Uma história simples



A maioria dos portugueses que irá votar no dia 4 de Outubro não saberá o que é o "quantitative easing". Como não estará a par dos efeitos da intervenção do Banco Central Europeu na compra de títulos de dívida pública, em mercado secundário, a partir de 2012. No entanto, a actuação do BCE está no centro daquilo que distingue a situação portuguesa, no início e no fim desta legislatura.
Os títulos de dívida pública portuguesa atingiram juros recorde, acima dos 10%, em 2011. Hoje o país consegue emitir dívida a juros inferiores a 3% e até a 2%. Alguém está interessado em saber porquê?

Uma história simples será dizer que o país reconquistou a sua credibilidade junto dos "mercados". Mas, como nos lembrava há poucos meses Philippe Legrain, o produto interno regrediu na ordem dos 7,5%, o crescimento é débil, o desemprego é elevado (traduzindo-se numa redução real do número de empregos e do número de empresas em actividade), a emigração atinge valores sem precedentes (da ordem dos 400.000 portugueses em quatro anos, muitos deles, como sabemos, jovens qualificados). A isto acresce que, entre os empregos que se perderam e os que se ganharam, ocorreu uma perda de rendimento do trabalho. E, pior, a dívida pública não diminuiu, mas aumentou.

Ou seja, não estamos hoje menos falidos do que há quatro anos. A grande diferença é que hoje o país consegue financiar-se a juros mínimos, nos mesmos mercados que tanto nos castigaram no início da legislatura. Porquê?
Porque o BCE levou a cabo uma política de intervenção nos mercados de dívida, comprando numa primeira fase títulos em mercado secundário, e, numa segunda fase, levando a cabo uma gigantesca operação de "quantitative easing". O que é isso?

O "quantitative easing" é um processo de criação de dinheiro pelo BCE, que ascende a valores da ordem de 1,2 biliões de euros, para compra de títulos de dívida pública que estavam na posse dos bancos.

Ao fazê-lo, o BCE introduziu uma enorme pressão negativa nos juros dos títulos de dívida da zona euro (exceptuando a Grécia que não foi coberta pelo programa), e transformou esse "imobilizado" dos bancos em reservas novamente disponíveis.
Ou seja, não só produziu uma enorme baixa nos juros, como permitiu que os bancos tivessem dinheiro disponível para emissão de crédito novo na economia. Algo que os cidadãos e as empresas começam igualmente a sentir, e que alguns traduzem numa conclusão simples: a economia está melhor.

A primeira interrogação que nos devíamos colocar reside em saber, afinal, porque é que o BCE só levou a cabo a sua estratégia de "quantitative easing" em 2015, sabendo-se que os Estados Unidos iniciaram esse processo em 2008 e o Reino Unido em 2009. Tivesse a Europa e o BCE contrariado a tendência especulativa dos mercados mais cedo e talvez países como Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, tivessem sido poupados aos efeitos destrutivos que esse fenómeno trouxe às economias destes países.

Mas a Europa fez aquilo que costuma fazer perante os problemas, traduzido na expressão bem conhecida de “dar o pontapé na lata pela estrada fora”. Preferiu, afinal, alhear-se da necessidade de levar a cabo uma acção defensiva da especulação financeira sobre os títulos de dívida dos países mais vulneráveis da zona Euro, substituindo-a pelo conjunto de políticas recessivas que hoje tão bem conhecemos.

A conclusão, infelizmente, é ainda pior. As pequenas melhorias que sentimos, traduzidas em indicadores parcelares e selectivos, estão longe de ser estruturais. São simplesmente o efeito da acção conjuntural do BCE, de que o "quantitative easing" é apenas um corolário. Alterando-se as condições agora presentes, por mudança de orientação da política europeia ou por efeito de uma crise externa, seremos novamente confrontados com as nossas fragilidades de sempre, agora agravadas pelo empobrecimento que nos deixaram estes anos de austeridade.

Mas talvez muitos eleitores prefiram uma história simples. Afinal de contas os juros estão mais baixos, os bancos já emprestam dinheiro e o deve e haver da taxa de desemprego até está a melhorar. O pior já passou. E hoje à noite dá futebol.

A última floresta de Takashi Amano



Florestas Submersas é o título da exposição temporária patente no Oceanário de Lisboa. No centro da instalação encontra-se um notável aquário com cerca de 40 metros de extensão – considerado o maior nature aquarium do mundo – criado pelo mestre japonês Takashi Amano, entretanto falecido.

A obra retrata a paisagem dos cursos de água das florestas tropicais, evocando a simplicidade e a grandiosidade da natureza. A experiência convida os visitantes a reflectirem sobre a urgência da conservação e preservação dos ecossistemas aquáticos, continuamente ameaçados pela actividade humana. A exposição é acompanhada por uma orquestração criada por Rodrigo Leão especificamente para o evento, servindo de complemento perfeito à atmosfera imaginada pelo seu autor.



Aos 61 anos, Amano era mundialmente reconhecido como o precursor do aquapaisagismo. Tornou-se mestre internacional da aquariofilia de água doce com a criação de um estilo próprio de aquários plantados, os "nature aquarium". A sua notável arte procurava interpretar a natureza, combinando técnicas de jardinagem japonesas com o conceito wabi sabi, promovendo o encontro da beleza com a simplicidade e a imperfeição. Takashi Amano viajou pelas maiores florestas tropicais do mundo retratando a harmonia das paisagens e florestas pristinas. O aquascaper japonês acreditava que, ao prestar atenção à natureza, podemos perceber melhor o nosso mundo e aprender a preservá-lo.

