Na génese do urbanismo americano, o passeio (sidewalk) ocupa um papel importante que está intimamente ligado ao conceito de comunidade. O troço não pavimentado e lamacento das vias destinado aos veículos não era lugar para os habitantes. Passadiços limpos e seguros na berma da rua providenciavam um caminho seguro para o percurso dos pedestres. As áreas residenciais aninhavam-se próximo dos lugares de trabalho e comércio porque, para a maioria das pessoas, caminhar era a principal forma de transporte.
Mesmo com a chegada do comboio entre as cidades e, mais tarde, dos eléctricos urbanos (streetcars), o caminho pedonal continuava a ser o modo primário de deslocação no início e fim dos percursos.
Ainda que os veículos eléctricos tenham dado origem a pequenos subúrbios, a maioria das casas continuava a aconchegar-se em pequenos quarteirões próximos da paragem do eléctrico. Os passeios providenciavam o meio de acesso da casa ao transporte. Assim, e até ao aparecimento do automóvel, as cidades americanas eram geralmente compactas na forma e davam resposta às necessidades dos pedestres.
À medida que as cidades se foram tornando mais dependentes do automóvel, o passeio foi gradualmente perdendo importância até desaparecer completamente de muitos desenvolvimentos suburbanos. Vários factores determinaram esta realidade. Em primeiro lugar, as zonas residenciais foram-se tornando cada vez mais isoladas das áreas comerciais, parques ou escolas e lugares de trabalho. O carro tornava-se a forma dos cidadãos chegarem a todo e a qualquer lado. Em termos práticos, onde anteriormente fazia sentido caminhar três ou quatro quarteirões (cerca de 400 metros) para uma escola próxima, loja ou parque, nesta nova realidade esses equipamentos e serviços encontravam-se agora a vários quilómetros de distância.
Por outro lado, o automóvel permitia criar zonamentos habitacionais com dimensões muito maiores. Como resultado a instalação de um passeio nessas zonas extensas tornava-se demasiado dispendiosa. Finalmente, era a própria tipologia residencial resultante desta lógica de ocupação do território que desencorajava a actividade pedonal.
Temos assim que antes da Segunda-Guerra Mundial, o passeio era um componente essencial no desenvolvimento da comunidade e dos bairros habitacionais. Depois da guerra o desenvolvimento suburbano tornava as áreas residenciais cada vez mais afastadas dos serviços, e os passeios foram perdendo a sua importância no desenho urbano.
Nos Estados-Unidos, a constatação deste fenómeno deu origem a um movimento particular chamado New-Urbanism, ou um retorno aos valores tradicionais de um urbanismo voltado para uma lógica de comunidade. Os passeios foram reconhecidos novamente como um elemento fundamental ao funcionamento social da vizinhança.
A tipologia do passeio americano resulta de uma lógica funcional e muito económica. Em primeiro lugar, o trajecto pavimentado (geralmente em betonilha esquartelada) afasta-se da via automóvel, dando lugar a um espaço destinado à plantação de árvores de sombreamento. Essas árvores protegem a faixa automóvel mais junto à berma, geralmente destinada a estacionamento.
Por outro lado, uma pequena faixa separa o passeio do início do lote. Esta área usualmente plantada e não pavimentada, serve para passagem das infra-estruturas, tornando as intervenções futuras muito mais económicas.
Por fim, o início do lote privado não corresponde ao início da construção, mas sim à vedação que separa o domínio público de uma zona tipologicamente semi-privada que favorece uma extensão visual da rua.
Ainda que esta tipologia de rua não tenha paralelo no contexto do urbanismo do sul da Europa, não deixa de ser interessante pensar nas preocupações culturais que lhe estão subjacentes. Não pretendo fazer aqui uma análise sociológica de aspectos particulares do urbanismo americano. A suburbanização urban-sprawl deu origem a apropriações de linguagem urbana que resultaram como verdadeiras caricaturas de uma ideia perversa de sociedade perfeita. No entanto, na sua origem e tipologias, o urbanismo americano responde a valores de comunidade e integração social muito racionais e igualitários. E a pergunta que deixo no ar é se o nosso urbanismo, como está regulamentado nos planos locais e na legislação nacional, responde a alguma visão social sobre a “rua”, o “passeio” ou a “comunidade”? Se, bem ou mal, temos em Portugal alguma doutrina urbanística que dê resposta a uma ideia de sociedade, ou se a lógica miserabilista do muro-passeio-rua-passeio-muro é apenas o eco da nossa intrínseca pobreza cultural, no que ao urbanismo diz respeito?
