Discurso directo

«O achómetro é um grande espaço de falsa democracia que se deixa criar em torno de um projecto, permissivo a boquinhas bem intencionadas, bocas mandonas ou bocarras ignorantes. É um forum de generalidades, uma escala de aferição cujos valores se anulam; é um triunfo do amadorismo.»
Carlos Coelho, Paulo Rocha, «O Achómetro».

Caro Pedro,
O diálogo directo na blogosfera tem os seus riscos, entre os quais a dificuldade em estabelecer um tom na palavra escrita tantas vezes sujeito às interpretações mais diversas. Segue por isso esta pequena nota introdutória para sublinhar que nada do que pretendo contrapor se reveste de inquietação ou ironia.
O Pedro contesta o método que avancei para reflectir sobre o projecto do Novo Museu dos Coches. O que é legítimo e ao que tentarei corresponder com um esforço de reciprocidade. Parece-me no entanto que cai numa patologia recorrente na nossa forma portuguesa de discutir, dentro e fora dos blogues. Fica a referência ao que escreveu o João Lopes sobre a «Violência dos blogs», quanto à tendência para reduzir a argumentação do «outro» à caricatura, no pressuposto de que «pensando diferente, só pode pensar mal».
Refiro-me à redução da minha abordagem a uma avaliação tecnocrática da arquitectura. Tento compreender o entendimento que se faz desse lado, mas tenho de declinar o epíteto. Porque não está em causa uma visão bidimensional da crítica de arquitectura, ou algo ainda mais redutor, unidireccional, em que só se pode estar de um lado ou de outro. Resultaria assim a postura idealista do Pedro contra a minha postura, diria materialista. A lembrar uma passagem do filme «Clube dos Poetas Mortos» onde se parodia um método de análise científico para quantificar a qualidade de um poema segundo parâmetros que permitem estabelecer um gráfico e atribuir uma percentagem. Tornei-me então no senhor Pritchard.

Dito isto, devo uma explicação. Porque avancei com a proposta de deixar de lado uma apreciação mais subjectiva, do «gosto»? Qual é afinal o meu posicionamento que tanto o intriga? O Pedro extrai uma conclusão possível: que essa dimensão subjectiva – a explicação do objecto através dele próprio – me é irrelevante para a qualificação da obra. E este equívoco talvez me seja atributível. Porque poderemos dizer que essa dimensão subjectiva é mesmo a mais importante. Tal como num filme, aquilo que lhe confere uma expressão superior enquanto Cinema é a sua capacidade de se transcender enquanto objecto, estabelecendo connosco uma relação mais íntima, que nos comove, «abalando toda a verdade do que somos». Aquilo que, verdadeiramente, nos enriquece. Agora se queremos falar aprofundadamente sobre cinema talvez nos seja devido um olhar para outros aspectos mais diversos da construção técnica, narrativa e artistica, que não sendo quantificáveis são, pelo menos, qualificáveis.

Ao contemplar o projecto do Novo Museu dos Coches – cuja expressão pública legitíma o seu questionamento - devo salientar que não estou a fazer crítica de arquitectura, antes uma análise de projecto. Está aí, aliás, a nossa grande diferença de entendimento. Estamos a utilizar as mesmas palavras mas falamos de coisas diferentes. O Pedro refere-se ao «projecto» como quem fala da obra de arquitectura. Eu falo de «projecto» enquanto processo que materializa fundamentos programáticos em obra física. E vejo o acto de desenho de arquitectura como um processo criativo desenvolvido para resolver problemas muito diversos. Como diz o Thom Mayne, a arquitectura resulta em grande parte de fazer perguntas que nos permitem obter uma visão global da complexidade que nos rodeia e assim identificar soluções. É disto que falo, do modo como naquele processo se fundem os objectivos de um programa, os ideais que lhe estão presentes, e os constrangimentos das condições que o envolvem.