Via Oceanário de Lisboa. Créditos de imagem: Pedro A. Pina, via RTP e Público.

A mortalha do amor



Este texto contém spoilers sobre o filme Like Crazy de Drake Doremus.

Que um filme carregado do mais belo romantismo seja, ao mesmo tempo, uma obra terrivelmente anti-romântica, eis o paradoxo com que nos confronta Like Crazy. Lançado em Portugal com o enganador título Loucamente Apaixonados esta é a história de dois jovens adultos, Anna e Jacob, ele americano e ela inglesa, que se apaixonam.

Realizado por Drake Doremus em 2011, na altura com menos de trinta anos de idade, este é um trabalho independente com produção de baixo orçamento fortemente assente na entrega de dois jovens actores então em ascenção: Felicity Jones e Anton Yelchin. Construído a partir de um argumento pouco rígido, enfatizando a improvisação em muitos dos gestos e dos diálogos, o filme resulta da cumplicidade do par principal, envolto pela extraordinária música para piano de Dustin O'Halloran. É fácil perdermo-nos na magia poética presente no olhar de Doremus e acreditarmos, como acreditam Jacob e Anna, na força daquele amor.



Mas há muito mais em Like Crazy do que a repetição dos muitos clichés do género romântico. Estamos perante uma obra de invulgar maturidade que nega uma qualquer visão pueril do amor puro e purificado. Pelo contrário, trata-se de observar a contaminação desse mesmo amor pelas muitas externalidades inevitáveis que a vida acabará por trazer: seja pela distância ou pela dor da separação, pelos mal-entendidos, pelos erros, pelo ressentimento ou tão só pela prevalência do pragmatismo.

Vêmo-los enfrentar os atritos que desafiam a sua ligação profunda. Partilhamos com eles o desejo do reencontro com a magia daqueles primeiros tempos, que Jacob e Anna continuarão a perseguir até ao fim. É por isso tão mais dolorosa a sua resolução; que o amor afinal se desvaneça sem catarse, sem conflito, sem discussão, revelando-se tão só um lugar a que possa ser impossível verdadeiramente regressar.
Eis um filme que nos convida a questionar a natureza complexa do amor, da sua força e da sua fragilidade, da construção e da desconstrução dos afectos perante as adversidades inevitáveis da vida adulta.

Lá em cima



Pôr-do-sol em Plutão. A imagem agora revelada pela NASA foi captada pela sonda New Horizons durante a sua passagem junto ao planeta-anão, a apenas 18.000 quilómetros da superfície, no dia 14 de Julho deste ano. Via Kottke.

Pano de fundo



Children of Men: Don’t Ignore The Background é o título do mais recente ensaio vídeo do canal YouTube Nerdwriter. Partindo da análise do filme dirigido por Alfonso Cuarón em 2006 o autor apresenta-nos as múltiplas dimensões da construção de uma narrativa aparentemente linear, tomando como ponto de partida a inter-relação entre o primeiro plano e o pano de fundo. Muito mais do que a reflexão sobre um filme, está em causa a dificuldade em abarcar a compreensão da realidade a partir da circunstância individual da nossa experiência de vida.

De certa forma, aquilo que nos é contado a partir de um objecto cinematográfico transporta-nos para a nossa relação com o mundo através dos mídia. Não é alheio a esse debate a prevalência da imagem na bipolarização de opiniões, nos meios de comunicação e nas redes sociais, como temos assistido, por exemplo, a propósito do fenómeno dos refugiados na Europa.
Não se trata de desprezar a pertinência das imagens na consolidação de um entendimento do mundo que nos rodeia, em toda a sua complexidade. Mas importaria ter presente – em particular aqueles que deviam defender a dimensão mais nobre do jornalismo – que as imagens não devem servir para promover uma "dramatização informativa" que negligencie uma tradução profunda dos dramas mais vastos em que se inscrevem.

Como vem referindo João Lopes nas reflexões que vem partilhando a propósito do papel da comunicação social e, em particular, da televisão, estamos perante um panorama de afunilamento mediático em que parece persistir "a vontade totalizante de colocar o mundo inteiro a ver o mesmo ao mesmo tempo”. É no confronto com esta realidade que a direcção de Cuarón se revela um documento particularmente didáctico, ao afastar-se recorrentemente da narrativa de primeiro plano para nos revelar o subtexto da envolvente mais ampla com que, mais cedo ou mais tarde, as suas personagens estarão condenadas a confrontar-se. Fala-nos, no fundo, de algo tão próximo da nossa condição contemporânea, num momento em que a História nos parece bater à porta.



Neste tempo em que, por demasiadas vezes, certas imagens são elevadas a essa condição simbólica, valerá a pena relembrar o modo como Michael Moore foi capaz de “mostrar” o drama vivido no dia 11 de Setembro de 2001 através dos terríveis sons captados nas proximidades das torres gémeas, confrontando os espectadores das salas de cinema com longos minutos de ecrã negro. Paradoxalmente, enquanto os mídia informativos vão promovendo o recurso à imagem como exaltação de um “registo da verdade”, o cinema continua a afirmar-se como instituição capaz de nos convocar para uma compreensão interior desse mundo lá fora, tão difícil de apreender.