenção de devolver a actual sede do museu à função de Picadeiro Real estará a ser reavaliada devido a um parecer do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) - com data de 1996 - que apontou incompatibilidades entre este uso e os requisitos de preservação do edifício. Complementarmente, a ideia de reunir nas novas instalações todo o espólio expositivo do museu – parte do qual se encontra sedeado em Vila Viçosa – terá sido geradora de controvérsia local e parece agora abandonada.
Estes aspectos não parecem pôr em causa a necessidade de ampliação das instalações do museu e a oportunidade gerada pela criação de um novo edifício, com a abertura de uma extensa área urbana à apropriação pública. Esse aspecto é, aliás, tão ou mais importante quanto a relocalização do próprio equipamento. Somam-se assim numa só operação duas preocupações fundamentais: por um lado a revisão da identidade arquitectónica do museu – o mais visitado do país – e por outro a identidade urbana daquela que é uma das principais ‘salas de visita’ de Lisboa.
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Perante uma operação de tão elevada responsabilidade importa reflectir sobre o modo como os valores de contemporaneidade – ou ‘modernidade’ – referenciados no conteúdo da ‘Belém Redescoberta’ e enunciados pelo arquitecto Mendes da Rocha se materializam no local. A discussão urbana contemporânea centra-se sobre aspectos muito importantes do equilíbrio entre o tecido construído e os espaços vazios, a recuperação de identidades, a intensificação do uso do solo e a promoção da mistura de usos e, finalmente, a introdução de hábitos sustentáveis na vida da cidade.
A expressão dessa vida deve materializar-se em funções que dão lugar à possibilidade de múltiplas formas de apropriação. A contemporaneidade tem vindo a afirmar-se exactamente como a negação da mono-funcionalidade. A cidade deve oferecer a possibilidade de apropriação, da experimentação, da evasão. Deve permitir o encontro e a diferença. Deve responder ao balanço entre a necessidade de segurança e a liberdade para o isolamento do fluxo de actividades.
Observando os elementos disponíveis da proposta – com as limitações que esse exercício permite – é ainda assim possível elaborar uma apreciação sobre dados objectivos da transposição dessas oportunidades teóricas em estratégias práticas de desenho.
O projecto amplia o espaço aberto pelos equipamentos, oferecendo uma área extensa do quarteirão ao domínio público. Introduz, também, uma rede de espaços conectados, tanto pela permeabilidade do nível térreo como pela interligação pedonal aérea com a frente ribeirinha.
Ficam no entanto em aberto outros aspectos que levantam interrogação, por exemplo, quanto à definição desse grande espaço pedonal, da sua diferenciação, do modo como fará conciliar os diferentes ritmos dos utilizadores. Estarão presentes actividades recreativas ou que permitem a experimentação? Serão introduzidas tecnologias de informação? Como se irá materializar a identidade do local, tanto na sua dimensão paisagística como na interacção com elementos gráficos? Como irá afinal o público relacionar-se e colonizar o lugar, dando-lhe sentido e urbanidade?
O projecto de Mendes da Rocha é, nesse sentido, uma obra que não se ‘hibridiza’ com a própria acção de planeamento urbano. Os grandes volumes assumem-se sobre aquele novo território, revelando-se o oposto de uma eventual celebração material da complexidade, diversidade e variedade programática.
A presença do novo edifício «levantado do chão» faz repercutir um assumido peso estrutural e formal. Será, aliás, essa expressão infraestrutural que motiva as reacções mais adversas – sobre o qual importa reflectir, quanto ao modo como ali serão acarinhadas as possibilidades de vida pública que se deseja, em princípio, promover.
É, afinal, uma arquitectura de grande gesto que tem na elevação do rectângulo suspenso – o «estojo» branco, como refere o arquitecto – a sua marca principal. A esta volumetrização corresponde o aparecimento de extensos paramentos que contrastam com a ‘pequena urbanidade’ da envolvente construída do próprio quarteirão.