Assim começo por questionar o Novo Museu dos Coches na sua dimensão programática. Porque não estamos perante uma escultura que se auto-legitima - «o objecto através dele próprio». Estamos em primeiro lugar perante um museu – é história e cultura – e também perante um objecto que tem dimensão urbana – é cidade e vida pública. Para mim, a relevância do significado dessas funções – à falta de outra palavra – introduz-lhe um conjunto de responsabilidades que devem ser dramatizadas.
Porque o processo da arquitectura começa a montante do desenho. E a apreciação da obra não é redutível à apreciação da dimensão estética do objecto, como se nada mais existisse. Talvez esse exercício sirva, mal, os críticos de arquitectura. Mas não serve a arquitectura naquilo que tem de expressão sobre a comunidade. Pelo contrário.

Quando o Pedro questiona, por exemplo, o que é que a arquitectura tem a ver com a «valorização do potencial turístico», deixa bem claro o mundo inteiro que nos divide. Porque estamos a falar do primeiro objectivo traçado para o plano «Belém Redescoberta», de que este projecto é a principal iniciativa. Podemos negligenciar isto? Compreendo que isto possa não interessar ao Pedro – ou ao Paulo Mendes da Rocha – quando pensa sobre arquitectura. Peço-lhe apenas que, de igual modo, compreenda que me interessa a mim.

E qual é o meu posicionamento, afinal? Quando afirmo que existem vários aspectos no projecto que levantam interrogação estou a dizer que não encontro nas peças disponíveis a resposta a questões programáticas que, naquele contexto, com aquelas funções, me são particularmente sensíveis. Interrogo-me quanto à natureza daquele espaço público sem limites, o significado do despojamento funcional que ali se enuncia, a expressão pública daqueles contínuos volumétricos. E interrogo-me quanto ao modo como aqueles espaços museológicos nos relacionam com a história dos seus conteúdos, como os comunicam, como os dão a ver e a viver.
Acima de tudo, não dou o assunto por resolvido. E não reduzo o projecto a um rótulo, seja ele qual for, avalizado por quem for. Mas tudo isto, claro está, não deixa de ser apenas aquilo que eu «acho».

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7 comentários:

  1. Dizer que um projecto deste calibre correu mal quando ainda nem sequer está construído parece-me de todo uma posição pouco consistente. Em minha opinião o projecto de PMR é concreto e promete significado pelo que irá revolucionar por completo aquela bolsa de terreno deixado às moscas.

    Para além de tais virtudes, agrada-me imenso o facto da proposta desalinhar-se com os academismos europeus instalados, que tendem para a pseudo-complexidade do discurso e da forma. E afinal, muitos deles, não passam de peles renderizadas para as revistas.

    Um bem haja para PMRocha e RGordon!

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  2. Espero algum dia conhecer a Europa. Quando isto acontecer, certamente visitarei Portugal e farei questão de conferir o Novo Museu dos Coches, e como Paulo Mendes da Rocha solucionou seu programa, seu relacionamento com os equipamentos circunvizinhos, etc...

    Abraços

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  3. Para o estudante com amizade:

    e quando vier a Lisboa pela primeira vez, não se foque muito no panorama e nos roteiros da arquitectura que se apresenta no mundo paralelo dos sites, das revistas e dos especialistas. Mais interessante que tais montras são os conteúdos verdadeiros desta cidade de luz macia: a vida; os pombos, os pasteis de nata, o fado, as pataniscas, a tasca do Manel, o museu de arte antiga, a garagem do Zé, os azulejos, o estendal do Bairro Alto, a literatura dos modernos, os grafitos, a fachada do Éden (ainda faltam os crocodilos), as calçadas, o aqueduto, o Jardim Botânico, o cheiro das lojas dos chineses, o Jazz, os Cacilheiros, os dentes da Guida depois de mamar uma ginja, o restaurante La Moneda, a rapaziada do PS, o Lux e o Braço de Prata, a obra clandestina, o museu do Chiado, o café minimalista que parece um talho, as putas junto à ordem dos arquitectos, a pala do Siza e o elevador da Bica.

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  4. Reciprocidade: n'As Catedrais.

