Sexta-feira
As imagens não são neutrais. Elas dão-nos sistemas de representação simbólica afectadas pela nossa história e visão do mundo. Em cada linguagem, as descrições não são neutrais. Elas são igualmente afectadas pelas capacidades individuais e os antecedentes do autor. Em muitos contextos, essa subjectividade é uma qualidade que se deve celebrar, tal como celebramos a diversidade de culturas e de pessoas.
A subjectividade torna-se um problema de conhecimento, no entanto, quando não reconhecemos as predisposições que afectam aquilo que percepcionamos e o modo como o comunicamos. A nossa subjectividade tem um impacto na nossa busca de conhecimento e a forma como agimos no mundo. Quando a subjectividade se torna um problema, chamamos a isso de “tendência” (bias). Quando elementos da linguagem são intencionalmente tendenciosos numa tentativa de persuadir o receptor, é necessário estar alerta contra a manipulação que nos pode vender tudo, de um automóvel a uma seita.
Nenhuma descrição pode ser completamente objectiva ou neutral: nós não conseguimos percepcionar todas as coisas, não podemos ser máquinas de gravação neutrais nem mesmo das coisas que captamos com os sentidos, e não conseguimos reproduzir em linguagem todos os detalhes nem mesmo de um só minuto de um evento. Ainda que a selecção inevitável seja um problema de conhecimento, o nosso filtro de subjectividade ajuda-nos de facto a não nos afundarmos nos detalhes. Se fossemos completamente objectivos, poderíamos exprimir inumeráveis observações indiferenciadas, mas nenhum senso daquilo que é “relevante” ou “importante” ou “interessante” – que são juízos de valor. (...)
Quando uma descrição não é um relato mas uma tentativa de persuasão, pode ainda assim ser considerada credível se os argumentos são suportados com boas razões e provas. É importante, no entanto, que se avalie a exposição persuasiva na base das suas justificações em vez de aceitarmos as suas conclusões na base do seu apelo emocional.
Ainda que seja difícil avaliar o rigor de um depoimento quando não se tem acesso independente aos factos, pode certamente ajudar-nos o conhecimento de alguns dos truques da persuasão.
Quero continuar a ler: Eileen Dombrowski: Bias in Representations of the World (em inglês).
Propaganda é um conceito que significava originalmente a promoção de uma qualquer ideia ou evento, mas foi tomando o seu actual sentido pejorativo na sequência do uso extensivo de propaganda sinistra com objectivos de manipulação de opinião pública durante a primeira e segunda grandes guerras mundiais. Não é um fenómeno novo mas tem vindo com o tempo a ganhar novos suportes e formas de expressão que a tornam cada vez mais eficaz e indetectável.
Um dos principais objectivos da propaganda é criar aquilo que se tem vindo a definir como “dissonância cognitiva”. A dissonância cognitiva é o estado de confusão que ocorre quando os factos são distorcidos em meias-verdades, colidindo com o senso comum e subitamente nos convence que 2+2=5. A nossa percepção diz-nos que algo não está certo, no entanto a informação que nos é dada e exposta interage com essa percepção causando a dúvida do receptor. Isto acontece, por exemplo, quando se associam factos não relacionados com o objectivo de criar uma correlação. Um bom exemplo deste fenómeno é o discurso do presidente americano George Bush durante o qual mencionou o Iraque e os ataques do 11 de Setembro na mesma frase. A estreita proximidade destas duas menções é delineada para criar uma correlação na mente dos receptores, mesmo que a realidade seja diferente. Por insinuação, as pessoas aceitam a ideia num nível subconsciente e tornam-na numa possibilidade. Através da repetição, a correlação torna-se um facto sustentado por desinformação. Com o tempo, a realidade é esquecida e a “revisão” torna-se “verdade”. É esse o poder da dissonância cognitiva: rever a história, alterar os factos e tornar a ficção em verdade, e a verdade em traição. Tanto a história como a política contemporânea estão carregadas de exemplos, particularmente observáveis nos períodos que antecedem guerras ou crises mundiais.
A subtileza crescente dos mecanismos de manipulação torna-os cada vez mais bem sucedidos no acesso à emoção do espectador. O apelo à emoção é, de resto, um mecanismo perigoso de interacção com o público uma vez que este deixa de questionar os factos que estão na base da sua opinião (emocional) e das razões que o levam a agir. As técnicas de chantagem emocional são aquelas que mais mobilizam uma população: o medo, a culpa, a humilhação. Neste processo, a repetição dos objectivos continua cada vez com maior intensidade até cessar a resistência, até que a aceitação se torne o caminho do menor esforço. É neste estado de aceitação manifestado dentro da dissonância cognitiva que uma população se torna mais vulnerável à manipulação e à sugestão.
Alguns exemplos recentes têm servido para demonstrar a verdadeira força dos media enquanto máquinas de inquietação. A morte da Princesa Diana foi um dos exemplos mais paradigmáticos de produção de emoção, pelo tom da mensagem, pela sua repetição, pelas imagens e pelos registos noticiosos, muitas vezes com acompanhamento sonoro e imagens de sofrimento e luto. A mobilização da população em torno da sua morte foi exemplar da aderência a um evento global. No entanto, a forma como, no primeiro aniversário da sua morte, a notícia estava praticamente esquecida e é hoje não mais que uma nota de rodapé da história contemporânea, mostra bem a dimensão real do evento e a proporção das reacções que foi capaz de gerar, de uma verdadeira santificação da figura de Diana Spencer.
A força destes mecanismos mediáticos de apelo à emoção pode, de resto, ser usada com diversos fins. Um exemplo nacional foi a campanha de mobilização da opinião pública portuguesa em torno da situação vivida em Timor após o referendo de 1999. A aderência geral da comunicação social e o relato constante da situação vivida no território, em que milícias atacaram indiscriminadamente a população, ameaçando inclusivamente a sede dos observadores das Nações Unidas, provocando a fuga de D. Ximenes Belo para a Austrália e o asilo de Xanana Gusmão na embaixada inglesa em Jacarta, despertou protestos em vários países do mundo exigindo uma intervenção rápida para cessar a violência. Em Portugal, o eco desta campanha mediática provocou as maiores manifestações populares desde o 25 de Abril, com a divulgação em massa de campanhas pró Timor a favor da rápida intervenção das Nações Unidas.
Apesar de eventos completamente diferentes, o processo de apelo à emoção, também neste segundo exemplo, foi semelhante: imagens repetidas de sofrimento com acompanhamento sonoro dramático e um forte apelo emocional foram de igual forma a alavanca à reacção pública que se gerou. Compreenda-se que não estou aqui a pôr em causa a legitimidade dos princípios dessa campanha ou a sua espontaneidade, mas somente a analisar os processos em que o fenómeno se sustentou.
O uso cada vez mais banalizado de um registo emocional por parte especialmente de alguns canais e programas televisivos é também ele gerador de inquietação e fraca lucidez pública. Mas esse registo não é um exclusivo da televisão ou da comunicação social. Na política o uso de discursos crescentemente gritantes, emotivos ou mesmo histéricos é uma realidade com que nos temos vindo a confrontar. Seja quem for o interlocutor, uma argumentação não é uma luta, não é uma forte asserção emocional, mas a progressão de ideias desde as premissas até à conclusão. Numa abordagem racional, essa argumentação começa com pressupostos, os dados que acreditamos serem certos, desenvolvendo uma racionalização até alcançar conclusões. O discurso da inquietação é um discurso que tenta perfurar a razão do receptor através do apelo à sua emoção. O perigo reside na força que um tal apelo é capaz de gerar, sem que o receptor questione genuinamente as motivações que o levam a aderir.
Na sociedade contemporânea, os cidadãos devem estar alertados para estas mecânicas do comportamento, para poderem ser os verdadeiros detentores da sua opinião e do papel que querem assumir no mundo. Vale a pena repetir uma passagem da introdução de Eileen Dombrowski: Quando uma descrição não é um relato mas uma tentativa de persuasão, pode ainda assim ser considerada credível se os argumentos são suportados com boas razões e provas. É importante, no entanto, que se avalie a exposição persuasiva na base das suas justificações em vez de aceitarmos as suas conclusões na base do seu apelo emocional.
|sinais|de|fumo|
Quinta-feira
Impressiona verificar, por exemplo, como se discute com leviandade a questão da interrupção voluntária da gravidez, esquecendo os intervenientes que, mais uma vez, o problema se deve tratar antes: só um plano coerente de Educação para a Saúde o poderá, pelo menos, atenuar.
Escrevia Daniel Sampaio no Público de sábado passado sobre estudos recentes reveladores da grande falta de informação dos estudantes portugueses sobre questões como a Sida e outros aspectos da educação sexual. Denuncia depois a quase total ausência de uma verdadeira educação sexual nas escolas, pelo menos de forma organizada, e a necessidade de se investir definitivamente naquilo que chama de uma Educação para a Saúde.
Existe uma ideia feita, recorrentemente repetida, de que quando falamos de sexo os jovens já sabem tudo. É uma ideia tremendamente errada e infelizmente bastante perigosa. A verdade é que os miúdos não sabem quase nada, eles estão cheios de preconceitos. Basta fazer-lhes umas quantas perguntas sobre assuntos como a prostituição, a Sida ou até sobre preferências sexuais e ver as respostas que muitos atiram para o ar, os medos, as dúvidas e mesmo as intolerâncias.
As questões de que fala Daniel Sampaio deviam estar no centro do debate do aborto, porque é um debate que não pode ser feito sem se falar de educação e de cultura.
Fernando Rosas, conhecida figura do Bloco de Esquerda, dizia na SIC Mulher há algumas semanas que a lei em vigor contra o aborto era uma lei estúpida que devia ser alterada, acrescentando de passagem, julgo que de forma que nem ele terá ponderado bem, que era uma lei para a qual o Bloco apelava à desobediência civil, uma lei que as pessoas deviam recusar-se a cumprir. Apesar de me rever em grande parte no discurso que o Bloco de Esquerda tem relativamente a esta questão, julgo que a afirmação que ali foi feita é o tipo de mensagem que põe em causa o princípio do que se devia defender. Dizer que se apela à desobediência civil é esquecer que uma política de descriminalização do aborto tem de ser também uma política de combate ao aborto. Julgo que isto merece alguma reflexão.
O caso de uma mulher que ao longo da vida fez uma dezena de abortos, com honras de prime-time em telejornal, foi um retrato recente de ignorância e de miséria. Seja em que cenário for, o aborto não pode ser encarado como uma forma de contracepção ou uma opção de planeamento familiar. No entanto, não nos podemos contentar com a tranquilidade ideológica com que alguns se revêem nas posições de criminalização. Pode-se proibir o aborto mas não se pode proibir a ignorância, o medo, a realidade humana. Temos de perceber que vivemos num dos países da Europa com mais casos de gravidez na adolescência. Temos de perceber que Portugal é um país onde muitas famílias subsistem com grande repressão económica. É para esse país que é preciso legislar. Será justo criminalizar e prender mulheres que recorreram ao aborto num país que em nada investe na educação das pessoas, dotando-as de uma real capacidade de consciencializar e reflectir sobre os seus comportamentos, as suas escolhas e decisões.
