Casa do Conto


«Algures, entre a casa e a cidade, pousam as páginas de um conto onde todos temos lugar.»

Um trecho difícil que por momentos se percorre na história da Casa do Conto. Uma habitação burguesa do século XIX, em pleno coração da cidade do Porto, vinha sendo recuperada para fins culturais e turísticos, promovendo o cruzamento de pessoas e ideias no palco de uma cidade.
A Casa do Conto teria sido aberta ao público no dia 21 de Março. Infelizmente, no passado dia 6, um trágico incêndio devastou o edifício que começava a ganhar vida após um esforço de enorme dedicação e respeito pelo seu valor arquitectónico.
É um trabalho de amor que por momentos se perde, que agora invoca o melhor de nós próprios para fazer renascer o sonho de uma casa onde novas histórias se possam contar.

Esta 2ª feira, dia 30 às 21h30, realiza-se no Clube Literário do Porto um leilão para apoio à reconstrução da Casa do Conto. «Acreditando nas potencialidades da 'Casa do Conto', um projecto que reabilitava uma casa do século XIX para 'artes+residência', inserido no tecido histórico e cultural da cidade, alguns amigos associaram-se para ajudar a dar continuidade ao projecto que o lamentável incêndio ocorrido na madrugada do passado dia 6 de Março adiou.

Álvaro Siza, Ângelo de Sousa, Eduardo Souto Moura, Júlio Pomar, Manuel Casimiro, Manuel Tainha, José Gigante, Margarida Carronda, Paula Santos, João Mendes Ribeiro, Fernando Guerra, Graça Correia, Roberto Ragazzi, António Olaio, Gabriela Vaz Pinheiro, Luísa Penha, Pedro Bandeira, Dulcineia Santos, Nuno Brandão Costa, João Pedro Serôdio, Luis Tavares Pereira, Guiomar Rosa, Alexandre Marques Pereira, Cristina Mateus, Álvaro Domingues, Ana Fernandes, entre outros, contribuíram com desenhos, imagens e fotografias, para realizar um Leilão que reverterá para a reconstrução da Casa do Conto.»

Fica também a convocatória para todos aqueles que desejem participar com a sua ajuda e o seu contributo.
EMAIL: info@casadoconto.com
NIB: 0018 0003 18723395020 69
IBAN: PT50001800031872339502069



Casa do Conto (House of Tales) opening would be celebrated on 21st March 2009. Unfortunately, on 6th March 2009, a tragic fire devastated this delightful 19th-century bourgeois residence that was currently being renovated for cultural and touristic purposes. Please visit Casa do Conto for more details.

Discurso directo

«O achómetro é um grande espaço de falsa democracia que se deixa criar em torno de um projecto, permissivo a boquinhas bem intencionadas, bocas mandonas ou bocarras ignorantes. É um forum de generalidades, uma escala de aferição cujos valores se anulam; é um triunfo do amadorismo.»
Carlos Coelho, Paulo Rocha, «O Achómetro».

Caro Pedro,
O diálogo directo na blogosfera tem os seus riscos, entre os quais a dificuldade em estabelecer um tom na palavra escrita tantas vezes sujeito às interpretações mais diversas. Segue por isso esta pequena nota introdutória para sublinhar que nada do que pretendo contrapor se reveste de inquietação ou ironia.
O Pedro contesta o método que avancei para reflectir sobre o projecto do Novo Museu dos Coches. O que é legítimo e ao que tentarei corresponder com um esforço de reciprocidade. Parece-me no entanto que cai numa patologia recorrente na nossa forma portuguesa de discutir, dentro e fora dos blogues. Fica a referência ao que escreveu o João Lopes sobre a «Violência dos blogs», quanto à tendência para reduzir a argumentação do «outro» à caricatura, no pressuposto de que «pensando diferente, só pode pensar mal».
Refiro-me à redução da minha abordagem a uma avaliação tecnocrática da arquitectura. Tento compreender o entendimento que se faz desse lado, mas tenho de declinar o epíteto. Porque não está em causa uma visão bidimensional da crítica de arquitectura, ou algo ainda mais redutor, unidireccional, em que só se pode estar de um lado ou de outro. Resultaria assim a postura idealista do Pedro contra a minha postura, diria materialista. A lembrar uma passagem do filme «Clube dos Poetas Mortos» onde se parodia um método de análise científico para quantificar a qualidade de um poema segundo parâmetros que permitem estabelecer um gráfico e atribuir uma percentagem. Tornei-me então no senhor Pritchard.

Dito isto, devo uma explicação. Porque avancei com a proposta de deixar de lado uma apreciação mais subjectiva, do «gosto»? Qual é afinal o meu posicionamento que tanto o intriga? O Pedro extrai uma conclusão possível: que essa dimensão subjectiva – a explicação do objecto através dele próprio – me é irrelevante para a qualificação da obra. E este equívoco talvez me seja atributível. Porque poderemos dizer que essa dimensão subjectiva é mesmo a mais importante. Tal como num filme, aquilo que lhe confere uma expressão superior enquanto Cinema é a sua capacidade de se transcender enquanto objecto, estabelecendo connosco uma relação mais íntima, que nos comove, «abalando toda a verdade do que somos». Aquilo que, verdadeiramente, nos enriquece. Agora se queremos falar aprofundadamente sobre cinema talvez nos seja devido um olhar para outros aspectos mais diversos da construção técnica, narrativa e artistica, que não sendo quantificáveis são, pelo menos, qualificáveis.

