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Segunda-feira


Fahrenheit 9/11: a América segundo Michael Moore.

Por detrás do ecrã negro que acompanha os sons do 11 de Setembro apresentados no início de Fahrenheit 9/11 está o trauma de um país que acordou para uma dura realidade e se contaminou pelo medo e a incerteza. O documentário de Michael Moore nasce dos ecos desse trauma e é, quer se queira quer não, um documento fundamental para conhecer uma certa visão da América que tenta compreender o seu papel no mundo e as suas próprias contradições internas.

Fahrenheit 9/11 é um filme sobre George Bush e o seu aparelho de poder. O discurso do filme é profundamente activista e manipulador, juntando depoimentos, co-relações e associações de factos com vista a construir a visão subjectiva e interpretativa de Moore a respeito da América. O filme transcende assim o simples papel documental para se assumir como uma clara afirmação política. É no entanto o carácter subjectivo do filme que lhe confere a sua maior força. De certo modo, o que Moore faz não é muito diferente daquilo que acontece um pouco no domínio de opinião de muitos outros media (incluindo a Blogosfera), as diferenças nascem principalmente pela manipulação dos códigos televisivos, pervertendo-os enquanto “registos da verdade” que não necessitam de reflexão do espectador. Esta questão central levantada por João Lopes é uma chave para compreender o alcance deste filme. Fahrenheit 9/11 é um filme com um ponto de vista, mas significará isto que se trata de um filme perigoso? A resposta é simples: tão perigoso como assistir a qualquer outro media sem sentido crítico, sem tentar compreender o que está por detrás das imagens ou dos “factos” que estamos a ver.

Se o filme de Michael Moore se resumisse à teoria da conspiração que por vezes sustenta relativamente à legitimidade presidencial de Bush ou às suas relações mais ou menos próximas com a família Bin Laden (por via de ligações a poderosos grupos económicos), os ataques “ponto a ponto” de que o seu filme tem sido alvo ganhariam a maior relevância. É certo que em alguns casos a tese de Moore assenta numa espécie de demonstração de que “onde há fumo há fogo”, o que não sendo totalmente consequente não deve por isso deixar de ser motivo de reflexão. No entanto, a verdade é que a maioria das asserções do filme fazem parte do domínio publico e não constituem, por si só, uma novidade. Para lá disto, o inquestionável alcance do filme deve-se à demonstração clara de duas questões fundamentais: em primeiro lugar a promiscuidade entre fortes grupos económicos e a a orientação política (militarista) da actual presidência americana; em segundo lugar a forma despudorada como se conduziu um país (e o mundo) para uma guerra que prossegue um conjunto de fins explicitamente económicos e é mantida por todos os meios necessários e para lá de toda e qualquer sustentabilidade.

É no fundo esse retrato da América que é o principal ponto de interesse de Fahrenheit 9/11 e o essencial da sua mensagem, tornando-o num documento pejado de motivos de reflexão. Se o filme divaga aqui e ali em pontos menos consequentes, não pode deixar de inquietar pela crueza de alguns dados que fornece: a percepção americana em relação à sua segurança interna, as tácticas de recrutamento militar, a imaturidade e inconsciência de alguns soldados relativamente aos objectivos da sua missão, a exploração assumida da guerra como fonte de enorme potencial económico e, principalmente, a ausência de substância dos principais intervenientes políticos, com particular focagem sobre o presidente Bush, incapaz de exprimir a dimensão dos sacrifícios que tem exigido à América em nome da “guerra ao terror”.
Não deixa de ser curioso que este filme sirva para explicar (involuntariamente) a questão dos abusos ocorridos na prisão de Abu Ghraib: numa das sequências apresentadas, soldados americanos parodiam prisioneiros iraquianos encapuçados em humilhações que parecem preceder aquilo que viria a ocorrer na referida prisão. Aquilo que inicialmente nos fez questionar de “como foi possível” parece afinal uma inevitabilidade resultante do contexto sociológico em que tudo aquilo acontece. Uma contradição que acaba por resultar na paradoxal inquietação manifestada por alguns soldados em relação ao ódio anti-americano dos civis iraquianos.

O filme de Michael Moore resume-se, afinal, a uma exposição de como fortes grupos económicos com enorme influência política têm determinado as principais decisões da nação, indiferentes aos efeitos que estas decisões têm sobre a sua população e o mundo em geral. Por este motivo, a ironia contida no filme é incapaz de esconder uma crua realidade: que este documentário não é uma comédia mas um filme de terror.


George Bush: "What an impressive crowd: the haves, and the have-mores. Some people call you the elite, I call you my base."