Julgo que o verdadeiro confronto que existe na questão do aborto é entre aqueles que vêem a questão sobre um ponto de vista ideológico, uma questão de civilização e de princípios que atira o debate para um patamar de indiscutibilidade, e os que vêem a questão de um ponto de vista pragmático, da realidade social. A verdade é que, com criminalização ou sem ela, o aborto está aí, a acontecer todos os dias. É urgente que se comece a falar, de uma vez por todas, em educação sexual. Não é apenas uma educação em abstracto, uma espécie de biologia do sexo, mas uma verdadeira educação comportamental. Daniel Sampaio fala de uma Educação para a Saúde, que contemplasse o ensino e a reflexão sobre algumas questões essenciais da saúde dos jovens, por exemplo: alimentação, sono, higiene básica, questões posturais, exercício físico, saúde mental, etc., e na qual deveria ser incluída uma forte componente de educação para a sexualidade. Esta escolha de palavras, educação para a sexualidade, é uma expressão muito acertada para o que deve ser um conteúdo de ensino não só sobre o sexo num sentido estrito, mas algo que extravasa para os comportamentos individuais, o relacionamento interpessoal, as tolerâncias que temos para com a diferença, o egoísmo e a atenção ao “outro”, uma educação para a vida consciente. Aquilo de que necessitamos verdadeiramente é de uma revolução dos pensamentos que só pode resultar de um investimento nas pessoas. A urgência desse investimento extravasa em muito o problema do aborto, sendo fundamental para defender os jovens e mesmo os adultos do flagelo da depressão, da insegurança, de relacionamentos sustentados pela submissão lesiva do indivíduo, da alienação social, enfim, para saber sobreviver com consciência num mundo que por vezes nos rodeia de diversos perigos.
Receio que o contributo relevante que alguns dos mais lúcidos portugueses vão oferecendo ao país, como este exemplo de Daniel Sampaio e outros que, apesar de tudo, vão surgindo, se vá perdendo nas entrelinhas do dia a dia como sinais de fumo no horizonte que cedo se esfumam no esquecimento, sem uma reflexão consequente da parte dos media e sem obter qualquer eco na realidade política portuguesa.
Impressiona verificar, por exemplo, como se discute com leviandade a questão da interrupção voluntária da gravidez, esquecendo os intervenientes que, mais uma vez, o problema se deve tratar antes: só um plano coerente de Educação para a Saúde o poderá, pelo menos, atenuar.
Escrevia Daniel Sampaio no Público de sábado passado sobre estudos recentes reveladores da grande falta de informação dos estudantes portugueses sobre questões como a Sida e outros aspectos da educação sexual. Denuncia depois a quase total ausência de uma verdadeira educação sexual nas escolas, pelo menos de forma organizada, e a necessidade de se investir definitivamente naquilo que chama de uma Educação para a Saúde.
Existe uma ideia feita, recorrentemente repetida, de que quando falamos de sexo os jovens já sabem tudo. É uma ideia tremendamente errada e infelizmente bastante perigosa. A verdade é que os miúdos não sabem quase nada, eles estão cheios de preconceitos. Basta fazer-lhes umas quantas perguntas sobre assuntos como a prostituição, a Sida ou até sobre preferências sexuais e ver as respostas que muitos atiram para o ar, os medos, as dúvidas e mesmo as intolerâncias.
As questões de que fala Daniel Sampaio deviam estar no centro do debate do aborto, porque é um debate que não pode ser feito sem se falar de educação e de cultura.
Fernando Rosas, conhecida figura do Bloco de Esquerda, dizia na SIC Mulher há algumas semanas que a lei em vigor contra o aborto era uma lei estúpida que devia ser alterada, acrescentando de passagem, julgo que de forma que nem ele terá ponderado bem, que era uma lei para a qual o Bloco apelava à desobediência civil, uma lei que as pessoas deviam recusar-se a cumprir. Apesar de me rever em grande parte no discurso que o Bloco de Esquerda tem relativamente a esta questão, julgo que a afirmação que ali foi feita é o tipo de mensagem que põe em causa o princípio do que se devia defender. Dizer que se apela à desobediência civil é esquecer que uma política de descriminalização do aborto tem de ser também uma política de combate ao aborto. Julgo que isto merece alguma reflexão.
O caso de uma mulher que ao longo da vida fez uma dezena de abortos, com honras de prime-time em telejornal, foi um retrato recente de ignorância e de miséria. Seja em que cenário for, o aborto não pode ser encarado como uma forma de contracepção ou uma opção de planeamento familiar. No entanto, não nos podemos contentar com a tranquilidade ideológica com que alguns se revêem nas posições de criminalização. Pode-se proibir o aborto mas não se pode proibir a ignorância, o medo, a realidade humana. Temos de perceber que vivemos num dos países da Europa com mais casos de gravidez na adolescência. Temos de perceber que Portugal é um país onde muitas famílias subsistem com grande repressão económica. É para esse país que é preciso legislar. Será justo criminalizar e prender mulheres que recorreram ao aborto num país que em nada investe na educação das pessoas, dotando-as de uma real capacidade de consciencializar e reflectir sobre os seus comportamentos, as suas escolhas e decisões.
Julgo que o verdadeiro confronto que existe na questão do aborto é entre aqueles que vêem a questão sobre um ponto de vista ideológico, uma questão de civilização e de princípios que atira o debate para um patamar de indiscutibilidade, e os que vêem a questão de um ponto de vista pragmático, da realidade social. A verdade é que, com criminalização ou sem ela, o aborto está aí, a acontecer todos os dias. É urgente que se comece a falar, de uma vez por todas, em educação sexual. Não é apenas uma educação em abstracto, uma espécie de biologia do sexo, mas uma verdadeira educação comportamental. Daniel Sampaio fala de uma Educação para a Saúde, que contemplasse o ensino e a reflexão sobre algumas questões essenciais da saúde dos jovens, por exemplo: alimentação, sono, higiene básica, questões posturais, exercício físico, saúde mental, etc., e na qual deveria ser incluída uma forte componente de educação para a sexualidade. Esta escolha de palavras, educação para a sexualidade, é uma expressão muito acertada para o que deve ser um conteúdo de ensino não só sobre o sexo num sentido estrito, mas algo que extravasa para os comportamentos individuais, o relacionamento interpessoal, as tolerâncias que temos para com a diferença, o egoísmo e a atenção ao “outro”, uma educação para a vida consciente. Aquilo de que necessitamos verdadeiramente é de uma revolução dos pensamentos que só pode resultar de um investimento nas pessoas. A urgência desse investimento extravasa em muito o problema do aborto, sendo fundamental para defender os jovens e mesmo os adultos do flagelo da depressão, da insegurança, de relacionamentos sustentados pela submissão lesiva do indivíduo, da alienação social, enfim, para saber sobreviver com consciência num mundo que por vezes nos rodeia de diversos perigos.
Receio que o contributo relevante que alguns dos mais lúcidos portugueses vão oferecendo ao país, como este exemplo de Daniel Sampaio e outros que, apesar de tudo, vão surgindo, se vá perdendo nas entrelinhas do dia a dia como sinais de fumo no horizonte que cedo se esfumam no esquecimento, sem uma reflexão consequente da parte dos media e sem obter qualquer eco na realidade política portuguesa.
|tempo|de|não|crise|
Segunda-feira
Um dia conversava com um amigo sobre música. Era o tempo das “boys band” e questionávamos os fenómenos de massificação da música pop. Dei por mim a argumentar com uma ideia feita, de que a produção industrial da pop era o sintoma de um tempo de crise, um tempo em que se produzem bens consumíveis em que o conteúdo é desvalorizado em relação à forma e à sua qualidade/capacidade de absorção por um determinado mercado de fãs. E o meu amigo ouviu e depois disse-me uma coisa que nunca mais esqueci. Que não, que o tipo de música de que eu falava era próprio de um tempo de não crise.
Tenho pensado muito no significado daquela expressão. Tempo de não crise. Em tempos de crise as pessoas sofrem e questionam-se, debatem. Penso na década de sessenta e setenta, um verdadeiro tempo de crise em que tudo se pôs em causa, as gerações, o papel das mulheres, o sexo, a manipulação política, a guerra. A música desses anos explodiu num milhar de formas de expressão, de intervenção. Foi um tempo em que se eliminaram os meninos bonitos da música, os crooners. Era o tempo da revolta, da Janis Joplin, do Jim Morrison, do Jimmy Hendrix, quando os gestos eram novos e mal coreografados. O tempo em que Joan Baez e Bob Dylan reclamavam How many times can a man turn his head, / Pretending he just doesn't see? / The answer, my friend, is blowin' in the wind, / The answer is blowin' in the wind. Quando a inquietação dos jovens Simon e Garfunkel parecia chorar I’m on your side when times get rough / And friends just can’t be found, / Like a bridge over troubled water / I will lay me down.
Os verdadeiros tempos de crise são tempos de evolução, de transformação. A dor é a mãe da mudança. Quando as pessoas se põem em dúvida, se inquietam, as ideias mudam. Penso na revolução francesa, penso no pós-guerra (II), na revolução portuguesa de 1974. Mas a sociedade de consumo trouxe-nos uma nova era. Estamos longe de estar felizes, não estamos satisfeitos mas fomos amansados pelos automóveis, pelos computadores, pelos telemóveis, pelos dvds. Se o mundo vai acabar amanhã, então hoje deixa-me ir ao shopping.
Há uma certa cultura da alienação que invade a forma como nos socializamos. Na diversão nocturna, no espectáculo, na informação, a entoação é dada à “experiência” da coisa e não à coisa em si. Não é o conteúdo, a mensagem, o fio de comunicação que prevalece, mas o ruído que a envolve. Na sociedade da comunicação, é a comunicação que submerge perante a força dos veículos em que se transmite. Esquecemos que para transmitir pensamento basta o som da voz ou o preto contra o branco da palavra escrita. É no silêncio entre as palavras que temos de nos fazer ouvir.
Um dia conversava com um amigo sobre música. Era o tempo das “boys band” e questionávamos os fenómenos de massificação da música pop. Dei por mim a argumentar com uma ideia feita, de que a produção industrial da pop era o sintoma de um tempo de crise, um tempo em que se produzem bens consumíveis em que o conteúdo é desvalorizado em relação à forma e à sua qualidade/capacidade de absorção por um determinado mercado de fãs. E o meu amigo ouviu e depois disse-me uma coisa que nunca mais esqueci. Que não, que o tipo de música de que eu falava era próprio de um tempo de não crise.