Ao contemplar o projecto do Novo Museu dos Coches – cuja expressão pública legitíma o seu questionamento - devo salientar que não estou a fazer crítica de arquitectura, antes uma análise de projecto. Está aí, aliás, a nossa grande diferença de entendimento. Estamos a utilizar as mesmas palavras mas falamos de coisas diferentes. O Pedro refere-se ao «projecto» como quem fala da obra de arquitectura. Eu falo de «projecto» enquanto processo que materializa fundamentos programáticos em obra física. E vejo o acto de desenho de arquitectura como um processo criativo desenvolvido para resolver problemas muito diversos. Como diz o Thom Mayne, a arquitectura resulta em grande parte de fazer perguntas que nos permitem obter uma visão global da complexidade que nos rodeia e assim identificar soluções. É disto que falo, do modo como naquele processo se fundem os objectivos de um programa, os ideais que lhe estão presentes, e os constrangimentos das condições que o envolvem.

Assim começo por questionar o Novo Museu dos Coches na sua dimensão programática. Porque não estamos perante uma escultura que se auto-legitima - «o objecto através dele próprio». Estamos em primeiro lugar perante um museu – é história e cultura – e também perante um objecto que tem dimensão urbana – é cidade e vida pública. Para mim, a relevância do significado dessas funções – à falta de outra palavra – introduz-lhe um conjunto de responsabilidades que devem ser dramatizadas.
Porque o processo da arquitectura começa a montante do desenho. E a apreciação da obra não é redutível à apreciação da dimensão estética do objecto, como se nada mais existisse. Talvez esse exercício sirva, mal, os críticos de arquitectura. Mas não serve a arquitectura naquilo que tem de expressão sobre a comunidade. Pelo contrário.

Quando o Pedro questiona, por exemplo, o que é que a arquitectura tem a ver com a «valorização do potencial turístico», deixa bem claro o mundo inteiro que nos divide. Porque estamos a falar do primeiro objectivo traçado para o plano «Belém Redescoberta», de que este projecto é a principal iniciativa. Podemos negligenciar isto? Compreendo que isto possa não interessar ao Pedro – ou ao Paulo Mendes da Rocha – quando pensa sobre arquitectura. Peço-lhe apenas que, de igual modo, compreenda que me interessa a mim.

E qual é o meu posicionamento, afinal? Quando afirmo que existem vários aspectos no projecto que levantam interrogação estou a dizer que não encontro nas peças disponíveis a resposta a questões programáticas que, naquele contexto, com aquelas funções, me são particularmente sensíveis. Interrogo-me quanto à natureza daquele espaço público sem limites, o significado do despojamento funcional que ali se enuncia, a expressão pública daqueles contínuos volumétricos. E interrogo-me quanto ao modo como aqueles espaços museológicos nos relacionam com a história dos seus conteúdos, como os comunicam, como os dão a ver e a viver.
Acima de tudo, não dou o assunto por resolvido. E não reduzo o projecto a um rótulo, seja ele qual for, avalizado por quem for. Mas tudo isto, claro está, não deixa de ser apenas aquilo que eu «acho».

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Se construires, eles vêm. Ou se calhar não.


Bom, resultou para o Kevin Costner.

Aí estava eu a percorrer o blog do Gamespot Work in Progress, no meu regular momento geek, quando descobri este artigo interessante sobre um jogo chamado Cities XL. É um festival de construção no mundo virtual ao estilo sim-city em que vocês – sim, vocês - podem ser arquitectos de sucesso e criar fantásticas mega-estruturas, sem os aborrecimentos de uma economia real para vos chatear. Eis o escapismo de que estamos a precisar nos dias que correm uma vez que, ao que parece, vamos todos estar desempregados daqui a pouco tempo.
O que é interessante no conceito de ser empreiteiro de cidades virtuais é a ideia de que construindo um monumento atraente vão atrair uma montanha de turistas cheios de vontade de gastar dinheiro. O que soa muito bem na terra da fantasia, mas talvez devesse ser tomado com alguma reserva no mundo lá fora. A culpa é do Gehry, sem dúvida, mas o efeito Bilbao entranhou-se de tal forma nas mentes dos políticos da vida real que a arquitectura se tornou na definitiva vaca púrpura. Assim, para o meu próximo projecto, vou pintar a coisa de lilás. E meter uma lâmpada de lava gigante por cima. Deve resultar!

O que me aborrece no modo como a arquitectura é discutida actualmente é que, na maior parte dos casos, não é discutida de todo. Ainda recentemente tentei abrir uma discussão sobre o maior investimento arquitectónico da década a realizar na cidade de Lisboa. Aqui está um museu para uma instituição que recebe anualmente 200 mil visitantes. Espera-se que a nova construção aumente esse número para um milhão. E como é que eles chegaram a este valor? Bom, por certo houve uma análise da procura e das necessidades do novo edifício; extensos estudos foram feitos. Caso contrário, estaríamos entregues ao domínio da ‘fé’, não é assim?
Ora, ao que parece, o novo projecto é bastante controverso. No canto esquerdo do ringue temos os descrentes a peticionar contra o «monstro de betão». No canto direito temos agora um grupo de personalidades famosas, entre as quais alguns dos mais reputados arquitectos Portugueses, a peticionar a favor do edifício que se diz ser uma «lição da evidência do homem no universo». Nossa Senhora!
E aqui estou eu, esmagado no meio. E estou a pensar para mim próprio que se calhar sou mesmo estúpido, porque não estou a perceber. Seria possível alguma destas pessoas partilhar as suas firmes certezas e iluminar o meu pequeno intelecto. E explicar-me, em termos arquitectónicos, como é que o edifício é um ogre ou uma ocorrência metafísica?