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  5. Porque estamos a falar do primeiro objectivo traçado para o plano «Belém Redescoberta», de que este projecto é a principal iniciativa. Podemos negligenciar isto? Compreendo que isto possa não interessar ao Pedro – ou ao Paulo Mendes da Rocha
    Porque compreendes que pode não interessar ao Paulo Mendes da Rocha, autor do projecto? Não percebi esta parte. -- JRF

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  6. Mais importante do que tudo, é o alto nivel da maior parte das observações que encontrei tanto na Barriga quanto nas Catedrais. Vou meter a minha colher de pau, mas devido à extensão do comentário, pode ser conveniente apenas direcionar para o meu blog: http://opaudabarraca.blogspot.com/

    Grato e parabéns

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  7. Modernismo Recrudescido: as dificuldades em ser contemporâneo.

    “... o que aquele pavilhão queria exprimir, antes de mais nada, era a consciência da ocupação dos estados naturais da América com as construções. Então, simbolicamente, era um teto ideal, que teria um teto de cristal da nossa FAU, colocado sobre a própria paisagem, que seria a paisagem simulada naquelas colinas, com um número mínimo de pilares, ou seja, uma especialidade técnica de construção que pretendia revelar nítido conhecimento técnico para fazer o que quisesse.”
    Paulo Mendes sobre o projeto do Pavilhão Brasileiro na Exposição Mundial de Osaka, de 1969.

    Quarenta anos atrás, um concurso escolhia o projeto para o pavilhão brasileiro na exposição mundial de Osaka, que seria realizada no ano seguinte. A equipe vencedora foi a de Paulo Mendes da Rocha, com um excelente projeto. Paulo Mendes ressalta sobre o mesmo, na declaração acima, o caráter poético da arquitetura moderna, sempre pretendendo pousar no terreno, de modo a permitir a continuidade da paisagem e a liberdade dos movimentos.
    Agora, os pilotis entram novamente na história desse grande arquiteto. Refiro-me ao projeto do novo Museu dos Coches, em Lisboa, projetado por ele e envolto numa grande polêmica com muitas nuances que vão desde a legitima defesa dos concursos de arquitetura, até o questionamento das decisões que levaram ao projeto, mas que encontram o seu centro na qualidade do projeto em si.

    Preliminares
    O caso desprende alguns aromas de ordem corporativa: nada encontrei sobre o assunto, que está em pauta desde a metade do ano passado, nos sites das duas principais revistas brasileiras de arquitetura, a não ser o Manifesto Pró Paulo. O referido manifesto é uma reação louvável, pois os arquitetos mais prestigiados de Portugal não deveriam mesmo se omitir quando o debate arquitetônico ganha o público. Entretanto o documento não deixa de ser um tanto cínico, e termina com a seguinte afirmação: “Por tudo isto, os presentes signatários - ainda que respeitando opiniões distintas ou complementares às suas e que devem ser tomadas em conta neste processo - manifestam que é urgente, indispensável e fundamental construir o novo edifício para o Museu Nacional dos Coches...etc, etc”.
    Ora, se é “urgente, indispensável e fundamental” construir o edifício, quando é que as “opiniões contrárias” serão “tomadas em conta”? Não há como negar a assimetria entre a pressão de um grupo mais ou menos anônimo de arquitetos e a de um grupo que inclui Siza, Carrilho e Souto de Moura, arquitetos globais. Tal questão já havia sido sublinhada quando, na apresentação pública do projeto e diante do questionamento de um dos presntes, alguém reclamou: “... alto lá! Trata-se de um Pritzker!”. Pronto, temos mais uma categoria com prerrogativas especiais. Há que se ressaltar a posição elegante e democrática do Paulo Mendes, dispondo-se ao debate e não se colocando na posição de estrela no alto do firmamento, mas talvez o grupo de notáveis pudesse ter dado uma aula de sabedoria arquitetônica, se tivesse ressaltado as qualidades da proposta, embasando o seu apoio. Entretanto, embaraçosamente, nenhum dos motivos elencados pelos mestres é qualidade do ou mesmo implica no projeto em questão, colocando à mostra um componente que torna tudo ainda mais complexo: se um bom projeto não se define apenas por justificativas científicas e racionais, como instituir concursos justos? Me parece que isso nunca vai acontecer. Concursos sempre serão fruto da preferência de um grupo, sendo suficiente que seja um grupo honesto. Mas é justamente pela falibilidade projetual que sempre ronda a nós que exercemos essa difícil profissão, que projetos públicos e de interesse público deveriam ser escolhidos por concursos, ainda que fechados.

