A tragédia do Rio Doce (1/2)



No passado dia 5 de Novembro duas barragens de contenção de resíduos de uma exploração mineira situada na região de Mariana, município do estado brasileiro de Minas Gerais, colapsaram, libertando 50 milhões de metros cúbicos de lamas contaminadas que se espalharam ao longo de mais de 500 quilómetros da bacia hidrográfica do Rio Doce – o quinto maior do Brasil.
O verdadeiro tsunami criado pela enxurrada descontrolada de resíduos provocou estragos incalculáveis e ceifou um número ainda incerto de vidas humanas.


Vídeo: Expedição documenta desastre ambiental em Mariana (MG). Via Greenpeace Brasil.

Para os habitantes de muitas povoações ribeirinhas situadas na extensão da bacia do Rio Doce, a única solução é o abandono. Em Bento Rodrigues, a vila mais próxima das estruturas colapsadas, as lamas movediças consumiram casas e colheram vidas humanas, deixando atrás de si um rasto de devastação sem fim à vista.
Segundo vários geólogos e engenheiros do ambiente, os danos causados por um evento desta magnitude poderão levar muitas décadas ou talvez mesmo séculos a serem revertidos. A perda de biodiversidade e a extinção de algumas espécies endémicas é já uma certeza. Trata-se do maior desastre ambiental da história do Brasil.



Fontes oficiais referem que as lamas resultantes da produção de minério de ferro não apresentam nenhum elemento químico perigoso para a saúde, sendo compostas principalmente por óxido de ferro e areia. No entanto, a Greenpeace Brasil e outros especialistas independentes vêm denunciando que se tratam de resíduos contaminados por metais pesados como o arsénio, mercúrio e chumbo, altamente nocivos para o meio natural e para o homem.
Certo é que a contaminação do sistema hidrográfico da região deu já origem a uma situação de emergência sem precedentes, estimando-se que mais de meio milhão de pessoas estará sem acesso a água potável. É a morte de um rio e, com ele, de todo um modo de vida.


Vídeo: Rompimento da barragem de rejeitos da Samarco em Mariana-MG.

Perante um crime ambiental desta magnitude importa interrogar como foi possível conviver com tamanha bomba relógio de poluição, com a complacência dos responsáveis políticos e das autoridades do país. Mas notícias mais recentes dão conta da existência de outras estruturas de contenção de resíduos semelhantes, igualmente em risco de derrocada, podendo antecipar um desastre de dimensões ainda maiores do que aquele verificado até agora. Será possível?
Ficam, abaixo, várias ligações a artigos que dão conta do enquadramento desta terrível catástrofe ambiental, incluindo diversos vídeos com o testemunho directo do sucedido.



Referências:
1. The Guardian: Brazil's slow-motion environmental catastrophe unfolds;
2. Reuters: Brazil mining flood could devastate environment for years;
3. Jornalistas Livres: Tsunami de Lama, Drama Invisível;
4. Jornalistas Livres: Entre o luto e a saudade: um panorama do maior desastre ambiental do Brasil;
5. Jornalistas Livres: As Minas destruíram Gerais;
6. Jornalistas Livres: Minas de tristeza;
7. Deutsche Welle: Full impacts from Brazil's largest environmental disaster still not known;
8. The Ecologist: Tailings dam breach - The assassination of Brazil's fifth largest river basin;
9. Wikipedia: Rompimento de barragens em Bento Rodrigues.
10. YouTube (vídeo): Desastre ambiental em Mariana (MG) - pt II (Greenpeace Brasil);
11. YouTube (vídeo): Desastre Ambiental: Barragem Soltando Milhões de Litros com Lama;
12. YouTube (vídeo): Enxurrada de Lama Destrói Mariana a Barragem Rompeu!;
13. YouTube (vídeo): Rompimento da barragem de Mariana-MG Rio Doce;
14. YouTube (vídeo): Testemunho de Everton Rocha (Engenheiro Ambiental).

E por falar em cagarras…



Vale a pena descobrir o novíssimo sítio web do Atlas das Aves Marinhas de Portugal criado para a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves pelos nossos amigos da we are boq.
Este belo atlas online dá a conhecer as espécies de aves marinhas e costeiras que habitam as águas portuguesas, compilando informação muito completa quanto à sua distribuição e movimentos migratórios, bem como das características dos seus habitats e das principais ameaças que se colocam à sua presença.

O Atlas das Aves Marinhas de Portugal é o resultado de um extenso trabalho de investigação e apuramento de dados recolhidos ao longo de oito anos de embarques para realização de censos marinhos (a bordo) em toda a ZEE nacional, cinco anos de censos costeiros em pontos estratégicos da costa continental (pontos RAM), e um censo nacional de aves costeiras invernantes na costa não estuarina portuguesa (Projeto Arenaria). Este projecto, que envolveu mais de 150 observadores, aborda a situação de 65 espécies de aves em meio marinho de forma pormenorizada e para a totalidade do território nacional.