Tenho pensado muito no significado daquela expressão. Tempo de não crise. Em tempos de crise as pessoas sofrem e questionam-se, debatem. Penso na década de sessenta e setenta, um verdadeiro tempo de crise em que tudo se pôs em causa, as gerações, o papel das mulheres, o sexo, a manipulação política, a guerra. A música desses anos explodiu num milhar de formas de expressão, de intervenção. Foi um tempo em que se eliminaram os meninos bonitos da música, os crooners. Era o tempo da revolta, da Janis Joplin, do Jim Morrison, do Jimmy Hendrix, quando os gestos eram novos e mal coreografados. O tempo em que Joan Baez e Bob Dylan reclamavam How many times can a man turn his head, / Pretending he just doesn't see? / The answer, my friend, is blowin' in the wind, / The answer is blowin' in the wind. Quando a inquietação dos jovens Simon e Garfunkel parecia chorar I’m on your side when times get rough / And friends just can’t be found, / Like a bridge over troubled water / I will lay me down.
Os verdadeiros tempos de crise são tempos de evolução, de transformação. A dor é a mãe da mudança. Quando as pessoas se põem em dúvida, se inquietam, as ideias mudam. Penso na revolução francesa, penso no pós-guerra (II), na revolução portuguesa de 1974. Mas a sociedade de consumo trouxe-nos uma nova era. Estamos longe de estar felizes, não estamos satisfeitos mas fomos amansados pelos automóveis, pelos computadores, pelos telemóveis, pelos dvds. Se o mundo vai acabar amanhã, então hoje deixa-me ir ao shopping.
Há uma certa cultura da alienação que invade a forma como nos socializamos. Na diversão nocturna, no espectáculo, na informação, a entoação é dada à “experiência” da coisa e não à coisa em si. Não é o conteúdo, a mensagem, o fio de comunicação que prevalece, mas o ruído que a envolve. Na sociedade da comunicação, é a comunicação que submerge perante a força dos veículos em que se transmite. Esquecemos que para transmitir pensamento basta o som da voz ou o preto contra o branco da palavra escrita. É no silêncio entre as palavras que temos de nos fazer ouvir.
|terra|
Segunda-feira
De vez em quando relembro as palavras de Exupéry, que mais depressa nos ensina a terra do que todos os livros. Porque nos resiste.
Terra é uma bela palavra. Existe algo de puro em pôr as mãos na terra, sentir o seu toque e o seu odor. São sentimentos que nos são primordiais, o aroma da terra molhada, o seu brilho nas madrugadas do início da primavera. Ao admirarmos os triunfos da nossa história, a grande evolução artística e tecnológica da nossa cultura (ocidental), começamos a esquecer como nos temos afastado da terra. O modo de vida urbano que admiramos como a construção física em que plasmámos os nossos ideais, conduz-nos cada vez mais para um modo de vida asséptico e estanque. Sentimo-nos sujos com o toque da terra, queremos lavar as mãos. E no entanto a terra é limpa, não existe nada de sujo nela. Mas a vida, cada vez mais etérea aos nossos sentidos, perde a sua fisicalidade, a sua corporalidade.
Os prédios cresceram em altura, queremos atingir o céu, mas a felicidade está aqui, na terra fértil, nos prados, entre as árvores.
Sou arquitecto e gosto muito de cidades. O que me faz escrever isto não é nenhuma espécie de nostalgia do campo, aquela que faz o imaginário de quem nunca o viveu e que recria um campo que nunca existiu, nos condomínios de luxo privados. Estou a falar de uma necessidade física da terra. Os nossos corpos não foram feitos para andar de carro ou de elevador. Foram feitos para correr, para saltar, para cavar e mergulhar nos rios. O nosso corpo é a história de um modo de vida de milénios em que nos maravilhámos com o sol e a lua, longe de conhecer os segredos da sua existência.
E como me parece que nós que nos maravilhamos com as nossas conquistas, os nossos hábitos requintados, mergulhados em gestos tecnológicos, estamos perdidos. Como me parece que mal começámos a sair da caverna, se é que já saímos dela. Hoje e agora, à nossa volta, os gestos do homem continuam a ser os da subsistência, os do medo, da desconfiança. O nosso inimigo já não é o tigre, a nossa arma já não é um pau, mas continuamos a ver um mundo cheio de inimigos e a proteger-mo-nos com agressividade. Sim, ainda estamos na caverna dos medos e das necessidades.
Vêm-me estes pensamentos soltos à ideia depois de rever o muito belo “Danças Com Lobos”. Desatento, descobri só ao ver a edição dvd que foi editada recentemente, tratar-se de uma edição especial com quase quatro horas. E o filme já soberbo parece agora esticar as pernas e os braços e revela um respeito comovente pelo tempo da terra. Sim, como as cidades, a terra também tem o seu próprio tempo, o do vento a deslizar nas searas, o do céu a carregar-se de vermelho ao fim do dia, o da migração das manadas, o da tempestade. O tempo da terra é o verdadeiro tempo do homem. O pensamento, aquele que constrói cultura e civilização, não é o da voragem, mas o da contemplação. Como o de um homem que um dia se pôs à beira de um cabo no sul de Portugal, frente à falésia, olhou longamente o infinito e sonhou.
De vez em quando relembro as palavras de Exupéry, que mais depressa nos ensina a terra do que todos os livros. Porque nos resiste.
Terra é uma bela palavra. Existe algo de puro em pôr as mãos na terra, sentir o seu toque e o seu odor. São sentimentos que nos são primordiais, o aroma da terra molhada, o seu brilho nas madrugadas do início da primavera. Ao admirarmos os triunfos da nossa história, a grande evolução artística e tecnológica da nossa cultura (ocidental), começamos a esquecer como nos temos afastado da terra. O modo de vida urbano que admiramos como a construção física em que plasmámos os nossos ideais, conduz-nos cada vez mais para um modo de vida asséptico e estanque. Sentimo-nos sujos com o toque da terra, queremos lavar as mãos. E no entanto a terra é limpa, não existe nada de sujo nela. Mas a vida, cada vez mais etérea aos nossos sentidos, perde a sua fisicalidade, a sua corporalidade.
Os prédios cresceram em altura, queremos atingir o céu, mas a felicidade está aqui, na terra fértil, nos prados, entre as árvores.
Sou arquitecto e gosto muito de cidades. O que me faz escrever isto não é nenhuma espécie de nostalgia do campo, aquela que faz o imaginário de quem nunca o viveu e que recria um campo que nunca existiu, nos condomínios de luxo privados. Estou a falar de uma necessidade física da terra. Os nossos corpos não foram feitos para andar de carro ou de elevador. Foram feitos para correr, para saltar, para cavar e mergulhar nos rios. O nosso corpo é a história de um modo de vida de milénios em que nos maravilhámos com o sol e a lua, longe de conhecer os segredos da sua existência.
E como me parece que nós que nos maravilhamos com as nossas conquistas, os nossos hábitos requintados, mergulhados em gestos tecnológicos, estamos perdidos. Como me parece que mal começámos a sair da caverna, se é que já saímos dela. Hoje e agora, à nossa volta, os gestos do homem continuam a ser os da subsistência, os do medo, da desconfiança. O nosso inimigo já não é o tigre, a nossa arma já não é um pau, mas continuamos a ver um mundo cheio de inimigos e a proteger-mo-nos com agressividade. Sim, ainda estamos na caverna dos medos e das necessidades.
Vêm-me estes pensamentos soltos à ideia depois de rever o muito belo “Danças Com Lobos”. Desatento, descobri só ao ver a edição dvd que foi editada recentemente, tratar-se de uma edição especial com quase quatro horas. E o filme já soberbo parece agora esticar as pernas e os braços e revela um respeito comovente pelo tempo da terra. Sim, como as cidades, a terra também tem o seu próprio tempo, o do vento a deslizar nas searas, o do céu a carregar-se de vermelho ao fim do dia, o da migração das manadas, o da tempestade. O tempo da terra é o verdadeiro tempo do homem. O pensamento, aquele que constrói cultura e civilização, não é o da voragem, mas o da contemplação. Como o de um homem que um dia se pôs à beira de um cabo no sul de Portugal, frente à falésia, olhou longamente o infinito e sonhou.
|a|arte|de|violar|o|pdm|
Quarta-feira
Talvez a maioria dos cidadãos esteja mais à vontade a falar de cinema do que de arquitectura. Não será drama para ninguém se olharmos para a obra de excelentes cineastas, um Coppola ou um Scorsese, e discutirmos a qualidade de um ou outro filme das suas cinematografias. Mas a falar de arquitectura as pessoas começam a vacilar, será que é bom, será que é mau, será que gosto, posso dizê-lo? Os arquitectos de referência tornam-se uma espécie de elite no pedestal dos génios, não por reconhecimento argumentado da qualidade do seu trabalho mas devido a uma espécie de reverência ignorante. A indiscutibilidade dos génios começa agora a ser usada pela classe política como forma de atingir objectivos que à primeira vista seriam susceptíveis de levantar polémica na opinião pública. É caso para perguntar, se o falecido projecto do elevador para o Castelo de S. Jorge fosse da autoria de um Norman Foster ou de um Frank Gehry, não teria ido avante?
O recente episódio das Torres de Alcântara, projecto da autoria de Siza Vieira, levantou um debate interessante. Julgo que a questão de fundo não se prende de todo com a qualidade (artística, estética) da proposta, ou do seu significado no contexto da cidade. Também me parece irrelevante se existe ou não um motivo de especulação fundiária da parte dos promotores do grupo Silveira. Persiste na mentalidade portuguesa (especialmente no estado) esta presunção de culpa em relação ao promotor privado, tratado como um bandido por um dos seus objectivos ser a rentabilidade do seu empreendimento, sem a qual nada se faria. O problema que levanta o projecto de Siza é questionar abertamente a validade (urbanística) dos instrumentos de planeamento em vigor. Levantar a questão não é crime nenhum e Siza tem todo o direito de o fazer como qualquer outro. Mas a questão não pode morrer no ar sem que se exponham as conclusões.
Uma das funções dos instrumentos de planeamento (Planos Directores Municipais, Planos de Urbanização, Planos de Pormenor) é sujeitar à discussão pública as decisões que os organismos públicos tomam em relação ao território. Infelizmente essa discussão raras vezes funciona. Os orgãos estatais, câmaras municipais, etc., quase sempre vêem a consulta pública como um entrave ao processo, uma arrelia burocrática, e não como um momento importante para divulgar e questionar as decisões de planeamento que se estão a tomar. No entanto, para o bem ou para o mal, quando aprovados, os planos têm valor legal e garantem (?) regras de igualdade perante todos os cidadãos.