Referências:

[Fahrenheit 9/11, site oficial]
[Michael Moore, site oficial]
[Pedro Ribeiro: Factos & Sugestões, Jornal Público, Suplemento Y]
[Roger Ebert '9/11': Just the facts?]
[Roger Ebert, Chicago Sun-Times]
[Unfairenheit 9/11: The lies of Michael Moore by Christopher Hitchens]
[Fifty-nine Deceits in Fahrenheit 9/11 by Dave Kopel]
[More Distortions From Michael Moore]
[MooreWatch]
[Moore Lies]
[Bowling For Truth]

Mais:

[A Barriga De Um Arquitecto: Máquinas De Inquietação, 2004-01-30]

2 comentários:

  1. O teu ponto de vista sobre o filme é deveras interessante, mas permite-me que teça alguns comentários aos teus comentários
    1. Sobre "(...) juntando depoimentos, co-relações e associações de factos com vista a construir a visão subjectiva e interpretativa de Moore a respeito da América".
    Podem chamar-lhe de opinião (sinónimo de "visão subjectiva") mas esta opinião de Moore nem sequer é dele. É da esquerda liberal. É a minha. É a de alguns senadores democratas negros que viram os seus compatriotas da Florida sem poder votar porque uns trastes eliminaram dezenas de milhares de votos dos quais pelo menos 80% estão registados como democratas.
    A grande maioria do filme são factos. E obviamente são editados, de outra forma o filme não pode condensar 3 anos de história em 2h30m.
    Mas é muito para além de uma opinião: é uma série de conclusões retiradas de forma perfeitamente séria e objectiva de uma série de acontecimentos. Se para alguém estes acontecimentos são novidade (para ti já vi que não são), precisam de ler pelo menos "Stupid White Men" (já traduzido para português) e "Dude Where's My Country" (desconheço se está traduzido). Estes livros apresentam muito mais factos; dou um DOCE a quem mantiver a linha de "opinião" ou "visão subjectiva" depois de ler os factos descritos nestes dois livros.

    Já agora nota que a maioria dos factos apresentados no filme foram reportados pelos media tradicionais mas esquecidos ou ignorados pelos opinion-makers. É apenas necessário que alguém os ligue de forma lógica para se compreender a linha comum que os une. Essa linha existe.

    2. Referiste a "teoria da conspiração que por vezes sustenta relativamente à legitimidade presidencial de Bush ou às suas relações mais ou menos próximas com a família Bin Laden". Não há teoria da conspiração. Até ao 11/9/2001 os Bush nunca esconderam a sua amizade pelos sauditas. Só depois. Porquê?
    E Reagan, como já afirmado há muito, inclusivamente no filme anterior de Moore, "Bowling for Columbine", ajudou a criar as milícias dos Mujahedeen, incluindo a formação da Al-Qaeda, para ajudarem a defender o Afeganistão dos Soviéticos. Como viste no filme isso foi afirmado pelo próprio Bandar, embaixador da Arábia Saudita nos EUA, no próprio "Larry King". E durante os anos 80 os EUA armaram Saddam até aos dentes, depois tornaram-no num inimigo. Deduzes daqui um padrão? Ou deixas a conclusão para a "visão subjectiva"?

    3. Tocaste num ponto fulcral quando afirmaste que "este documentário não é uma comédia mas um filme de terror." É e-x-a-c-t-a-m-e-n-t-e isso! Por muito que nos riamos do Bush, o objectivo do filme é conseguido precisamente através da passagem da novidade: tenham tanto ou mais receio do Bush do que dos (outros) "terroristas".

    http://ditocujo.weblog.com.pt/

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  2. Li atentamente e concordo. Repara, quando afirmo que a visão do filme é subjectiva e interpretativa não estou a dizer que é falsa. Pelo contrário, penso que a reflexão oferecida no filme é particularmente forte e em certos momentos desconcertante por endereçar-se a aspectos da lógica de guerra que raramente vi aflorados nos media. É por isso que afirmo que o aspecto mais forte do filme não são os factos noticiosos apresentados, muitos dos quais são conhecidos (por quem procure cruzar informação através de diversos meios) mas sim a “interacção” de aspectos múltiplos da realidade que são associados por Moore segundo os seus próprios critérios mas sem por isso deixarem de ser em muitos momentos inteiramente consequentes.

    Quanto à própria contestação de muitos dos “factos” apresentados por Moore, em especial os aspectos da legitimidade eleitoral ou das ligações sauditas da família Bush (que têm sido particularmente alvo de análise e contestação) devo dizer que a maior parte deles sustentam-se em afirmações bombásticas mas que nada têm de verificável. Na maioria das vezes têm, aliás, uma agenda política fácil de detectar, e chegam mesmo a caír no ridículo. Um desses exemplos (Dave Kopel: Fifty-nine Deceits in Fahrenheit 9/11, que está referenciado no fundo do meu texto), chega mesmo a defender o comportamento de Bush no dia 11 de Setembro ao manter-se na aula de uma escola primária a ler um livro infantil após tomar conhecimento dos atentados que estavam a ocorrer, com um ar perfeitamente confrangedor. Se fosse um presidente democrata, não é difícil imaginar o tipo de críticas que pessoas como Kopel lhe endereçariam.

    A estratégia é, de resto, velha: descredibilizar ao máximo o autor das críticas (neste caso Michael Moore, autor do filme), fazendo um zoom sobre os dados menos coerentes ou passíveis de contraposição, tentando obscurecer a força da visão global de Moore. Ora, por mais por mais que tentem, o essencial da mensagem de Moore passa incólume a esse tipo de ataque porque assenta numa exposição inquestionável das movimentações e interesses económicos que rondam a agenda política (neste caso americana), conduzindo inclusivamente o país para a guerra em nome desses interesses e sustentando as suas acções numa legitimidade baseada em mentiras que o tempo viria a fazer caír por terra de uma forma tão evidente quanto escandalosa.

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