Para as 50 espécies consideradas como principais, o presente atlas reúne informação detalhada sobre a sua distribuição, movimentos e fenologia; abundância e evolução populacional; ecologia e habitat e ameaças e conservação. Para estas espécies são apresentados mais de 500 mapas de modelação ou distribuição de espécies por época do ano e região geográfica.
A presente obra compila ainda informação sobre aspetos históricos da ornitologia marinha em Portugal e conservação deste grupo de aves no nosso país, apresenta por linhas gerais a composição e dinâmica das comunidades de aves marinhas nidificantes e não nidificantes em território português, suas colónias de reprodução, e refere alguns aspetos sobre ecologia deste fascinante grupo de aves.


Um testemunho do trabalho de investigação levado a cabo pela ornitologia marinha portuguesa que é, de igual modo, uma forma de dar a conhecer esse universo fervilhante de vida que constitui o azul oceânico do mapa, ricamente povoado por incontáveis seres vivos em movimento ao longo das estações, e que incessantemente nos maravilham.

Tempos pouco científicos



Preocupa-me que, à medida que nos vamos aproximando do novo Milénio, a pseudo-ciência e a superstição possam parecer, com o passar dos anos, cada vez mais tentadoras, e o canto de sereia da falta de razão mais sonora e atrativa.

– Carl Sagan, «Um Mundo Infestado de Demónios: A Ciência Como Uma Luz Na Escuridão», Edições Gradiva, 1997 (1ª Edição).

Poucas são as vozes que vêm reflectindo sobre a passividade da classe política perante esse cilindro compressor de cultura em que se tornou o fenómeno televisivo – o crítico de cinema João Lopes é, entre nós, uma das raras excepções. É nesse panorama de silêncio e complacência generalizada, em que a televisão vai instituindo formas de entendimento do mundo fundadas na pré-formatação do pensamento e no preconceito estético, que também a Ciência se vai tornando numa das suas trágicas vítimas.

Parecem assim confirmar-se os receios que Carl Sagan exprimiu relativamente a este novo Milénio; um tempo vulnerável à ascenção da pseudo-ciência e da superstição, perdendo-se a compreensão da importância da Ciência como instrumento essencial para a sustentação de uma sociedade democrática.
Em boa verdade, a televisão tornou-se hoje o palco apoteótico da decadência do pensamento científico. Canais generalistas de televisão dedicam horas de emissão a programas de astrologia e “consultas” de tarot. Nos canais de “documentários” do cabo somos brindados com uma parafernália de programas de ocultismo e casas assombradas, videntes que falam com os mortos, visitas de extraterrestres e caçadas a figuras míticas como o abominável homem das neves. O prospecto é desanimador.



Uma das lições mais tristes da História é esta: se tivermos sido enganados durante o tempo suficiente, tendemos a rejeitar qualquer evidência do embuste. Deixamos de estar interessados em descobrir a verdade. O engano capturou-nos. É simplesmente demasiado doloroso reconhecer, até para nós próprios, que fomos ludibriados. A partir do momento em que entregamos o poder a um charlatão sobre nós mesmos, dificilmente o teremos de volta. Assim, o velho engano tende a persistir, enquanto outros despontam.

– Carl Sagan, «Um Mundo Infestado de Demónios: A Ciência Como Uma Luz Na Escuridão», Edições Gradiva, 1997 (1ª Edição).

Aspecto paradoxal nestes tempos pouco científicos em que vivemos: que à generalização da pseudo-ciência tenha correspondido também a instituição da mais indigente forma de tecnocracia. Exemplo disso é o modo como a informação económica se reveste tantas vezes de um risível exercício de “psicanálise dos mercados”, despojado de qualquer profundidade analítica. Na Economia, como em tantos outros campos de actividade intelectual, os especialistas deixaram de ser pensadores da complexidade do mundo para desempenharem apenas uma função na construção de visões sectárias da realidade. Afinal, no tempo sempre curto da televisão não há lugar à análise; tudo é síntese.

Momento superlativo dessa degradação do pensamento encontramos, como não podia deixar de ser, no próprio campo de debate político. Não está em causa o entendimento pueril de julgarmos que duas pessoas com a mesma informação chegam necessariamente às mesmas conclusões”. Na verdade, como nos disse Carl Sagan, a Ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor de que dispomos. A esse respeito, como em tantos outros, é um pouco como a Democracia. (…) A Ciência convida-nos a deixar os factos entrar, mesmo quando estes não se conformam com os nossos pressupostos.
Aconselha-nos a considerar hipóteses alternativas na nossa mente e verificar qual é aquela que melhor se enquadra com os factos. Confronta-nos com o balanço difícil entre estarmos incondicionalmente abertos a novas ideias, por mais heréticas que possam parecer, e o mais rigoroso escrutínio céptico de tudo – tanto das novas ideias como da sabedoria estabelecida. Este tipo de pensamento é também um instrumento essencial para uma Democracia num tempo de mudança
.

Citação no texto: «Why We Need To Understand Science», The Skeptical Inquirer Vol. 14, Issue 3, 1990.