Analisemos então o caso de Alcântara. Quando o PDM define que a altura máxima dos edifícios para aquela zona é de oito pisos, está a impor uma regra igual para todos os cidadãos que ali queiram edificar. Pode questionar-se se os oito pisos têm alguma validade urbanística, se daí resulta uma boa imagem de cidade, se existiriam formas mais interessantes de fazer cidade com mais ou menos altura dos edifícios. Mas, repito, para o bem ou para o mal, se essa discussão e as conclusões daí resultantes não se fizerem no âmbito do planeamento, com que legitimidade se poderão fazer avulso, à vontade deste ou daquele promotor? Se se abrir uma excepção para o caso das Torres de Alcântara com que argumento se impedirá o seu vizinho de promover uma proposta semelhante? E que cidade resultará da soma de excepções, por muito relevantes que pareçam, se não tiverem sido planeadas em conjunto e segundo um procedimento democrático (que os instrumentos de planeamento tentam, em princípio, garantir)?
É importante que se comece a discutir a cidade ao nível do planeamento, e essa discussão deve questionar até se a mecânica existente dos planos é funcional. É preciso lembrar que o conceito jurídico dos PDM, dos Planos de Urbanização e dos Planos de Pormenor foi criado num tempo em que não existiam os sistemas de informação geográfica e os instrumentos de análise que cada vez mais estão à disposição na área do planeamento territorial. Brevemente terá de se pensar em reformar a tipologia dos planos, o seu conteúdo e a sua forma e ajustá-los aos objectivos de fazer cidade. No entanto, por muito versáteis que se tornem, os planos serão sempre por natureza conservadores. Ao impor regras que evitam abusos por parte de alguns, os planos revestem-se de condicionantes que evitam a criatividade e o génio de outros. Por isso, essa criatividade, esses rasgos de génio, têm de ser trazidos para dentro da discussão dos planos onde se revestirão de legitimidade, em vez de se fazer passar ao lado deles de forma arbitrária e abrindo perigosos precedentes que outros não se coibirão de aproveitar.
Talvez a maioria dos cidadãos esteja mais à vontade a falar de cinema do que de arquitectura. Não será drama para ninguém se olharmos para a obra de excelentes cineastas, um Coppola ou um Scorsese, e discutirmos a qualidade de um ou outro filme das suas cinematografias. Mas a falar de arquitectura as pessoas começam a vacilar, será que é bom, será que é mau, será que gosto, posso dizê-lo? Os arquitectos de referência tornam-se uma espécie de elite no pedestal dos génios, não por reconhecimento argumentado da qualidade do seu trabalho mas devido a uma espécie de reverência ignorante. A indiscutibilidade dos génios começa agora a ser usada pela classe política como forma de atingir objectivos que à primeira vista seriam susceptíveis de levantar polémica na opinião pública. É caso para perguntar, se o falecido projecto do elevador para o Castelo de S. Jorge fosse da autoria de um Norman Foster ou de um Frank Gehry, não teria ido avante?
O recente episódio das Torres de Alcântara, projecto da autoria de Siza Vieira, levantou um debate interessante. Julgo que a questão de fundo não se prende de todo com a qualidade (artística, estética) da proposta, ou do seu significado no contexto da cidade. Também me parece irrelevante se existe ou não um motivo de especulação fundiária da parte dos promotores do grupo Silveira. Persiste na mentalidade portuguesa (especialmente no estado) esta presunção de culpa em relação ao promotor privado, tratado como um bandido por um dos seus objectivos ser a rentabilidade do seu empreendimento, sem a qual nada se faria. O problema que levanta o projecto de Siza é questionar abertamente a validade (urbanística) dos instrumentos de planeamento em vigor. Levantar a questão não é crime nenhum e Siza tem todo o direito de o fazer como qualquer outro. Mas a questão não pode morrer no ar sem que se exponham as conclusões.
Uma das funções dos instrumentos de planeamento (Planos Directores Municipais, Planos de Urbanização, Planos de Pormenor) é sujeitar à discussão pública as decisões que os organismos públicos tomam em relação ao território. Infelizmente essa discussão raras vezes funciona. Os orgãos estatais, câmaras municipais, etc., quase sempre vêem a consulta pública como um entrave ao processo, uma arrelia burocrática, e não como um momento importante para divulgar e questionar as decisões de planeamento que se estão a tomar. No entanto, para o bem ou para o mal, quando aprovados, os planos têm valor legal e garantem (?) regras de igualdade perante todos os cidadãos.
Analisemos então o caso de Alcântara. Quando o PDM define que a altura máxima dos edifícios para aquela zona é de oito pisos, está a impor uma regra igual para todos os cidadãos que ali queiram edificar. Pode questionar-se se os oito pisos têm alguma validade urbanística, se daí resulta uma boa imagem de cidade, se existiriam formas mais interessantes de fazer cidade com mais ou menos altura dos edifícios. Mas, repito, para o bem ou para o mal, se essa discussão e as conclusões daí resultantes não se fizerem no âmbito do planeamento, com que legitimidade se poderão fazer avulso, à vontade deste ou daquele promotor? Se se abrir uma excepção para o caso das Torres de Alcântara com que argumento se impedirá o seu vizinho de promover uma proposta semelhante? E que cidade resultará da soma de excepções, por muito relevantes que pareçam, se não tiverem sido planeadas em conjunto e segundo um procedimento democrático (que os instrumentos de planeamento tentam, em princípio, garantir)?
É importante que se comece a discutir a cidade ao nível do planeamento, e essa discussão deve questionar até se a mecânica existente dos planos é funcional. É preciso lembrar que o conceito jurídico dos PDM, dos Planos de Urbanização e dos Planos de Pormenor foi criado num tempo em que não existiam os sistemas de informação geográfica e os instrumentos de análise que cada vez mais estão à disposição na área do planeamento territorial. Brevemente terá de se pensar em reformar a tipologia dos planos, o seu conteúdo e a sua forma e ajustá-los aos objectivos de fazer cidade. No entanto, por muito versáteis que se tornem, os planos serão sempre por natureza conservadores. Ao impor regras que evitam abusos por parte de alguns, os planos revestem-se de condicionantes que evitam a criatividade e o génio de outros. Por isso, essa criatividade, esses rasgos de génio, têm de ser trazidos para dentro da discussão dos planos onde se revestirão de legitimidade, em vez de se fazer passar ao lado deles de forma arbitrária e abrindo perigosos precedentes que outros não se coibirão de aproveitar.
|arquitectos|contra|engenheiros|
Segunda-feira
O arquitecto é alguém que não é suficientemente macho para ser engenheiro nem suficientemente maricas para ser decorador.
Existe um conflito antigo entre (alguns, porventura muitos) arquitectos e engenheiros, um certo gosto que têm em dizer mal uns dos outros. Esta incompreensão deve-se a uma falta de cultura mútua que resulta na desvalorização do trabalho que o outro faz.
Ao longo da minha carreira de arquitecto tenho tido a sorte de trabalhar com bons engenheiros. Essa experiência tem sido sempre enriquecedora. O bom engenheiro é alguém que, para além da qualidade e domínio técnico do trabalho que desenvolve, tem a consciência de que há aspectos da construção que devem ser salvaguardados na arquitectura, e que a engenharia deve respeitar. A solução de engenharia não pode resultar apenas da concretização de uma equação de factores técnicos, deve ajustar-se aos objectivos (volumétricos, funcionais, estéticos) da solução arquitectónica. Mas a questão não acaba, ou melhor, não começa aqui.
Também o bom arquitecto é aquele que está consciente das implicações que a(s) engenharia(s) vão colocar ao seu trabalho. Significa isto que o arquitecto, sem necessitar de uma formação específica de engenharia, deve conhecer e ter a sensibilidade de que a realidade que está a projectar se sustenta em soluções técnicas, construtivas, que têm regras e limites próprios. Se, por exemplo, o arquitecto quiser levar uma determinada solução estrutural ao limite, ou ir ainda mais além, deve estar consciente disso e trabalhar em estreita colaboração com o engenheiro de forma a procurar novas respostas técnicas para concretizar o seu objectivo.
Quando esta compreensão mútua existe, quando o arquitecto valoriza o trabalho do engenheiro, e este o do arquitecto, o conflito entre ambos deixa de fazer sentido e desaparece.
A guerra entre engenheiros e arquitectos não seria um problema grave se fosse apenas motivo para algumas anedotas de melhor ou pior gosto. Grave é ser sintoma de um problema maior do nosso trabalho, que é o de uma certa desvalorização da componente pluridisciplinar fundamental em algumas áreas da profissão. Isso é ainda mais evidente na área do planeamento.
Todos nós temos, devido à nossa formação, uma sensibilidade maior a algumas questões, em detrimento de outras. Imaginemos, por exemplo, que vamos desenvolver uma solução urbanística para um determinado território. Se encaramos a questão do ponto de vista do arquitecto, certamente valorizamos a qualidade do ambiente construído, a contemporaneidade da solução, os aspectos de relação e integração da malha urbana com a geografia do local, dos eixos visuais, da estética, da vivência humana, das interacções viárias e pedonais, e por aí fora.
Mas se pensarmos do ponto de vista do engenheiro, a ordem de prioridades talvez seja outra. O engenheiro preocupa-se com a racionalização das infra-estruturas, a funcionalidade do sistema viário, das implicações da solução urbana ao nível das drenagens, dos aterros, dos desníveis, etc.
O arquitecto paisagista observará a caracterização morfológica do território, as implicações que uma solução urbanística traz para o terreno e o seu coberto vegetal. Depois, preocupa-se com a qualidade do ambiente urbano, dos espaços exteriores e da sua vivência, das cinturas verdes, da estrutura pedonal, etc. Em sentido lato, o arquitecto paisagista é alguém que se preocupa, como nos tem ensinado Gonçalo Ribeiro Telles, com a integração biofísica da cidade com o território, das suas implicações ao nível da capacidade de infiltração dos solos, dos canais de escorrência das águas, das implicações ao nível dos ventos, e por aí fora.
Mas isto não acaba aqui. Para um sociólogo será importante pensar na estrutura humana que se vai criar, nos tipos de vivência e relação social que se vão estabelecer, na forma como se podem propiciar fenómenos de marginalidade e criminalidade, na qualidade humana da cidade.
Na economia, o gestor urbano irá alertar-nos para a viabilidade da solução urbana do ponto de vista financeiro. Uma determinada solução pode ser muito boa sobre todos os outros pontos de vista, mas se depender de custos incomportáveis ao nível das infra-estruturas ou submeter-se a gastos que põem em causa a sua viabilidade, então, como um todo, não é boa solução porque não pode ser concretizada para além do exercício teórico.
E poderia continuar para o arqueólogo, para o historiador, etc., até chegar ao urbanista que valoriza a forma como todas estas componentes se interligam.