E é assim. A democracia a funcionar. O debate está lançado, só que não há debate nenhum porque não há argumentos de facto. A arquitectura, assim parece, é só subjectividade e abstracção. É tudo ilusionismo. E, assim sendo, talvez o que sirva para os jogos de vídeo seja verdade afinal. «Se construíres, eles vêm». Que diabo, funcionou para o Kevin Costner.

If you build it, they will come. Actually, no they won’t.

There I was perusing through Gamespot’s Work In Progress Blog, having my regular geek moment, when I found this interesting post about the upcoming game Cities XL. It’s the usual sim-city-building extravaganza in a virtual world where you – yes, you – can become a successful architect and create fantastic megastructures withouth the annoyances of a real economy to bother you. Just the kind of escapism we need right now, as it seems likely that we’re all going to be out of our jobs in the near future.
What’s interesting about the concept of being a triumphant virtual city builder is the notion that building an attractive monument will bring in a bucketload of happy money-spending tourists. This sounds pretty great in a virtual la-la-land, but probably should be taken less lightly in the outside world. It’s all Gehry’s fault I guess, but the Bilbao effect has become so embedded into the minds of real life polititians that architecture seems to be the ultimate purple cow. So, for my next project, I’m paiting the whole thing purple. And put a giant lava-lamp on top. That will do it!


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What bothers me about the way architecture is discussed nowadays is that, for the most part, it isn’t. Just recently I’ve tried to open a discussion about the greatest architectural investment of the decade to be built in the city of Lisbon. Here is a museum for an institution that currently receives 200 thousand visitors every year. The new construction is expected to boost that number to a million. And how did they come up with that figure? Well, surely there was an assessment of the needs and demands for such a building, extensive studies were made. Otherwise, it would all reside on good old fashioned ‘faith’, wouldn’t it?
So, as it turns out, the project is rather controversial. On the left corner you have the naysayers, petitioning against the «concrete monster». On the right corner is now a group of prominent personalities, including some of the most notorious Portuguese architects, petitioning for the building that is said to be a «lesson of the evidence of man in the universe». Holly Moses!
And here I am, crushed in the middle. I’m thinking to myself that maybe I am really stupid, because I just don’t get it. So would it be possible that these people could bring their staunch certainties and shed a light over my undersized intelect. And explain, in architectural terms, how the building is either a monster or a metaphysical phenomenon?

This is it. Democracy at work. The debate is on, only there is no debate at all because there are no arguments of fact. Architecture, as it turns out, is all subjectivity and abstraction. It’s a freakin illusion. So maybe what’s good for videogames is true after all. «If you build it, they will come». Well, it worked for Kevin Costner.

Bodø International Design Competition


Bodø Kulturhus and Library proposal by Langdon Reis Zahn.

Foram anunciados recentemente os resultados da última fase do concurso internacional para o centro cultural de Bodø, na Noruega. A competição foi ganha pelo estúdio londrino drdh architects com uma proposta bastante interessante que explora um equilíbrio cuidado entre a escala e a transparência dos novos edifícios. O projecto pode ser visto no Bustler.net - ver link.
O Bustler também dedicou um artigo ao projecto da equipa Langdon Reis Zahn, de que faz parte a portuguesa Ana Reis e cuja proposta inicial foi publicada aqui no blogue há alguns meses - ver link. O trabalho da LRZ recebeu bastantes elogios pela relação estimulante entre massas construídas e os espaços públicos – uma galeria de imagens pode ser vista no sítio web da equipa, aqui.

The final results for the Bodø Kulturhus and Library International Design Competition have been announced recently. London based drdh architects won the first prize with an interesting proposal that explores a careful balance between scale and transparency of the new buildings. Their project can be seen on Bustler.net - direct link.
Bustler has also published an extensive article on the submission presented by studio Langdon Reis Zahn - direct link. LRZ’s design featured an engaging connection between built masses and public spaces – a full set of images can be seen on the studio’s main website, right here.

Novo Museu Nacional dos Coches

Ao propor-me reflectir sobre este projecto importa alertar os leitores que a procura de isenção de um olhar é limitada pelas contingências da subjectividade e da experiência pessoal. O esforço que aqui se inicia consiste na materialização de um pensamento argumentativo, aberto, e não um discurso com base no apelo emocional, carregado de juízo e adjectivação. Fica por isso o convite à reflexão de cada um, recomendando abaixo algumas das muitas ligações acessíveis na web sobre o tema para um posterior aprofundamento.





1. Contexto

O início dos trabalhos preparatórios de construção do Novo Museu dos Coches ocorre em simultâneo com o aparecimento de uma petição na internet apelando à sua não edificação. O projecto de Paulo Mendes da Rocha, em colaboração com Ricardo Bak Gordon, tem sido acompanhado por alguma conflituosidade e polémica desde que foi apresentado ao público em meados do ano passado.