[fontes e imagens: J.J. Fruin, Pedestrian Planning and Design, Metropolitan Association of Urban Designers and Environmental Planners, New York; J.H. Allen, "Engineering Pedestrian Facilities" in Getting There By All Means: Interrelationships of Transportation Modes, 8th International Pedestrian Conference]
Sidewalk, o passeio americano
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Apesar de já ter visto por diversas vezes este tipo de sistema nunca me tinha apercebido de quão genial era! Realmente de uma simplicidade e de um pragmatismo desarmantes...
ResponderEliminarQuanto ao urbanismo em Portugal nem vale a pena falar. É a coisa mais serôdia e estúpida que conheço e o resultado são as cidades mais feias se não do mundo pelo menos da Europa! E as que eram bonitas já vão pelo mesmo caminho graças às "novas urbanizações"...
obvious
Caro Daniel,
ResponderEliminarContinua a ser um prazer visitar o seu blog ! AQpende-se sempre qualquer coisa.
Dia 31 de Maio foi o acesso a um excelnet blog o ZARP.
Hoje é o«a história do "sidewalk". Sobre esta só me vem à cabeça a máxima : " Não vale a pena reinventar a roda !"
Parabéns e cumprimentos,
António P.
As coincidências da vida...
ResponderEliminarPasso a explicar, precisamente hoje na aula de projecto Urbano discutíamos o papel do passeio, e as qualidades de praça (e como é cada vez mais raro encontrar uma praça que realmente funcione como praça) quando alguns chegam à conclusão que o indivíduo usa cada vez menos o espaço público porque este mudou com a sociedade e o automóvel. Em que contraponho que as pessoas em Portugal usam cada vez menos o espaço público (e o passeio por conseguinte), não porque a sociedade mudou, mas sim porque houve um pobre planeamento urbano nas nossas cidades nos últimos 100 anos com as excepções do Bairro de Alvalade e Olivais, uma vez que se privilegiou claramente o automóvel em detrimento do peão. Quando se tem mais de uma faixa num sentido e não se tem um passeio de pelo menos 4 a 5 metros, é nos impossível usar esse espaço sem se sentir intimidado pelo trânsito ou apenas incomodado e tantos outros “dados”.
Exemplo do cruzamento entre a Av. Estados Unidos da América com a Av. de Roma, como é que este espaço pode ser vívido pedonalmente se existem 6 faixas de tráfego entre cada margem da rua!? Temos exemplo de uma das mais famosas praças da cidade: o Rossio de Lisboa. Como é que este espaço pode ser vivido com tanto tráfego a circular em seu redor, quando não existe nenhum mobiliário urbano e a sombra nestes dias abrasadores é completamente ausente.
Enfim, a sociedade pode ter mudado e a maneira de usar o espaço público também. Mas terá de se mudar é a mentalidade de quem planeia as nossas cidades, dêem uma hipótese às pessoas de andarem a pé de desfrutarem da cidade enquanto peão e não apenas de andarem entaladas entre fachadas e carros.
Também coloquei a resposta no meu blog!
ResponderEliminarhttp://nozes2.modblog.com
Cumprimentos
Muito interessante. Nunca tinha pensado a sério nalguns pormenores que referes. Sidewalks destes poderiam ser mais aplicados por cá, e toda uma renovação urbanística subjacente. Mas isso é outra conversa.
ResponderEliminara aplicação deste sístema, seria por cá vista como uma manobra de n rentabilidade do espaço, n estou a ver ninguém a abdicar parcialmente do seu lote interior para q o mesmo se constitua como uma frente semi-privada...n era só a regulamentação..era as mentalidades.
ResponderEliminarcomo e bom ler e aprender,
ResponderEliminarobrigado,gostei muito.
Muito interessante!
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