A realidade é complexa, somos nós que a simplificamos na nossa necessidade de encontrar modelos para estudar a natureza das coisas e desenvolver respostas às questões práticas que se nos colocam. O problema começa quando começamos a pensar as prioridades sobre o nosso ponto de vista específico, desvalorizando os outros pontos de vista como algo que “depois alguém há-de resolver”. Ao longo do nosso trabalho, facilmente vamos encontrar pessoas que insistem em trabalhar sempre com aquelas variáveis que aprenderam, aplicando-as e fazendo delas doutrina, sem pensar se essas verdades o são quando confrontadas com outras componentes da realidade. Pessoas que depois ocupam cargos onde emitem pareceres e tomam decisões que afectam conjuntos largos de cidadãos. É preciso combater essa postura, e esse combate devia começar nas escolas e nas universidades, mas para combater um problema é preciso estar consciente de que ele existe. O que fazer então se a falta de consciência do problema é que é o problema?
O arquitecto é alguém que não é suficientemente macho para ser engenheiro nem suficientemente maricas para ser decorador.
Existe um conflito antigo entre (alguns, porventura muitos) arquitectos e engenheiros, um certo gosto que têm em dizer mal uns dos outros. Esta incompreensão deve-se a uma falta de cultura mútua que resulta na desvalorização do trabalho que o outro faz.
Ao longo da minha carreira de arquitecto tenho tido a sorte de trabalhar com bons engenheiros. Essa experiência tem sido sempre enriquecedora. O bom engenheiro é alguém que, para além da qualidade e domínio técnico do trabalho que desenvolve, tem a consciência de que há aspectos da construção que devem ser salvaguardados na arquitectura, e que a engenharia deve respeitar. A solução de engenharia não pode resultar apenas da concretização de uma equação de factores técnicos, deve ajustar-se aos objectivos (volumétricos, funcionais, estéticos) da solução arquitectónica. Mas a questão não acaba, ou melhor, não começa aqui.
Também o bom arquitecto é aquele que está consciente das implicações que a(s) engenharia(s) vão colocar ao seu trabalho. Significa isto que o arquitecto, sem necessitar de uma formação específica de engenharia, deve conhecer e ter a sensibilidade de que a realidade que está a projectar se sustenta em soluções técnicas, construtivas, que têm regras e limites próprios. Se, por exemplo, o arquitecto quiser levar uma determinada solução estrutural ao limite, ou ir ainda mais além, deve estar consciente disso e trabalhar em estreita colaboração com o engenheiro de forma a procurar novas respostas técnicas para concretizar o seu objectivo.
Quando esta compreensão mútua existe, quando o arquitecto valoriza o trabalho do engenheiro, e este o do arquitecto, o conflito entre ambos deixa de fazer sentido e desaparece.
A guerra entre engenheiros e arquitectos não seria um problema grave se fosse apenas motivo para algumas anedotas de melhor ou pior gosto. Grave é ser sintoma de um problema maior do nosso trabalho, que é o de uma certa desvalorização da componente pluridisciplinar fundamental em algumas áreas da profissão. Isso é ainda mais evidente na área do planeamento.
Todos nós temos, devido à nossa formação, uma sensibilidade maior a algumas questões, em detrimento de outras. Imaginemos, por exemplo, que vamos desenvolver uma solução urbanística para um determinado território. Se encaramos a questão do ponto de vista do arquitecto, certamente valorizamos a qualidade do ambiente construído, a contemporaneidade da solução, os aspectos de relação e integração da malha urbana com a geografia do local, dos eixos visuais, da estética, da vivência humana, das interacções viárias e pedonais, e por aí fora.
Mas se pensarmos do ponto de vista do engenheiro, a ordem de prioridades talvez seja outra. O engenheiro preocupa-se com a racionalização das infra-estruturas, a funcionalidade do sistema viário, das implicações da solução urbana ao nível das drenagens, dos aterros, dos desníveis, etc.
O arquitecto paisagista observará a caracterização morfológica do território, as implicações que uma solução urbanística traz para o terreno e o seu coberto vegetal. Depois, preocupa-se com a qualidade do ambiente urbano, dos espaços exteriores e da sua vivência, das cinturas verdes, da estrutura pedonal, etc. Em sentido lato, o arquitecto paisagista é alguém que se preocupa, como nos tem ensinado Gonçalo Ribeiro Telles, com a integração biofísica da cidade com o território, das suas implicações ao nível da capacidade de infiltração dos solos, dos canais de escorrência das águas, das implicações ao nível dos ventos, e por aí fora.
Mas isto não acaba aqui. Para um sociólogo será importante pensar na estrutura humana que se vai criar, nos tipos de vivência e relação social que se vão estabelecer, na forma como se podem propiciar fenómenos de marginalidade e criminalidade, na qualidade humana da cidade.
Na economia, o gestor urbano irá alertar-nos para a viabilidade da solução urbana do ponto de vista financeiro. Uma determinada solução pode ser muito boa sobre todos os outros pontos de vista, mas se depender de custos incomportáveis ao nível das infra-estruturas ou submeter-se a gastos que põem em causa a sua viabilidade, então, como um todo, não é boa solução porque não pode ser concretizada para além do exercício teórico.
E poderia continuar para o arqueólogo, para o historiador, etc., até chegar ao urbanista que valoriza a forma como todas estas componentes se interligam.
A realidade é complexa, somos nós que a simplificamos na nossa necessidade de encontrar modelos para estudar a natureza das coisas e desenvolver respostas às questões práticas que se nos colocam. O problema começa quando começamos a pensar as prioridades sobre o nosso ponto de vista específico, desvalorizando os outros pontos de vista como algo que “depois alguém há-de resolver”. Ao longo do nosso trabalho, facilmente vamos encontrar pessoas que insistem em trabalhar sempre com aquelas variáveis que aprenderam, aplicando-as e fazendo delas doutrina, sem pensar se essas verdades o são quando confrontadas com outras componentes da realidade. Pessoas que depois ocupam cargos onde emitem pareceres e tomam decisões que afectam conjuntos largos de cidadãos. É preciso combater essa postura, e esse combate devia começar nas escolas e nas universidades, mas para combater um problema é preciso estar consciente de que ele existe. O que fazer então se a falta de consciência do problema é que é o problema?
|esta|terra|mal|amada|
Terça-feira
Em toda a Europa está em curso uma transformação da ideia que os cidadãos têm do Estado. Em Portugal, a incapacidade que ao longo de décadas a estrutura estatal tem revelado para gerir a causa pública conduziu os cidadãos ao cinismo e à perda de expectativa. No entanto, se acreditamos que para existir uma sociedade estável existem bens comuns que nos cabem a todos construir e preservar, temos de reflectir sobre o que esperamos do nosso futuro colectivo.
O Estado é hoje uma estrutura complexa que muitas vezes se articula mal com os cidadãos e também entre si. Constantemente assistimos, nos mais diversos sectores, a organismos públicos confrontarem-se com visões e objectivos opostos, ou seja, ao Estado contra o Estado. Por outro lado, a máquina estatal tornou-se tão complexa nos trâmites e procedimentos que por vezes parece ao cidadão que a estrutura existe apenas para se alimentar a si própria, perdendo de vista os objectivos de serviço público para os quais foi criada.
A causa pública tem vindo a perder a sua credibilidade, deteriorando-se consecutivamente o seu crédito como um bem produtivo e de que todos beneficiam. A insatisfação dos cidadãos vem assim sendo explorada com recorrentes discursos políticos, geralmente simplificada e intencionalmente demagógicos, que reclamam a redução das despesas estatais, sustentadas pela incompetência da sua gestão. Como consequência lógica, o Estado tem vindo a reduzir progressivamente a sua presença em diversas áreas, passando para a sociedade privada a responsabilidade da sua coordenação e gestão, com o objectivo de melhor potenciar a gestão dos seus recursos.
Este processo é complexo e deve ser ponderado com responsabilidade e sem qualquer fanatismo ideológico. Tem igualmente de ser analisado com seriedade e estudando bem o que se ganha, o que se perde, e a sustentabilidade da nova estrutura que entretanto estamos a criar. E aqui é pena que todos nós – e os media – não façam uma ou duas perguntas. Ninguém duvida que o peso das finanças públicas é uma carga pesada no sector privado português e uma desvantagem competitiva no nosso quadro internacional. Ninguém duvida que o Estado tem de ser optimizado nos custos e nos resultados. Mas se o Estado (enquanto estrutura pública) gere mal os seus recursos, isso é justificação bastante para lhe retirar as responsabilidades, ou deve pelo contrário ser responsabilizado a gerir melhor?
Pessoalmente, preocupa-me que não se faça uma discussão profunda em torno deste problema. Pelo contrário, vivemos no tempo da fuga para a frente. Mude-se, e depois vamos ver os resultados. Voltemos então ao problema da redução das despesas estatais. Onde cortar? É uma questão ainda mais complexa. Realmente, cumprir o défice do pacto de estabilidade não é muito difícil, e para cortar não é preciso um ministro, basta um bom técnico de contas. A dificuldade está em saber aonde cortar as despesas sem que se entre em colapso pela deterioração dos serviços que se devem ao público. Sem que comecem a cair pontes, a incendiar os campos ou a morrer-se de calor nos hospitais.
Acredito que existe um problema de mentalidade na sociedade portuguesa, de certo modo uma visão infantil daquilo que se espera do País de uma forma passiva. O Estado depara-se hoje com um problema de sustentabilidade, que inclusivamente vê pôr em causa a própria estrutura e filosofia do Estado-Providência. Cumpre ao Estado saber interagir com a sociedade qual a forma de melhor aligeirar a sua presença naqueles sectores em que uma parceria público/privado é mais benéfica e rentável. No entanto, inevitavelmente, existem sectores sobre os quais o Estado deve manter uma presença mais ou menos forte, porque os objectivos que lhe são da responsabilidade salvaguardar podem não ser consonantes com os objectivos de rentabilidade do agente privado.
Torna-se assim necessário exigir uma maior produtividade dos serviços estatais, mas pode essa exigência aumentar se da parte dos agentes políticos não existir também um discurso de investimento na qualidade do Estado, nos meios, nos técnicos e nos recursos que lhe são postos à disposição? E conseguirão os partidos que compõem o nosso quadro político oferecer um projecto credível de reestruturação do Estado, sustentado economicamente com a realidade nacional sem deixar de pôr em causa a salvaguarda do bem comum? Receio que o discurso político dominante tenha seguido hoje por outros caminhos. Estamos a caminhar da falência do Estado-Providência para o que pode bem vir a ser a falência de um Estado-Neoliberal. Mas a que preço? Qual o custo de não pagar para a manutenção das causas públicas. Lamentavelmente, os erros repetem-se ano após ano e o país insiste em não aprender as lições que, pesadamente, se vão abatendo sobre todos nós.