Para além dos aspectos particulares que decorrem da sensibilidade da operação levantados pelos técnicos do Serviço de Arqueologia do IGESPAR, é o próprio processo que tem motivado diversas críticas. Não será alheia a esta situação a importância simbólica do sítio que, apesar de actualmente vedado ao espaço público pelo recinto murado das Oficinas Gerais do Exército, constitui a pedra de fecho de uma das mais importantes frentes urbanas da cidade de Lisboa.

O projecto foi alvo de uma revisão motivada pelo parecer negativo da autarquia lisboeta, pela objecção quanto à edificação de um silo automóvel a implantar na área próxima da estação fluvial de Belém. Em entrevista ao semanário Expresso o arquitecto Mendes da Rocha reconheceu o seu desagrado pela alteração ao conceito original, salientando a manutenção do longo passadiço pedonal que liga o novo museu à frente ribeirinha.

A construção do novo museu celebra o centenário do Dia da Implantação da República. A obra tem custo previsto de 31.5 milhões de euros, verbas provenientes de contrapartidas do Casino de Lisboa destinadas à área do Turismo. A proximidade da data de inauguração – Outubro de 2010 – terá sido o factor que motivou uma maior celeridade do processo, sobressaindo uma reduzida permeabilidade quanto a um desejável debate público de especial importância num contexto tão sensível.






2. Projecto

Na sustentação do conceito original do novo museu o arquitecto Paulo Mendes da Rocha sublinhou duas questões: «do lado da museologia, um critério básico para a exposição do notável património»; do lado do urbanismo, a implantação no recinto monumental, amparada no projecto governamental ‘Belém Redescoberta’».

O conteúdo programático do projecto ‘Belém Redescoberta’, lançado pelo governo Português em 2006, apresentou como objectivo o reforço da atracção turística da zona que se estende do Centro Cultural de Belém até ao Museu da Electricidade. A documentação oficial destaca a dimensão económica da iniciativa, assente na criação de um pólo de atracção artístico e cultural «com forte impacto na procura turística internacional e interna». Trata-se da «maior intervenção urbana em Lisboa com objectivos turísticos-culturais desde a Expo’98» e pretende «aproveitar o melhor e mais único da nossa História para projectar uma imagem de modernidade para o futuro».

No que refere à programação específica do novo Museu Nacional dos Coches registam-se já algumas alterações às directivas então anunciadas. A intenção de devolver a actual sede do museu à função de Picadeiro Real estará a ser reavaliada devido a um parecer do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) - com data de 1996 - que apontou incompatibilidades entre este uso e os requisitos de preservação do edifício. Complementarmente, a ideia de reunir nas novas instalações todo o espólio expositivo do museu – parte do qual se encontra sedeado em Vila Viçosa – terá sido geradora de controvérsia local e parece agora abandonada.

Estes aspectos não parecem pôr em causa a necessidade de ampliação das instalações do museu e a oportunidade gerada pela criação de um novo edifício, com a abertura de uma extensa área urbana à apropriação pública. Esse aspecto é, aliás, tão ou mais importante quanto a relocalização do próprio equipamento. Somam-se assim numa só operação duas preocupações fundamentais: por um lado a revisão da identidade arquitectónica do museu – o mais visitado do país – e por outro a identidade urbana daquela que é uma das principais ‘salas de visita’ de Lisboa.



Perante uma operação de tão elevada responsabilidade importa reflectir sobre o modo como os valores de contemporaneidade – ou ‘modernidade’ – referenciados no conteúdo da ‘Belém Redescoberta’ e enunciados pelo arquitecto Mendes da Rocha se materializam no local. A discussão urbana contemporânea centra-se sobre aspectos muito importantes do equilíbrio entre o tecido construído e os espaços vazios, a recuperação de identidades, a intensificação do uso do solo e a promoção da mistura de usos e, finalmente, a introdução de hábitos sustentáveis na vida da cidade.
A expressão dessa vida deve materializar-se em funções que dão lugar à possibilidade de múltiplas formas de apropriação. A contemporaneidade tem vindo a afirmar-se exactamente como a negação da mono-funcionalidade. A cidade deve oferecer a possibilidade de apropriação, da experimentação, da evasão. Deve permitir o encontro e a diferença. Deve responder ao balanço entre a necessidade de segurança e a liberdade para o isolamento do fluxo de actividades.

Observando os elementos disponíveis da proposta – com as limitações que esse exercício permite – é ainda assim possível elaborar uma apreciação sobre dados objectivos da transposição dessas oportunidades teóricas em estratégias práticas de desenho.
O projecto amplia o espaço aberto pelos equipamentos, oferecendo uma área extensa do quarteirão ao domínio público. Introduz, também, uma rede de espaços conectados, tanto pela permeabilidade do nível térreo como pela interligação pedonal aérea com a frente ribeirinha.

Ficam no entanto em aberto outros aspectos que levantam interrogação, por exemplo, quanto à definição desse grande espaço pedonal, da sua diferenciação, do modo como fará conciliar os diferentes ritmos dos utilizadores. Estarão presentes actividades recreativas ou que permitem a experimentação? Serão introduzidas tecnologias de informação? Como se irá materializar a identidade do local, tanto na sua dimensão paisagística como na interacção com elementos gráficos? Como irá afinal o público relacionar-se e colonizar o lugar, dando-lhe sentido e urbanidade?

