Uma obra estimada em 108 milhões de euros para construir em três anos. Mais de uma década passada, 400 milhões de euros depois, o parlamento Galego decidiu concluir o processo de construção da Cidade da Cultura de Galicia “tal como está”, com dois edifícios ainda por construir.
A notícia, agora partilhada por Edgar Gonzalez, confirma as perplexidades já abordadas pelo popular Jordi Évole no seu documentário Cuando éramos cultos. Um retrato severo da bolha cultural de Espanha de que agora restam cascos “sem uso nem conteúdo”, cronicamente deficitários e financeiramente insustentáveis.
Estamos perante um exemplo paradigmático de uma doença mais vasta que atinge o que tantas vezes se faz passar como "política pública de arquitectura". Que devaneios desta natureza tenham sido cometidos em nome do “apoio à cultura”, com a cumplicidade e a vassalagem de todos os agentes institucionais, é bem o retrato da corrosão ética e moral que conduziu à nossa sociedade à falência, em múltiplas formas.
Temos assim a arquitectura enquanto manifestação e veículo de narrativas políticas, uma arquitectura que não se move verdadeiramente por ideias e valores, que não traz consigo qualquer entusiasmo ou vontade de transformação do mundo, antes padece das mesmas debilidades que enfermam o discurso político corrente. Por isto mesmo são operações que se revestem de uma forte carga discursiva, ficções validadas pela chancela “notável” de autor onde confluem interesses e oportunismos geradores das maiores armadilhas financeiras. Que o interesse público, esse valor central da democracia, seja a primeira vítima destes processos é algo que não parece trazer consequência ou qualquer forma de resistência.
Trata-se de uma patologia cultural que afecta profundamente o espaço público das ideias. Tão grave quanto a actuação de políticos sem escrúpulos e sem responsabilidade é o modo como os agentes do meio arquitectónico contribuem activamente para sancionar aquela apropriação do “arquitecto” enquanto álibi da indiscutibilidade dos processos de promoção da obra pública e da sua validade programática.
Neste jogo de interesses a crítica de arquitectura representa um papel decisivo e, lamentavelmente, fatal. É certo que o exercício da crítica vive hoje refém de diversos mal entendidos pela indistinção entre informação, divulgação, opinião e esse outro trabalho maior de contextualização e confronto investigativo da história e das ideias. Também aqui a mediatização e os blogues deram tantas vezes um mau contributo, alimentando a confusão em nome de um falso debate “democrático” que mais não é do que a expressão do mínimo denominador comum do pensamento.
Mas a falência da crítica de arquitectura vai muito para lá dessa disfunção contemporânea. O que está em causa é a legitimidade da crítica enquanto suporte voluntário da construção de narrativas artificiosas, ausentes de qualquer frontalidade ou substância. Como se a obra de arquitectura fosse legitimável enquanto manifestação de si própria, divorciada do tecido financeiro, económico, social, político, cultural em que tem lugar. E como se o crítico pudesse sê-lo sem ser cidadão do seu tempo.
Se vivemos um tempo de narrativas é exactamente por habitarmos um território de não-crítica. O que testemunhamos são representações de crítica, vazias e rotundas, ensaiando ocasionalmente laivos de irreverência, sempre e invariavelmente atirando sobre alvos fáceis. Em boa verdade, mais não são do que exteriorizações de uma cultura falida e moribunda, animada apenas pelo momento de tempos passados, tal como estas arquitecturas.
Estas questões, previsivelmente, não se verão abordadas em qualquer conferência ou editorial.
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