Existe em Portugal um exemplo que é o paradigma de quanto custam as más decisões. Quando o IP5 foi executado, havia sido ponderada a hipótese de se constituir como um troço de auto-estrada em alternativa a um itinerário principal. A diferença de custos era elevada, uma vez que uma auto-estrada, para além dos custos inerentes à sua tipologia, possui vias mais largas e com limites de projecto muito mais reduzidos. Os raios de curvatura mínima são maiores e as inclinações da via são mais pequenas, o que significa uma maior suavidade do percurso, mas implicaria, para ser viável, a construção de um conjunto de infra-estruturas que adaptassem um tal traçado à topografia do local. A decisão de avançar com um itinerário principal permitiu poupar assim largos milhões de contos de investimento que na altura o teriam tornado praticamente irrealizável.
No entanto, olhados vinte anos depois, quanto custaram esses milhões de contos de poupança estatal, nos largos milhares de acidentes que ali tiveram lugar? Nos custos materiais resultantes directamente dos acidentes? Nos custos em cuidados de saúde dos atingidos, mortos e feridos? E depois, quanto custam os danos pessoais, emocionais, nas famílias das vítimas, os cônjuges, os pais ou os filhos, ou naqueles que ficam atingidos na sua integridade física para o resto da vida. E esse custo, como se repercute em crises, depressões e problemas sociais, em produtividade, nas suas vidas futuras?
Alguém sabe fazer estas contas? Alguém quer fazê-las? Quanto custou ao país, este Verão passado, anos de políticas de incúria e desinvestimento na protecção das florestas? Quanto custou a debilidade de um sistema de manutenção e fiscalização das pontes e infra-estruturas públicas, na noite de 4 de Março de 2001, quando um autocarro se lançou para o vazio das águas do Douro transportando mais de cinquenta pessoas? Quanto têm custado a nossa incúria colectiva, a nossa ignorância e má vontade colectivas?
É um problema cultural profundo, um problema que não se resolve no tempo de uma ou duas legislaturas. A solução depende de um investimento de décadas, talvez uma ou duas gerações, até que todos beneficiemos do resultado. Acredito plenamente que estes problemas têm solução e não são motivo para desânimo ou depressão nacional. No entanto, se não plantarmos as sementes do desenvolvimento, se não começarmos hoje a pagar o preço desse investimento nas gerações futuras, como podemos esperar colher no fim uma boa colheita. Deixaremos assim os nossos filhos à solta no mundo, certos de que lhes reservamos a inevitabilidade de um futuro menos feliz, menos estável e menos próspero.
Em toda a Europa está em curso uma transformação da ideia que os cidadãos têm do Estado. Em Portugal, a incapacidade que ao longo de décadas a estrutura estatal tem revelado para gerir a causa pública conduziu os cidadãos ao cinismo e à perda de expectativa. No entanto, se acreditamos que para existir uma sociedade estável existem bens comuns que nos cabem a todos construir e preservar, temos de reflectir sobre o que esperamos do nosso futuro colectivo.
O Estado é hoje uma estrutura complexa que muitas vezes se articula mal com os cidadãos e também entre si. Constantemente assistimos, nos mais diversos sectores, a organismos públicos confrontarem-se com visões e objectivos opostos, ou seja, ao Estado contra o Estado. Por outro lado, a máquina estatal tornou-se tão complexa nos trâmites e procedimentos que por vezes parece ao cidadão que a estrutura existe apenas para se alimentar a si própria, perdendo de vista os objectivos de serviço público para os quais foi criada.
A causa pública tem vindo a perder a sua credibilidade, deteriorando-se consecutivamente o seu crédito como um bem produtivo e de que todos beneficiam. A insatisfação dos cidadãos vem assim sendo explorada com recorrentes discursos políticos, geralmente simplificada e intencionalmente demagógicos, que reclamam a redução das despesas estatais, sustentadas pela incompetência da sua gestão. Como consequência lógica, o Estado tem vindo a reduzir progressivamente a sua presença em diversas áreas, passando para a sociedade privada a responsabilidade da sua coordenação e gestão, com o objectivo de melhor potenciar a gestão dos seus recursos.
Este processo é complexo e deve ser ponderado com responsabilidade e sem qualquer fanatismo ideológico. Tem igualmente de ser analisado com seriedade e estudando bem o que se ganha, o que se perde, e a sustentabilidade da nova estrutura que entretanto estamos a criar. E aqui é pena que todos nós – e os media – não façam uma ou duas perguntas. Ninguém duvida que o peso das finanças públicas é uma carga pesada no sector privado português e uma desvantagem competitiva no nosso quadro internacional. Ninguém duvida que o Estado tem de ser optimizado nos custos e nos resultados. Mas se o Estado (enquanto estrutura pública) gere mal os seus recursos, isso é justificação bastante para lhe retirar as responsabilidades, ou deve pelo contrário ser responsabilizado a gerir melhor?
Pessoalmente, preocupa-me que não se faça uma discussão profunda em torno deste problema. Pelo contrário, vivemos no tempo da fuga para a frente. Mude-se, e depois vamos ver os resultados. Voltemos então ao problema da redução das despesas estatais. Onde cortar? É uma questão ainda mais complexa. Realmente, cumprir o défice do pacto de estabilidade não é muito difícil, e para cortar não é preciso um ministro, basta um bom técnico de contas. A dificuldade está em saber aonde cortar as despesas sem que se entre em colapso pela deterioração dos serviços que se devem ao público. Sem que comecem a cair pontes, a incendiar os campos ou a morrer-se de calor nos hospitais.
Acredito que existe um problema de mentalidade na sociedade portuguesa, de certo modo uma visão infantil daquilo que se espera do País de uma forma passiva. O Estado depara-se hoje com um problema de sustentabilidade, que inclusivamente vê pôr em causa a própria estrutura e filosofia do Estado-Providência. Cumpre ao Estado saber interagir com a sociedade qual a forma de melhor aligeirar a sua presença naqueles sectores em que uma parceria público/privado é mais benéfica e rentável. No entanto, inevitavelmente, existem sectores sobre os quais o Estado deve manter uma presença mais ou menos forte, porque os objectivos que lhe são da responsabilidade salvaguardar podem não ser consonantes com os objectivos de rentabilidade do agente privado.
Torna-se assim necessário exigir uma maior produtividade dos serviços estatais, mas pode essa exigência aumentar se da parte dos agentes políticos não existir também um discurso de investimento na qualidade do Estado, nos meios, nos técnicos e nos recursos que lhe são postos à disposição? E conseguirão os partidos que compõem o nosso quadro político oferecer um projecto credível de reestruturação do Estado, sustentado economicamente com a realidade nacional sem deixar de pôr em causa a salvaguarda do bem comum? Receio que o discurso político dominante tenha seguido hoje por outros caminhos. Estamos a caminhar da falência do Estado-Providência para o que pode bem vir a ser a falência de um Estado-Neoliberal. Mas a que preço? Qual o custo de não pagar para a manutenção das causas públicas. Lamentavelmente, os erros repetem-se ano após ano e o país insiste em não aprender as lições que, pesadamente, se vão abatendo sobre todos nós.
Existe em Portugal um exemplo que é o paradigma de quanto custam as más decisões. Quando o IP5 foi executado, havia sido ponderada a hipótese de se constituir como um troço de auto-estrada em alternativa a um itinerário principal. A diferença de custos era elevada, uma vez que uma auto-estrada, para além dos custos inerentes à sua tipologia, possui vias mais largas e com limites de projecto muito mais reduzidos. Os raios de curvatura mínima são maiores e as inclinações da via são mais pequenas, o que significa uma maior suavidade do percurso, mas implicaria, para ser viável, a construção de um conjunto de infra-estruturas que adaptassem um tal traçado à topografia do local. A decisão de avançar com um itinerário principal permitiu poupar assim largos milhões de contos de investimento que na altura o teriam tornado praticamente irrealizável.
No entanto, olhados vinte anos depois, quanto custaram esses milhões de contos de poupança estatal, nos largos milhares de acidentes que ali tiveram lugar? Nos custos materiais resultantes directamente dos acidentes? Nos custos em cuidados de saúde dos atingidos, mortos e feridos? E depois, quanto custam os danos pessoais, emocionais, nas famílias das vítimas, os cônjuges, os pais ou os filhos, ou naqueles que ficam atingidos na sua integridade física para o resto da vida. E esse custo, como se repercute em crises, depressões e problemas sociais, em produtividade, nas suas vidas futuras?
Alguém sabe fazer estas contas? Alguém quer fazê-las? Quanto custou ao país, este Verão passado, anos de políticas de incúria e desinvestimento na protecção das florestas? Quanto custou a debilidade de um sistema de manutenção e fiscalização das pontes e infra-estruturas públicas, na noite de 4 de Março de 2001, quando um autocarro se lançou para o vazio das águas do Douro transportando mais de cinquenta pessoas? Quanto têm custado a nossa incúria colectiva, a nossa ignorância e má vontade colectivas?
É um problema cultural profundo, um problema que não se resolve no tempo de uma ou duas legislaturas. A solução depende de um investimento de décadas, talvez uma ou duas gerações, até que todos beneficiemos do resultado. Acredito plenamente que estes problemas têm solução e não são motivo para desânimo ou depressão nacional. No entanto, se não plantarmos as sementes do desenvolvimento, se não começarmos hoje a pagar o preço desse investimento nas gerações futuras, como podemos esperar colher no fim uma boa colheita. Deixaremos assim os nossos filhos à solta no mundo, certos de que lhes reservamos a inevitabilidade de um futuro menos feliz, menos estável e menos próspero.
|arquitectura|como|arte|
Quinta-feira
Notas:
Eu acredito que há duas dimensões separadas que coexistem na arquitectura. Uma é substantiva e refere-se à função, segurança e economia, e uma vez que a arquitectura acomoda a vivência humana, não pode ignorar estes elementos do real. No entanto, pode a arquitectura ser arquitectura com isto apenas? Uma vez que a arquitectura é uma forma de expressão humana, quando abandona as exigências da construção pura para entrar no domínio da estética, faz surgir a questão da arquitectura como arte.
(...) Originalmente, a construção humana oferecia o mais fundamental abrigo dos elementos naturais. Então, aquele arquitecto teórico da Roma antiga, Vitrúvio, propôs três princípios fundamentais da arquitectura – "utilitas", "venustas", "firmitas": "utilitas" refere-se à função (utilidade) e "firmitas" à força (firmeza), ambas são medidas do potencial arquitectónico, enquanto "venustas" (delicadeza ou beleza) reside na dimensão da imaginação.
A arquitectura moderna em que me tenho referenciado também retém a função (clara), a estrutura (exposta) e o material (bruto) como princípios – características que tendem a ser acedidas a partir da dimensão do real e do substantivo. A ficcionalidade ou imaginação, a outra dimensão, é omitida inteiramente. No entanto, Vitrúvio enfatizou a "venustas", por outras palavras atracção ou beleza, como uma necessidade para além da firmeza e da função. O mesmo é dizer que, também ele, considerou a dimensão ficcional ou a imaginação combinada com a dimensão real, como a síntese que afecta profundamente a espiritualidade humana. Desde a génese da arquitectura, o seu destino tem sido não poder ser fruto apenas da funcionalidade.