    O Museu dos Coches
    Quase um século se passou desde que Le Corbusier postulou os pilotis, uma idéia não só original quanto revolucionária, e que fez os arquitetos repensarem as relações dos edifícios com o seu contexto. Um passo importante na história desse elemento de projeto, foi a mudança de proporções sugerida por Niemeyer, o Jovem, no projeto do MEC Rio: ao acatarem os seus argumentos e se definirem pelos nove metros de pé-direito, os autores criaram um espaço fluido e luminoso, que não deixa dúvidas quanto à sua vocação pública. No museu dos Coches, os pilotis têm a metade da altura, 4,50 m., por mais do dobro da largura. Os pilotis do Mec cobrem uma área de aproximadamente 20x30, o MC cobre cerca de 50x130. Estas dimensões tornam-se fundamentais quando se analisa as condições ambientais. Os pilotis tendem a ser áreas de concentração de ventos, podendo tornar-se desagradáveis mesmo no verão. No caso do MC, como o edifício não é muito alto, tal efeito não deve ser exagerado, entretanto há que se considerar que o lugar estará sempre em sombra, pois as maiores fachadas estão orientadas norte e sul: uma não recebe sol e na outra o sol predominante é alto. As ilustrações que acompanham o projeto sinalizam alguns problemas: a primeira mostra a luz solar penetrando de modo improvável nos pilotis. A segunda mostra linhas de iluminação no teto, lâmpadas que ficarão eternamente acesas. Qual será a ambiência desse Lugar? De qualquer modo, com 50 metros de largura, a maior parte deste espaço aberto será, sem dúvida, um interior.

    É nessa penumbra que os portugueses deverão exercer as maravilhas do passeio público. Parece-me que mais uma vez os estrangeiros se equivocam na compreensão da cultura lusitana: anteriormente, no projeto da Casa de Música, Koolhaas já havia transformado um local de possíveis encontros, numa pista de skate. Agora os patrícios não mais precisarão dos guarda-sóis.

    Um Contexto Maravilhoso
    Uma visita ao Google Earth me deixou admirado com a riqueza do contexto onde será construído o Museu dos Coches. Próximo ao Tejo, de frente para espaços públicos monumentais, tendo por vizinho o Palácio Presidencial e o Centro Cultural de Belém, projeto do Vittorio Gregotti, ladeando nada menos do que o Mosteiro dos Jerônimos. Um pouco a frente, está a Torre de Belém, exemplo máximo do gótico manuelino. Nada disso e nem os eixos sugeridos pelos monumentos existentes ou a necessidade de requalificação das ruas, parecem ter sensibilizado o “estojo” de Paulo Mendes, modo carinhoso embora mistificador, como ele trata o enorme paralelepípedo, impávido colosso. É na sutileza de estar atento para as forças do lugar que a crítica pós-moderna trouxe a maior possibilidade de aprimoramento do modernismo, independente das questões de estilo, já que, no que tange às relações com a vizinhança, os edifícios modernistas muitas vezes consideraram como suficiente a sua implantação num sítio para que a vida coletiva florescesse.

    Elaborar projetos em contextos históricos, antes de mais nada, coloca a história como referência. Nesse caso, alguns exemplos me vêem à mente. Um é dado pelos edifícios do próprio entorno, quase todos, inclusive o de Gregotti, usando o pátio central, com enormes vantagens. O outro, é a Festival Plaza da Feira Mundial de Osaka, de 1970, projeto do Arata Isosaki e dos metabolistas japoneses, com seu pé direito de mais de 30 metros.

    Talvez a missão de ser contemporâneo passe não só pelo abandono, mas também pelo abraço ao passado. Afinal, a arquitetura raramente erra quando coloca em primeiro plano a sua própria história.

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