Temos assim um edifício que não envolve o espaço, antes cria interstício. Intencionalmente ou não, estamos perante uma oposição total daquilo que podemos observar no Centro Cultural de Belém, de Vittorio Gregotti, onde se interioriza o espaço público e se lhe confere escala.
3. Debate
É legítimo questionar o modo como estas preocupações foram – se foram - consideradas no programa base da intervenção e na sua materialização arquitectónica. Neste projecto podemos reconhecer claramente aquilo que Paulo Mendes da Rocha traz a Lisboa – em continuidade com os seus trabalhos mais recentes desenvolvidos para contextos muito diversos. Não será tão fácil identificar o que, nesta obra, trouxe Lisboa ao arquitecto Brasileiro.
O contraponto com o Centro Cultural de Belém ganha por isso relevância. Pois que ali se revela um sentido de observação e reciprocidade entre a cidade e o desenho arquitectónico, e não uma ideia pré-concebida de estilo.
Tratando-se de obras de regime, no que isso tem de mais representativo, importa questionar o modo como a arquitectura exprime os seus valores – e quais. O Novo Museu dos Coches é apresentado como um gesto de ‘modernidade’ e de «contraste entre coisas novas e coisas antigas» - como referiu Álvaro Siza. Questionemos então o que isto significa. Falamos de modernidade enquanto ‘estilo’ – um depositário de uma lógica meramente formal cuja legitimidade resulta de ser reconhecível e institucionalmente certificada?
Ou pensamos antes a ‘modernidade’ enquanto afirmação de valores contemporâneos de inovação e criatividade, de urbanidade e vida pública? Falamos, afinal, de formas ou de conteúdos?
São questões que não podem ficar no domínio do preâmbulo justificativo, devendo traduzir-se na formulação concreta do edifício e do espaço que o envolve. É irrelevante se sobre elas se projecta um discurso adjectivante pleno de generalidades, a favor ou contra, da poética laudatória aos amadorismos do ‘gosto’. Importa por isso discutir arquitectura e urbanismo. É isso que aqui se propõe numa base argumentativa e, desejavelmente, crítica. Para o debate público possível.
Referências:
Museu Nacional dos Coches
OASRS: Novo Museu dos Coches, 2008-10-19
OASRS: «O turismo é o desejo de ver o encanto da vida do outro», 2008-10-30
Expresso: «O novo museu será um amplo logradouro público», 2009-03-07
TSF: «A nova casa do Museu dos Coches», 2008-07-09
Petição online: «Salvem os Museus Nacionais dos Coches e de Arqueologia e o Monumento da Cordoaria Nacional!», 2009-02-02
New National Coach Museum
The project for the New National Coach Museum, designed by Brazilian architect Paulo Mendes da Rocha in collaboration with Ricardo Bak Gordon, has been surrounded by controversy since it was first presented to the public last year. Besides specific reservations that were raised regarding the sensitivity of the operation, it’s the very procedure that seems to motivate the most passionate reactions. The site is, after all, one of the most important urban fronts of the city of Lisbon.
The construction of the new museum will celebrate the 100th birthday of the proclamation of the Portuguese First Republic in 1910. The closeness of the inauguration date is most probably the reason why the process has been running so hasty, resulting in a small public participation – of particular importance in such sensitive context.Read more »
So, as it turns out, the project is rather controversial. On the left corner you have the naysayers, petitioning against the «concrete monster». On the right corner is now a group of prominent personalities, including some of the most notorious Portuguese architects, petitioning for the building that is said to be a «lesson of the evidence of man in the universe». Holly Moses!
And here I am, crushed in the middle. I’m thinking to myself that maybe I am really stupid, because I just don’t get it. So would it be possible that these people could bring their staunch certainties and shed a light over my undersized intelect. And explain, in architectural terms, how the building is either a monster or a metaphysical phenomenon?
This is it. Democracy at work. The debate is on, only there is no debate at all because there are no arguments of fact. Architecture, as it turns out, is all subjectivity and abstraction. It’s a freakin illusion. So maybe what’s good for videogames is true after all. «If you build it, they will come». Well, it worked for Kevin Costner.