Excerto do discurso de Tadao Ando na aceitação do prémio Pritzker de 1995.
A arquitectura é uma arte, mas uma arte pública. A maior parte das vezes o público não escolhe a arquitectura como escolheria um museu para visitar. Assim, a arquitectura é-nos imposta na nossa vida quotidiana, nas nossas casas, nos lugares de trabalho. E por esta razão, o arquitecto-artista tem de responder pelo seu trabalho; ele deve uma explicação. É-nos constantemente exigido para nos exprimirmos. E isso é normal.
E porque a arquitectura é uma arte pública, os arquitectos, ao contrário de outros artistas, não gozam de uma liberdade criativa pessoal completa. É-lhes esperado que o seu trabalho contenha uma espécie de legitimidade, providenciando as respostas certas às necessidades de uma determinada época.
Excerto do discurso de Christian de Portzamparc na aceitação do prémio Pritzker de 1994.
Notas:
Eu acredito que há duas dimensões separadas que coexistem na arquitectura. Uma é substantiva e refere-se à função, segurança e economia, e uma vez que a arquitectura acomoda a vivência humana, não pode ignorar estes elementos do real. No entanto, pode a arquitectura ser arquitectura com isto apenas? Uma vez que a arquitectura é uma forma de expressão humana, quando abandona as exigências da construção pura para entrar no domínio da estética, faz surgir a questão da arquitectura como arte.
(...) Originalmente, a construção humana oferecia o mais fundamental abrigo dos elementos naturais. Então, aquele arquitecto teórico da Roma antiga, Vitrúvio, propôs três princípios fundamentais da arquitectura – "utilitas", "venustas", "firmitas": "utilitas" refere-se à função (utilidade) e "firmitas" à força (firmeza), ambas são medidas do potencial arquitectónico, enquanto "venustas" (delicadeza ou beleza) reside na dimensão da imaginação.
A arquitectura moderna em que me tenho referenciado também retém a função (clara), a estrutura (exposta) e o material (bruto) como princípios – características que tendem a ser acedidas a partir da dimensão do real e do substantivo. A ficcionalidade ou imaginação, a outra dimensão, é omitida inteiramente. No entanto, Vitrúvio enfatizou a "venustas", por outras palavras atracção ou beleza, como uma necessidade para além da firmeza e da função. O mesmo é dizer que, também ele, considerou a dimensão ficcional ou a imaginação combinada com a dimensão real, como a síntese que afecta profundamente a espiritualidade humana. Desde a génese da arquitectura, o seu destino tem sido não poder ser fruto apenas da funcionalidade.
Excerto do discurso de Tadao Ando na aceitação do prémio Pritzker de 1995.
A arquitectura é uma arte, mas uma arte pública. A maior parte das vezes o público não escolhe a arquitectura como escolheria um museu para visitar. Assim, a arquitectura é-nos imposta na nossa vida quotidiana, nas nossas casas, nos lugares de trabalho. E por esta razão, o arquitecto-artista tem de responder pelo seu trabalho; ele deve uma explicação. É-nos constantemente exigido para nos exprimirmos. E isso é normal.
E porque a arquitectura é uma arte pública, os arquitectos, ao contrário de outros artistas, não gozam de uma liberdade criativa pessoal completa. É-lhes esperado que o seu trabalho contenha uma espécie de legitimidade, providenciando as respostas certas às necessidades de uma determinada época.
Excerto do discurso de Christian de Portzamparc na aceitação do prémio Pritzker de 1994.
|if|not|now|
Quarta-feira
Conheces a sensação de fazer uma longa viagem de comboio. Adormecer na cabine ao som dos movimentos perpétuos e daquelas luzes repetidas. Depois acordar bem cedo na madrugada e caminhar pelos corredores a ver o amanhecer. Não te vais esquecer das cores daquela manhã, ou do cheiro metálico da carruagem, ou da face de alguém com que te cruzaste. Alguém que nunca viste antes mas que sorriu e disse: olá!
Na carruagem da frente viaja Jesse com um “eurorail”, percorrendo a Europa há várias semanas a caminho de Viena, a sua última paragem, antes de apanhar o avião de volta a casa para os Estados Unidos. Encontra Celine, uma jovem francesa, e começam a conversar. “Before Sunrise” (1995) é um filme tão natural que tudo parece verdadeiro e razoável. E conduz-te naquela viagem tão suavemente que não vais ver aproximar a dor daquele adeus inevitável.
“Antes Do Amanhecer” conta a história maravilhosa de duas pessoas com um laço e sem expectativas. Porque sabem desde o primeiro encontro que não existe uma possibilidade de manterem uma relação de longo prazo, partilham coisas que normalmente não diriam nem aos amigos. É um filme romântico, mas nunca cai nos lugares comuns próprios de um postal ilustrado de Viena. Em vez disso, mostra-te Viena como a experimentarias se lá estivesses. E mostra-te o amor, não como um sentimento fácil de digerir, mas como algo que pode entrar pela tua vida adentro e abaná-la de cima abaixo.
As escolhas que fazes a partir daí, bom, essas dependem de ti. E ainda hoje me pergunto que escolhas teriam feito Jesse e Celine...
Um dia saberemos...
Daydream, delusion, limousine, eyelash
Oh baby with your pretty face
Drop a tear in my wineglass
Look at those big eyes
See what you mean to me
Sweet-cakes and milkshakes
I'm delusion angel
I'm fantasy parade
I want you to know what I think
Don't want you to guess anymore
You have no idea where I came from
We have no idea where we're going
Latched in life
Like branches in a river
Flowing downstream
Caught in the current
I'll carry you
You'll carry me
That's how it could be
Don't you know me?
Don't you know me by now?
Notas:
Before Sunrise (1995) é realizado por Richard Linklater e interpretado por Ethan Hawke e Julie Delpy. Está em fase de pós-produção uma continuação intitulada If Not Now (2004). Pouco mais se sabe para além de que o argumento e realização são do próprio Linklater e as filmagens decorreram em Paris durante um período de apenas quinze dias.
Quero saber mais: Movies.com, Moviemaker.com.
Notas adicionais (2004-02-11):
O título provisório "If Not Now" foi alterado para o definitivo "Before Sunset".
Conheces a sensação de fazer uma longa viagem de comboio. Adormecer na cabine ao som dos movimentos perpétuos e daquelas luzes repetidas. Depois acordar bem cedo na madrugada e caminhar pelos corredores a ver o amanhecer. Não te vais esquecer das cores daquela manhã, ou do cheiro metálico da carruagem, ou da face de alguém com que te cruzaste. Alguém que nunca viste antes mas que sorriu e disse: olá!
Na carruagem da frente viaja Jesse com um “eurorail”, percorrendo a Europa há várias semanas a caminho de Viena, a sua última paragem, antes de apanhar o avião de volta a casa para os Estados Unidos. Encontra Celine, uma jovem francesa, e começam a conversar. “Before Sunrise” (1995) é um filme tão natural que tudo parece verdadeiro e razoável. E conduz-te naquela viagem tão suavemente que não vais ver aproximar a dor daquele adeus inevitável.
“Antes Do Amanhecer” conta a história maravilhosa de duas pessoas com um laço e sem expectativas. Porque sabem desde o primeiro encontro que não existe uma possibilidade de manterem uma relação de longo prazo, partilham coisas que normalmente não diriam nem aos amigos. É um filme romântico, mas nunca cai nos lugares comuns próprios de um postal ilustrado de Viena. Em vez disso, mostra-te Viena como a experimentarias se lá estivesses. E mostra-te o amor, não como um sentimento fácil de digerir, mas como algo que pode entrar pela tua vida adentro e abaná-la de cima abaixo.
As escolhas que fazes a partir daí, bom, essas dependem de ti. E ainda hoje me pergunto que escolhas teriam feito Jesse e Celine...
Um dia saberemos...
Daydream, delusion, limousine, eyelash
Oh baby with your pretty face
Drop a tear in my wineglass
Look at those big eyes
See what you mean to me
Sweet-cakes and milkshakes
I'm delusion angel
I'm fantasy parade
I want you to know what I think
Don't want you to guess anymore
You have no idea where I came from
We have no idea where we're going
Latched in life
Like branches in a river
Flowing downstream
Caught in the current
I'll carry you
You'll carry me
That's how it could be
Don't you know me?
Don't you know me by now?
Notas:
Before Sunrise (1995) é realizado por Richard Linklater e interpretado por Ethan Hawke e Julie Delpy. Está em fase de pós-produção uma continuação intitulada If Not Now (2004). Pouco mais se sabe para além de que o argumento e realização são do próprio Linklater e as filmagens decorreram em Paris durante um período de apenas quinze dias.
Quero saber mais: Movies.com, Moviemaker.com.
Notas adicionais (2004-02-11):
O título provisório "If Not Now" foi alterado para o definitivo "Before Sunset".
|também|quero|ir|
Segunda-feira
Somewhere, something incredible is waiting to be known.
Carl Sagan
Mars Exploration Rover Mission
NASA
Somewhere, something incredible is waiting to be known.
Carl Sagan
Mars Exploration Rover Mission
NASA
|portugal|deprimido|
Sexta-feira
Ouvimos tantas vezes dizer que o país anda deprimido que os portugueses parece que começaram a acreditar. Eu próprio me ponho a pensar na sociedade que estamos a construir e fico triste por me rever pouco no país que se espelha na comunicação social.
Aqui há uns anos vi um debate na BBC sobre o impacto da ciência na evolução da sociedade. Cerca de dez ou doze pessoas discutiam educadamente, ouviam-se, trocavam ideias. Por vezes alguém construía um argumento que não era necessariamente o da sua opinião, mas que utilizava para testar a ideia de um colega seu. Fiquei maravilhado ao ver que se podia fazer de advogado do diabo tão tranquilamente e sem que ninguém lhe apontasse uma caçadeira à cabeça.
Portugal é um país triste em que não se sabe discutir. Basta ver os debates televisivos para ver alguns doutos senhores a descarrilar na gritaria. Ficamos assim com estas discussões à portuguesa: fulano diz “A”, beltrano diz “B”. Fulano diz novamente “A”, mas desta vez de forma mais aguda. Beltrano reage “B” ruidosamente. Ninguém ouve o próximo. Ninguém parece dizer: repare, olhe que se “B”, então “C”... E como evitará o resultado “D”?