O projecto de Mendes da Rocha é, nesse sentido, uma obra que não se ‘hibridiza’ com a própria acção de planeamento urbano. Os grandes volumes assumem-se sobre aquele novo território, revelando-se o oposto de uma eventual celebração material da complexidade, diversidade e variedade programática.
A presença do novo edifício «levantado do chão» faz repercutir um assumido peso estrutural e formal. Será, aliás, essa expressão infraestrutural que motiva as reacções mais adversas – sobre o qual importa reflectir, quanto ao modo como ali serão acarinhadas as possibilidades de vida pública que se deseja, em princípio, promover.
É, afinal, uma arquitectura de grande gesto que tem na elevação do rectângulo suspenso – o «estojo» branco, como refere o arquitecto – a sua marca principal. A esta volumetrização corresponde o aparecimento de extensos paramentos que contrastam com a ‘pequena urbanidade’ da envolvente construída do próprio quarteirão.
Temos assim um edifício que não envolve o espaço, antes cria interstício. Intencionalmente ou não, estamos perante uma oposição total daquilo que podemos observar no Centro Cultural de Belém, de Vittorio Gregotti, onde se interioriza o espaço público e se lhe confere escala.

3. Debate

É legítimo questionar o modo como estas preocupações foram – se foram - consideradas no programa base da intervenção e na sua materialização arquitectónica. Neste projecto podemos reconhecer claramente aquilo que Paulo Mendes da Rocha traz a Lisboa – em continuidade com os seus trabalhos mais recentes desenvolvidos para contextos muito diversos. Não será tão fácil identificar o que, nesta obra, trouxe Lisboa ao arquitecto Brasileiro.
O contraponto com o Centro Cultural de Belém ganha por isso relevância. Pois que ali se revela um sentido de observação e reciprocidade entre a cidade e o desenho arquitectónico, e não uma ideia pré-concebida de estilo.
Tratando-se de obras de regime, no que isso tem de mais representativo, importa questionar o modo como a arquitectura exprime os seus valores – e quais. O Novo Museu dos Coches é apresentado como um gesto de ‘modernidade’ e de «contraste entre coisas novas e coisas antigas» - como referiu Álvaro Siza. Questionemos então o que isto significa. Falamos de modernidade enquanto ‘estilo’ – um depositário de uma lógica meramente formal cuja legitimidade resulta de ser reconhecível e institucionalmente certificada?
Ou pensamos antes a ‘modernidade’ enquanto afirmação de valores contemporâneos de inovação e criatividade, de urbanidade e vida pública? Falamos, afinal, de formas ou de conteúdos?
São questões que não podem ficar no domínio do preâmbulo justificativo, devendo traduzir-se na formulação concreta do edifício e do espaço que o envolve. É irrelevante se sobre elas se projecta um discurso adjectivante pleno de generalidades, a favor ou contra, da poética laudatória aos amadorismos do ‘gosto’. Importa por isso discutir arquitectura e urbanismo. É isso que aqui se propõe numa base argumentativa e, desejavelmente, crítica. Para o debate público possível.

Referências:

Museu Nacional dos Coches
OASRS: Novo Museu dos Coches, 2008-10-19
OASRS: «O turismo é o desejo de ver o encanto da vida do outro», 2008-10-30
Expresso: «O novo museu será um amplo logradouro público», 2009-03-07
TSF: «A nova casa do Museu dos Coches», 2008-07-09
Petição online: «Salvem os Museus Nacionais dos Coches e de Arqueologia e o Monumento da Cordoaria Nacional!», 2009-02-02



New National Coach Museum

The project for the New National Coach Museum, designed by Brazilian architect Paulo Mendes da Rocha in collaboration with Ricardo Bak Gordon, has been surrounded by controversy since it was first presented to the public last year. Besides specific reservations that were raised regarding the sensitivity of the operation, it’s the very procedure that seems to motivate the most passionate reactions. The site is, after all, one of the most important urban fronts of the city of Lisbon.
The construction of the new museum will celebrate the 100th birthday of the proclamation of the Portuguese First Republic in 1910. The closeness of the inauguration date is most probably the reason why the process has been running so hasty, resulting in a small public participation – of particular importance in such sensitive context.


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The initial proposal received a negative review of the city’s administration, that objected to the construction of a multi-storey car park in the riverfront area. The architect Mendes da Rocha acknowledged his discontentment for the modification to his original concept, sustaining the maintenance of the long aerial walkway that connects the main buildings with the northern margin of the Tagus river.

Sustaining the concept of the new museum, Mendes da Rocha underlined two questions: «a basic criteria for the exhibition of the remarkable patrimony» and the insertion in the monumental urban context. The project therefore faces a double challenge: to review the architectural identity of the museum – the most visited in Portugal – and the urban identity of one of the most significant tourist attractions of the city.

Facing such a great responsibility, it is imperative that we reflect on how contemporary values of ‘modernity’, as stated by the architect, are materialized by the proposal. Contemporary urban design faces many important issues such as the balance between built fabric and empty spaces, the restoring of identities, the intensification of land use, the promotion of mixed uses and, finally, the introduction of sustainable habits in city life. The expression of these functions should materialize in design solutions that open the possibility to multiple forms of engagement. Contemporaneity has been establishing exactly the rejection of mono-functionality. The city should offer the possibility of appropriation, experimentation, evasion. It should allow people to meet one another and provide the freedom to be isolated from the flow of activities.

