O défice de nerdismo nacional é um problema que me assiste. Vou ao ponto de considerar o facto de não ter amigos nerds como um dos dramas da minha existência. A questão coloca-se da seguinte maneira: há toda uma panóplia de temas que fazem parte do meu universo de interesses pessoais sobre os quais não tenho quase ninguém com quem conversar. Pessoas que compreendem a importância de ir à estreia do Hobbit envergando pés-de-hobbit ou uma frondosa barba oficial do Gandalf. Aficionados da ficção científica ou do fantástico, cromos dos comics, do cosplaying e das estátuas-miniatura de super-heróis, gente que vibra com a visão da nave espacial Enterprise a elevar-se dos mares ou com o prospecto de passear pelas ruas virtuais da cidade flutuante de Columbia…
Sei que este não é um assunto sério, e tanto mais num país em crise. Mas a carência do espírito tongue-in-cheek que caracteriza a cultura-nerd reflecte um pequeno problema da sociedade portuguesa. Uma falta geral de entusiasmo pela diversidade e riqueza das formas de expressão humana.
Um dos traços mais “obnóxios” de uma certa postura (falsamente) intelectual reside na pose de enfastiamento generalizado, como se esse fosse um traço de grande selectividade mental. A consideração a fazer é que pessoas de exigência superior serão superiormente exigentes quanto ao “gosto”. Por esta ordem de ideias, quanto mais inteligente se é, mais exigente se é também e, como tal, passamos cada vez mais a gostar de menos coisas. Nada mais falso.
Acredito que este é um problema real da nossa Educação. Não somos educados para o gosto. Não compreendemos, aliás, que o gosto é toda uma ferramenta de aprendizagem. Recordo, a este respeito, um velho disco em vinil que me foi parar às mãos há muitos anos. Duas peças de violoncelo interpretadas por Thomas Demenga. No lado A uma guigue de violoncelo de Bach. No lado B uma obra contemporânea de Elliot Carter.
O álbum era acompanhado no interior por um texto de Heinz Holliger, compositor Suíço, que alertava para o contraste absoluto que o ouvinte iria encontrar.
«Although BA and CA coexist so peacefully beside each other in the alphabet, I am afraid that when the first jagged flashes of flute and clarinet rend the serene C major skies of Bach’s Gigue, your hand will rush to switch off the record player. I hope my plea does not come too late to stop this from happening. It would be such a shame if one fateful turn of the knob were to close off the new and fascinating sound-world just opened to you by those first flashes. Lie back and relax, listen, look, feel and remember the future; try to foresee the past. Let Zeus throw down from the new Olympus those shattering bolts of sound. Let the purifying spiritual storm (not just Esprit rude, Esprit doux) rage around you. You will be richly rewarded.»
Holliger alertava para o choque natural entre as paisagens serenas e familiares de Bach e o universo musical estilhaçado e abstracto de Carter. E desafiava a ir além do repúdio que se sentiria ao confrontar aquela ausência de horizontes, daquelas referências que nos são habituais. A ir para lá daquele espaço onde nos sentimos seguros e confortáveis. A ir além do “desgosto”, a aprender a gostar.
O gosto não é mais do que uma forma de compreensão, um ponto de encontro com a inteligência do autor. Para aqueles que estão dispostos a desafiar os limites do seu gosto, o mundo é um espaço de aprendizagem sem fim.
O melhor da cultura nerd é celebrar essa capacidade de gostar, o entusiasmo de sentir que “gosto disto” e quero partilhar. Desinteressadamente.
As pessoas que não gostam de nada, que se enfastiam, que sofrem de tédio, são pessoas que não sabem nada. Para todos aqueles que estejam dispostos a desafiar-se, a romper com os limites de partida que todos temos, o mundo é um lugar entusiasmante cheio de coisas para viver e descobrir em todos os sentidos, seja no cinema, na literatura, na ciência, na história, na música, na fotografia, na banda-desenhada, nos jogos de vídeo, na culinária ou no crochet, ou em todas as outras coisas em que o espírito humano é capaz de se aventurar.
Se gosto, gosto. Se não gosto, não gosto…
A sério?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Daniel,
ResponderEliminarGostei bastante de ler o seu post.
Pertinente observação acerca da falta de educação para o gosto, para o culto do gosto, para a diferenciação que necessariamente se produz entre todos nós quando assumimos os nossos gostos de forma entusiasta e a eles nos dedicamos.
Nunca entendi este fascínio dominante pelos consensos, ou pelas normalizações (mesmo quando pretensamente são alternativas e diferentes. Veja-se a moda do Instagram, os tópicos cool e o modo de comunicação que vai dominando as redes sociais. Quando não são as fotografias dos próprios, são frases, estéticas e mensagens variando infinitamente sobre os mesmo temas, alternando com o sempre típico engraçadismo ou escárnio mais ou menos agressivo...
Consequências de elevados níveis de egocentrismo? Talvez.
Susana
"Good taste is a terrible handicap."
ResponderEliminarBem vindo ao clube dos intelectuais incompreendidos. good luck trying to fit!