O estranho caso de Shia Labeouf



O presente é um sintoma do nascimento gémeo do imediatismo e da obsolescência. Hoje, somos tão nostálgicos como somos futuristas. A nova tecnologia permite-nos experimentar e actuar simultaneamente sobre os eventos de uma multiplicidade de posições. Longe de assinalar o seu fim, a emergência das redes facilita a democratização da história, iluminando os caminhos bifurcados através dos quais grandiosas narrativas poderão sulcar o aqui e o agora.

Luke Turner, «Metamodernist Manifesto».

Um actor sentado na plateia de uma sala de cinema na baixa de Manhattan durante três dias, visualizando todos os filmes em que participou, em ordem cronológica inversa. Uma câmara apontada a si transmitindo em directo para a internet, em directo para o mundo. A indiferença, o cansaço, as gargalhadas, as lágrimas.
Espectadores vêm e vão aleatoriamente, entrando e saindo do cinema. Lá fora, o passa a palavra das redes sociais começa a motivar uma extensa fila de curiosos. As sessões são gratuitas, limitadas apenas à lotação da sala. Para os que entram não existe qualquer obrigação de sair. Podem ficar durante quinze minutos, ver um filme inteiro ou acompanhar a maratona cinematográfica até ao fim.

Ocasionalmente, o protagonista da experiência levanta-se e sai. Num momento, depois de longos esgares de explícito enfado perante um dos seus filmes, ergue-se para se ir deitar no corredor de acesso, ao fundo da sala. Alguns espectadores lançam sobre o seu corpo adormecido olhares de interrogação.
Noutros momentos a sua face preenche-se de emoção. Risos, lágrimas, olhares de profunda nostalgia, silêncios. Durante uma ausência, um casal de duas jovens senta-se, uma ao colo da outra, numa cadeira um pouco atrás. Olham para a câmara. Riem-se. Depois, uma delas, de cabelo verde, escreve ou desenha algo numa folha de papel e deposita-a na sua cadeira vazia, como mensagem, antes de sair.

Há algo de fascinante em #ALLMYMOVIES, uma nova experiência social de Shia Labeouf, fruto da sua colaboração artística com o grupo Labeouf, Rönkkö & Turner . Os mais cínicos dirão que se trata de mais um artifício sensacionalista em busca de exposição gratuita. Mas parece-me que encontramos ali um homem à procura de si próprio, depois de uma fase de declínio pessoal, sob a luz implacável dos holofotes mediáticos. Um homem que decide confrontar-se com o seu trabalho à vista de todos, sem filtro, sem máscara.
Possa este espírito desalinhado superar os fantasmas que o têm atribulado nestes anos, da dependência e da violência, para ocupar o lugar que o seu talento e o seu carisma tanto merecem.

Não pensar sai caro




Pouco mais de meio século separa estas duas vistas sobre a baixa de Albufeira – partilhadas através do Facebook. Nelas podemos observar o início da edificação da encosta, em meados da década de 1950, e a actual ocupação e impermeabilização do território antigamente afecto ao leito de cheia.

Um excelente artigo do engenheiro de ambiente Aurélio Nuno Cabrita, publicado no jornal regional Sul Informação, dá-nos conta da história conturbada da cidade onde tiveram lugar inundações com alguma intensidade nas décadas de 40 e 50 do século XX.
No mesmo jornal, o arquitecto paisagista Gonçalo Gomes reflecte sobre a ocupação desregrada do território daquela bacia hidrográfica, com índices muito elevados de impermeabilização, a par com o sub-dimensionamento e deficiente manutenção das infraestruturas de drenagem. Perante um cenário de forte carga, como aquele vivido no passado fim-de-semana, esta combinação adversa de factores revelou-se a receita para o desastre.

Importa ter presente que o cenário trágico que ali se verificou tem causas humanas – e que as responsabilidades ao Homem devem ser atribuídas. Em primeiro lugar, ao somatório de erros de ocupação do território durante várias décadas, fruto da ausência de uma cultura de planeamento e do laxismo de administradores locais, levados a reboque pela voragem imediatista da construção civil.
Depois a jusante, porque conhecendo-se bem as fragilidades consolidadas e os graus de perigo presentes, se conseguem ignorar os riscos durante anos ou décadas a fio, à espera da calamidade. Que ninguém se atreva a encolher os ombros como se de uma fatalidade se tratasse – e que ninguém permita que um político o faça. Estes problemas têm solução: faça-se o diagnóstico de toda a bacia hidrográfica, estabeleça-se um plano de drenagem adequado às solicitações presentes e ponha-se em prática.

É muito caro? Sim. Mas como nos permitimos levar a cabo operações de urbanismo cosmético, ascendendo a dezenas de milhões de euros, sobre territórios com tal vulnerabilidade, sem começar por abordar as carências infraestruturais que os afligem?
Não pensar sai caro – e somos nós todos que pagamos, nos nossos impostos, os prejuízos do luxo da ignorância. Como voltaremos a pagar agora, uma vez mais.

Conhecendo os constrangimentos orçamentais em que vive a maioria dos municípios portugueses, em especial no interior do país, sem acesso aos grandes programas de dita requalificação promovidos pelo Estado e quase sem acesso aos fundos europeus, ver um Polis levado literalmente por água abaixo é, perdoem o desabafo, difícil de suportar.