As we consider the available images of the project it is possible to elaborate an appreciation of how – or if – those theoretical possibilities where translated into practical strategies of design.
The new buildings widen the open space of the equipments, offering an extensive area to the public domain. They also introduce a basic connection of those spaces, both by making the ground level accessible and by setting up a walking passageway to the riverfront.

Other issues remain, however, open for questioning, for example regarding the definition of that wide walking space, concerning its differentiation and the necessary balance between the different rhythms of users. Are recreational activities, or information technologies, going to be implemented? Is it going to allow interaction and experimentation? How is the local identity going to materialize, both in the landscape and in graphic elements? How is the public going to relate with the space, colonize it, and give it a sense and urbanity?

The project of Mendes da Rocha is, in that sense, a work that doesn’t ‘hybridize’ with the action of urban planning. The big volumes stand over the new territory, its architecture revealing itself as the opposite to a possible material celebration of complexity and programmatic diversity.

The presence of the new elevated building results in a staggering structural and formal weight. It is, in fact, that infrastructural expression that motivates the harshest reactions – and this is something that should be thought upon, as to the way in which the possibilities of a desired public life are to be cherished in that setting.

It is, then, an architecture of grand gesture. The wide volumes produce extensive walls that collide with the ‘small urbanity’ of the surrounding buildings. Here is a building that doesn’t envelope space. Intentionally, or not, it is the opposite of that which one can find in the Belém Cultural Center, by Vittorio Gregotti, where public space is interiorized and scaled.

It’s legitimate to question how these worries were – if at all – considered in the intervention programme and its resulting architectural design. In this project one can clearly recognize that which Paulo Mendes da Rocha brings to Lisbon – in continuity to some of his recent works in very diverse contexts. It is not so easy to identify that which, in this particular work, Lisbon has brought to the Brazilian architect.
The confrontation with the Belém Cultural Center is therefore relevant. For in this building a sense of observation and reciprocity between the city and the architectural design is revealed, and not a preconceived idea of style.
As a public project, on its most representative dimension, one must question the way in which architecture expresses its values – and which. The New National Coach Museum is presented as a gesture of ‘modernity’ and «contrast between the new and the old» - as stated by Álvaro Siza. Lets question what that means, then. Do we talk of modernity as a ‘style’ – a recipient to a merely formal logic, whose legitimacy is achieved from being recognisable and institutionally certified?
Or do we think of ‘modernity’ as an affirmation of contemporary values of innovation and creativity, of urbanity and public life? Do we talk, then, of forms or their content? These are questions that cannot simply remain in the realm of dissertation, as they should translate in the concrete materialization of the building and its surrounding spaces.

Ar puro



«I believe that this invention of ‘modernism’, as applied to architecture, is a critical distortion related to a certain time in the history of architecture. Does one still ask oneself in painting, literature or the cinema if a work of art is modern? (…) In architecture, however, this absurd question is still of importance. Does a patient ask himself if his doctor is modern or not? It is more important to establish that a contemporary doctor practices modern medicine and can naturally prefer certain methods of healing to others. When I answered that I cannot be postmodern because I was never modern, I simply wished to state that I was simply an architect and practiced this profession, just as architects have always done.
(…) In actual fact, the disease of modernism (or at least one of its diseases, resulting in the ruin of large areas of our cities) is its moralizing, that is to say the intrusion of the question of morality into the architectural debate. Regrettably, we still suffer from this disease today. When I say that I am not modern I am declaring my refection of moralizing in architecture, a moralizing that rages like this in no other artistic discipline. (…) Yet a supposedly democratic Europe regards an architectural style as democratic (and it is moreover hideous), simply because it made use of glass and built roofs that have regular, flat roofs sloping towards all sides!»
Aldo Rossi, A Conversation with Bernard Huet, «Aldo Rossi Architect», Academy Editions, 1994.

Bling my bling


The awe-inspiring design of the pyramids had an amazing effect on the spirit of the slaves. Those whips helped as well.

Estão a escrever-se coisas muito interessantes nos blogs de arquitectura sobre os efeitos da depressão económica. Kazys Varnelis reflecte sobre a arquitectura do “bling” e aponta para 15 arranha-céus com planos de construção presentemente cancelados devido à crise. [Pode alguém inventar uma nova palavra para isto, estou a ficar cansado de escrever “crise” neste blog.] Afirma, correctamente, que a estética destes edifícios é pouco mais que uma celebração do excesso, acolhendo “nenhuma cultura, nenhuma história, nenhuma moralidade, nenhum gosto, apenas o desejo de exibir riqueza”.

Curiosamente, hoje mesmo o Guardian publicou uma entrevista com Zaha Hadid. Focando num dos seus mais recentes projectos, o centro aquático para os Jogos Olímpicos de Londres de 2012, Hannah Pool questiona Hadid se ela não desejaria ter desenhado um edifício mais modesto, devido ao actual estado da economia. “Não” - responde a arquitecta – “Nestes momentos de recessão, elevar o espírito é ainda mais importante e deviamos aprender pelas coisas que fizemos no passado e que foram feitas à pressa”.
É um pouco lamentável ver alguém que iniciou a sua carreira com uma das abordagens mais desafiadoras à convenção e à norma, agora abraçar esta arquitectura de despudorada representação de poder. E praticá-la sem uma réstia de reflexão sobre a sua legitimidade económica, para não falar em moralidade.
A sofisticação do design arquitectónico de Hadid parece agora tornar-se no epítome do pós-modernismo-tardio e do kitsch, uma arquitectura despojada de um sentido de pertença ou função social para lá dessa motivação inicial: elevar o espírito, reverenciar através da monumentalidade e do maravilhamento. Nestes tempos difíceis, talvez nos sintamos mais elevados por uma aplicação racional e equilibrada do dinheiro público. O exibicionismo leviano de Zaha para com a seriedade da questão dificilmente poderá ser lido como um sinal de irreverência, mas de pura negligência social.

There's a lot of interesting writing about the depression on architectural blogs these days. Kazys Varnelis writes about the architecture of bling and points out to 15 skyscrapers currently on hold due to the economic crisis. [Can anyone invent a new word for it, I’m tired of writing “crisis” on this blog.] He rightly states that the aesthetics of these buildings is little more than a shallow celebration of excess, retrieving "no culture, no history, no morality, no taste, merely the desire to display wealth".

Interestingly, just today the Guardian published an interview with Zaha Hadid. Focusing on one of her latest projects, the Olympic Aquatic Center for the 2012 Summer Olympic Games in London, Hannah Pool questions Hadid if she wishes she had designed a more modest building in regard for the current state of the economy. "No" - she says - "In these moments of recession, uplifting the spirit is even more important and we should learn from things that were done in the past that were done in a hurry".
It's quite unfortunate to witness someone who started her career with one of the most challenging approaches to convention and norm, now embracing this impudent architecture of representational power. And practice it without a hint of reflection on plain economic legitimacy, not to mention morality.
The sophistication of Hadid's architectural design now seems to be the epitome of late-post-modern and kitsh, an architecture devoid of any sense of belonging or social function other than that startling motif: to uplift the spirit, to revere through monumentality and awe. In these harsh times, one whould rather feel uplifted by a rational and balanced application of public money. Zaha’s lighthearted display of disregard to the seriousness of the matter is hardly a sign of irreverence, but plain social negligence.

Design and the Depression on Blueprint

“As recessões”, escreve Kevin McCullagh”, “são marcadas por falências, desemprego em massa, hipotecas e uma pobreza generalizada, não por uma renovação moral”. Dois artigos imprescindíveis na Blueprint Magazine: Design and the Depression, The Debate; Parte Um e Parte Dois.

“Recessions”, writes Kevin McCullagh, “are marked by bankruptcies, mass unemployment, house repossessions and general misery, not by moral renewal”. Two outstanding articles on Blueprint Magazine: Design and the Depression, The Debate; Part One and Two.

NAUL / Arquitectura e Publicação



O Núcleo de Arquitectura da Universidade Lusíada está a promover o Ciclo de Conferências “Arquitectura e Publicação”, que irá decorrer até dia 13 deste mês. Fica o programa dos próximos eventos:

CONFERÊNCIAS:
10 de Março – 18 h. / New Media / Daniel Carrapa, Felix Arranz (Scalae.net);
11 de Março – 18 h. / Design Gráfico / Ruben Dias, Item Zero, FlatLand Design;
12 de Março – 17 h. / Apresentação do Livro “Novela Bufa o Ufanismo em Concreto / André Tavares;
12 de Março – 18 h. / Publicação Impressa / Luís Santiago Baptista (Revista arq./a), Mario Ballesteros (Actar, Where).

EXPOSIÇÃO: Até 13 de Março / Prémios nacionais e internacionais de ex-alunos.
13 de Março – 18 h. / Apresentação dos Premiados / Os vencedores dos prémios expostos apresentarão os seus projectos e experiências de participação.

FEIRA DO LIVRO: Até 13 de Março.

Auto-regulação na blogosfera

Será que a blogosfera tem meios e condições para anular as suas próprias monstruosidades?

É esta a pergunta que João Lopes deixa no ar no final do seu artigo - A infância dos blogs. Valerá a pena tentar construir uma resposta.

Sugerir que este tipo de comportamento – o infantilismo, desresponsabilização, a difamação e o insulto - possa vir a ser anulado pela ascensão de uma ética blog é uma ingenuidade evidente. Mas a resposta à pergunta é: sim. A blogosfera, na sua dinâmica de rede, é capaz de anular essas monstruosidades. Mais, as ferramentas que suportam a sua infraestrutura permitem que cada um crie para si a blogosfera que deseja. Deixem-me explicar...

Digamos que o leitor se interessa por blogs. Começará por ler aqueles que melhor conhece para ir adicionando, a pouco e pouco, novos blogs ao seu conjunto de favoritos. Ora quando o número de páginas atinge as várias dezenas, visitar individualmente cada uma delas torna-se incomportável - quanto tempo perdido a abrir blogs para descobrir que muitos deles não foram sequer actualizados.

Perante isto, o leitor interessado adere rapidamente a um subscritor de "feeds". Uma página pessoal em que o utilizador subscreve somente os blogs que deseja seguir, recebendo de forma leve e concentrada todas as actualizações - apenas os novos “posts” - das suas páginas favoritas. Com esta nova ferramenta o leitor consegue agora acompanhar não dezenas mas antes algumas centenas de blogs.
Ainda assim, mesmo fazendo uso de um leitor de "feeds", há um limite para a quantidade de informação que cada um consegue acompanhar. E é aqui que acontece uma coisa interessante. O leitor deixa de adicionar blogs - ou passa a fazê-lo muito raramente - para começar agora a subtrair.

A selectividade na blogosfera é uma moeda de troca importante da sua auto-regulação. Ao seguirmos um blog estamos a assinalar que ele é relevante e a valorizá-lo dentro do meio. A constelação de blogs que estamos a seguir é a nossa ligação filtrada e inteligente para a blogosfera. Uma meritocracia subjectiva, imperfeita, mas que funciona. O acto de seguir um blogue significa que damos crédito ao seu autor, que confiamos nele como nosso arauto de pesquisa. É um gesto de reconhecimento implícito.
Mais importante: os autores dos blogs que seguimos têm as suas próprias constelações de ligações, unindo-nos a uma sequência exponencial que nos pode conduzir ao infinito da rede. Através deles podemos aceder ao que é relevante, ao que é mais referido, citado, hiperligado. Essa rede, pelas suas muitas intersecções, pode fazer chegar informação longínqua dos confins da web até ao nosso pequeno monitor.
É uma forma de selecção natural de conteúdos herdeira de uma das primeiras funções do blog - o filtro. Como na verdadeira selecção natural muito é desperdiçado. Muito é perdido nas sinapses da rede. Mas também através dela passamos a aceder a conhecimento que de outra forma nunca iríamos descobrir.

É esse o poder da blogosfera. Os blogs podem não ser já a plataforma da moda, subjugados que estão pela ascenção volátil das ferramentas de web social e micro-blogging - mas não deixam de ser, ainda hoje, a infraestrutura mais eficaz desta rede de conhecimento. A materialização de um milagre de informação global construído de forma colectiva e contributiva. Nada se lhe compara.
Neste novo território, o poder de um blog não resulta da sua visibilidade imediata, das visitas diárias que recebe, mas do modo como estabelece ligações e conexões para projectar os seus próprios conteúdos “lá dentro”.

É natural que a blogosfera de opinião próxima da imprensa escrita alcance uma visibilidade mais imediata. Mas não é verdade que essa blogosfera disponha de uma grande permeabilidade na rede, para lá do universo estrito em que circula. Esta opacidade não é alheia aos mecanismos de distribuição de informação, que conduzem felizmente à anulação do que é efémero e pouco consequente. E por isso os blogs são frustrantes para quem pensa ter aqui um púlpito para ajustar contas com o mundo, manifestando-se com infantilidade e estridência.
De resto, como em todas as outras plataformas de comunicação, a monstruosidade estará sempre presente. Assim é também na televisão e nos jornais. Cabe a cada um optar pelo que pretende de cada veículo à sua disposição, nos canais que vê, nos jornais que compra. E na blogosfera em que quer participar, como espectador ou construtor de conteúdos.

Blogosfera de terceira geração

O recente artigo de José Pacheco Pereira - A bloguização da comunicação social - mete o dedo na ferida de uma degradação continuada do exercício de opinião, tanto nos blogues como na imprensa escrita. Curiosamente, quase ao mesmo tempo, João Lopes publicava um outro artigo de contornos próximos - A infância dos blogs.
Pacheco Pereira e João Lopes têm sido dos poucos autores capazes de produzir sociologia crítica sobre a blogosfera, questionando as especificidades da sua prática em Portugal. Este último afirma que a blogosfera adquiriu uma extensão imensa sem ter passado por um verdadeiro processo de maturação. Talvez isto não seja completamente certo se observado numa perspectiva internacional, mas parece próximo da verdade quando analisado no plano da nossa conjuntura. Entre nós nunca se afirmou uma cultura ou uma ética blog, discussão travada aberta e entusiasticamente na blogosfera ainda no início da década. Em Portugal, a explosão do fenómeno blog ocorre com o aparecimento das grandes plataformas – blogger, wordpress, sapo – ou seja, à blogosfera de segunda geração. E vemos hoje um fenómeno ainda mais surpreendente a que eu chamo de blogosfera de terceira geração: uma apropriação livre e espontânea da ferramenta blog, totalmente desinteressada da sua história e função original, suporte a conteúdos de download ilegal, pornografia barata, notícias de especialidade copiadas sem referenciação ou edição sobre consolas, wrestling, cinema, etc…
A horizontalidade da blogosfera é um prolongamento dessa cultura de relativização absoluta. Num espaço onde tudo vale o mesmo já nada tem valor. O paralelismo dos “temas fracturantes”, espécie de regurgitação compulsiva de questões que estão carregadas de complexidade real, denuncia esse absoluto simplismo de quem não é mais capaz de discutir o que quer que seja, da ausência de uma sombra que seja de reciprocidade.
Nesta opacidade ofusca-se em razão o que se troca por uma mera lógica de rejeição ou colagem, uma dinâmica opinativa que nada já tem de expressão intelectual mas antes de uma mera dissimulação identitária, de “acknowledgement” de grupo. A grupusculização de que fala Pacheco Pereira.
A decadência do exercício da opinião é mais um reflexo dessa devastadora terraplanagem intelectual em que vivemos e em que os blogs participam alegremente. A aparente agitação de conflitos de opinião não é apenas, como diz João Lopes, resultado de uma dimensão totalitária da agressividade sem pensamentos. É também o epitáfio de um domínio de simulação absoluta em que já nada, realmente, tem consequências. Um lugar em que nada acontece. A vitória da idiocracia.
Há quem chame a isto liberdade.