Ao ver os debates da Assembleia da República, este sentimento torna-se ainda mais doloroso. O verdadeiro debate de ideias é quase inexistente, quase sempre as partes tomando uma posição sectária irredutível, construindo os argumentos à medida do seu interesse próprio e ouvindo nenhum outro. O resultado é esta sensação de vivermos num país fictício. O país da política constrói-se à medida do que cada um quer ver e tornou-se mais virtual que a terra média.
Receio que vamos novamente assistir a tudo isto com a questão do aborto a regressar à ordem do dia. Gostaria de dizer à partida, para não manipular ninguém, que sou a favor da descriminalização do aborto. No entanto, reconheço que é possível construir uma argumentação plausível do lado contrário. Afirmaram os defensores da não descriminalização, na altura do referendo de 98, que o combate ao aborto deve ser realizado através duma aposta real na educação sexual e no acompanhamento familiar. Creio que isto merece a concordância de todos. No entanto, quando vejo os principais defensores políticos da criminalização a ignorar o problema do aborto real, mal a questão desaparece da esfera do nosso quadro jurídico, começo a sentir-me mal com a hipocrisia. Alguma vez vimos Bagão Félix ou Paulo Portas preocuparem-se com o problema do aborto clandestino em Portugal. Agora que estão numa posição de governo, alguma vez os vimos manifestar interesse em que se promova a educação sexual como forma de combater o aborto. Estarão satisfeitos? É que a mim parece-me que um país que insiste na criminalização tem a responsabilidade de promover uma política de combate ao aborto por outros meios. Ou ficamos satisfeitos por viver no país que se gaba de ter a legislação mais avançada do mundo, mesmo que tenha a realidade mais atrasada da Europa.
Mais hipócrita ainda é a posição de Durão Barroso. O nosso Primeiro Ministro afirma que o aborto é uma questão de consciência, mas como disse uma comentadora do jornal Público, não se importa que o país consagre uma lei penal para regular a consciência de cada cidadão. É a posição típica de uma certa cobardia nacional que prefere fugir às questões difíceis, obviamente partilhada pelos 68% de eleitores portugueses que preferiram ir à praia no dia do referendo.
Acredito sinceramente que a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez é a melhor forma de combater o problema real do aborto clandestino. Infelizmente não vivemos num mundo ideal, nunca viveremos numa realidade de aborto zero. Mas podemos viver num país onde se fazem muito menos abortos. Descriminalizando, o país ganha a responsabilidade de combater o problema socialmente, e dá às mulheres que desejem abortar a oportunidade de estarem envolvidas por um ambiente onde possam, por um lado, receber informação, e por outro, fazer a sua escolha acompanhadas e reflectindo sobre a decisão que desejam tomar.
Sobre estas e tantas outras questões nacionais, parece-me que a comunicação social se demitiu há muito do seu papel, deixando de ser um espaço de reflexão para se tornar numa máquina de inquietação. Mais, nos dias que correm, a fogueira da política é generosamente ateada pelos “media”. Veja-se agora o “grave problema” das cartas anónimas apensas ao processo da Casa Pia. Realmente, fico para aqui a pensar na importância do problema. Seja boa ou má a decisão de anexar as ditas cartas ao processo, a verdade é que elas têm a importância que cada um lhes quiser dar. O próprio processo de acusação dá-lhes a importância que elas merecem considerando-as totalmente irrelevantes.
Quem não as acha irrelevantes são os meios de comunicação social. Mal o processo foi aberto parece que já saltaram lá para dentro em busca de escandaleira... Toca de saltar cá para fora as ditas cartas, apimentadas com um ou dois bons nomes sonantes. E assim vive o país dos media e da política entretido. Inventa-se um “caso”, e depois a chuva de reacções e contra-reacções já dá para alimentar uns quantos telejornais. Por fim, em boa conclusão, vem um douto senhor jornalista qualquer dar uma lição de moral ao país e exigir seriedade e justiça. Ora bolas...
Notas:
Para informações úteis sobre o problema do aborto vale a pena visitar o site Doctor Ann (em inglês), da rede Teenage Health Freak.
Ouvimos tantas vezes dizer que o país anda deprimido que os portugueses parece que começaram a acreditar. Eu próprio me ponho a pensar na sociedade que estamos a construir e fico triste por me rever pouco no país que se espelha na comunicação social.
Aqui há uns anos vi um debate na BBC sobre o impacto da ciência na evolução da sociedade. Cerca de dez ou doze pessoas discutiam educadamente, ouviam-se, trocavam ideias. Por vezes alguém construía um argumento que não era necessariamente o da sua opinião, mas que utilizava para testar a ideia de um colega seu. Fiquei maravilhado ao ver que se podia fazer de advogado do diabo tão tranquilamente e sem que ninguém lhe apontasse uma caçadeira à cabeça.
Portugal é um país triste em que não se sabe discutir. Basta ver os debates televisivos para ver alguns doutos senhores a descarrilar na gritaria. Ficamos assim com estas discussões à portuguesa: fulano diz “A”, beltrano diz “B”. Fulano diz novamente “A”, mas desta vez de forma mais aguda. Beltrano reage “B” ruidosamente. Ninguém ouve o próximo. Ninguém parece dizer: repare, olhe que se “B”, então “C”... E como evitará o resultado “D”?
Ao ver os debates da Assembleia da República, este sentimento torna-se ainda mais doloroso. O verdadeiro debate de ideias é quase inexistente, quase sempre as partes tomando uma posição sectária irredutível, construindo os argumentos à medida do seu interesse próprio e ouvindo nenhum outro. O resultado é esta sensação de vivermos num país fictício. O país da política constrói-se à medida do que cada um quer ver e tornou-se mais virtual que a terra média.
Receio que vamos novamente assistir a tudo isto com a questão do aborto a regressar à ordem do dia. Gostaria de dizer à partida, para não manipular ninguém, que sou a favor da descriminalização do aborto. No entanto, reconheço que é possível construir uma argumentação plausível do lado contrário. Afirmaram os defensores da não descriminalização, na altura do referendo de 98, que o combate ao aborto deve ser realizado através duma aposta real na educação sexual e no acompanhamento familiar. Creio que isto merece a concordância de todos. No entanto, quando vejo os principais defensores políticos da criminalização a ignorar o problema do aborto real, mal a questão desaparece da esfera do nosso quadro jurídico, começo a sentir-me mal com a hipocrisia. Alguma vez vimos Bagão Félix ou Paulo Portas preocuparem-se com o problema do aborto clandestino em Portugal. Agora que estão numa posição de governo, alguma vez os vimos manifestar interesse em que se promova a educação sexual como forma de combater o aborto. Estarão satisfeitos? É que a mim parece-me que um país que insiste na criminalização tem a responsabilidade de promover uma política de combate ao aborto por outros meios. Ou ficamos satisfeitos por viver no país que se gaba de ter a legislação mais avançada do mundo, mesmo que tenha a realidade mais atrasada da Europa.
Mais hipócrita ainda é a posição de Durão Barroso. O nosso Primeiro Ministro afirma que o aborto é uma questão de consciência, mas como disse uma comentadora do jornal Público, não se importa que o país consagre uma lei penal para regular a consciência de cada cidadão. É a posição típica de uma certa cobardia nacional que prefere fugir às questões difíceis, obviamente partilhada pelos 68% de eleitores portugueses que preferiram ir à praia no dia do referendo.
Acredito sinceramente que a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez é a melhor forma de combater o problema real do aborto clandestino. Infelizmente não vivemos num mundo ideal, nunca viveremos numa realidade de aborto zero. Mas podemos viver num país onde se fazem muito menos abortos. Descriminalizando, o país ganha a responsabilidade de combater o problema socialmente, e dá às mulheres que desejem abortar a oportunidade de estarem envolvidas por um ambiente onde possam, por um lado, receber informação, e por outro, fazer a sua escolha acompanhadas e reflectindo sobre a decisão que desejam tomar.
Sobre estas e tantas outras questões nacionais, parece-me que a comunicação social se demitiu há muito do seu papel, deixando de ser um espaço de reflexão para se tornar numa máquina de inquietação. Mais, nos dias que correm, a fogueira da política é generosamente ateada pelos “media”. Veja-se agora o “grave problema” das cartas anónimas apensas ao processo da Casa Pia. Realmente, fico para aqui a pensar na importância do problema. Seja boa ou má a decisão de anexar as ditas cartas ao processo, a verdade é que elas têm a importância que cada um lhes quiser dar. O próprio processo de acusação dá-lhes a importância que elas merecem considerando-as totalmente irrelevantes.
Quem não as acha irrelevantes são os meios de comunicação social. Mal o processo foi aberto parece que já saltaram lá para dentro em busca de escandaleira... Toca de saltar cá para fora as ditas cartas, apimentadas com um ou dois bons nomes sonantes. E assim vive o país dos media e da política entretido. Inventa-se um “caso”, e depois a chuva de reacções e contra-reacções já dá para alimentar uns quantos telejornais. Por fim, em boa conclusão, vem um douto senhor jornalista qualquer dar uma lição de moral ao país e exigir seriedade e justiça. Ora bolas...
Notas:
Para informações úteis sobre o problema do aborto vale a pena visitar o site Doctor Ann (em inglês), da rede Teenage Health Freak.
|equador|
Sexta-feira
Ao percorrer os livros que estão na minha mesa de cabeceira aproveito a oportunidade para salientar o acontecimento literário nacional deste ano que passou, a publicação de “Equador” do Miguel Sousa Tavares. Para além de ser um dos mais interessantes e lúcidos jornalistas portugueses, veio enriquecer o nosso património literário com um intenso livro que faz uma análise das particularidades da nossa postura colonial e um retrato do país cujas entrelinhas extravasam facilmente o (detalhadíssimo) contexto histórico em que se desenrola. Fora de polémicas, e porque os cães ladram mas a caravana passa, Equador foi um merecido sucesso de vendas que se deseja que continue agora em território internacional.
Obrigado Miguel.
Ao percorrer os livros que estão na minha mesa de cabeceira aproveito a oportunidade para salientar o acontecimento literário nacional deste ano que passou, a publicação de “Equador” do Miguel Sousa Tavares. Para além de ser um dos mais interessantes e lúcidos jornalistas portugueses, veio enriquecer o nosso património literário com um intenso livro que faz uma análise das particularidades da nossa postura colonial e um retrato do país cujas entrelinhas extravasam facilmente o (detalhadíssimo) contexto histórico em que se desenrola. Fora de polémicas, e porque os cães ladram mas a caravana passa, Equador foi um merecido sucesso de vendas que se deseja que continue agora em território internacional.
Obrigado Miguel.
Terra dos Homens
E eis que me recordo, na derradeira página deste livro, desses burocratas envelhecidos que nos serviram de comitiva na madrugada do primeiro correio, quando preparávamos a nossa transformação em homens, porque havíamos tido a sorte de ser escolhidos. Não é que eles não fossem semelhantes a nós, mas ignoravam em absoluto que estavam famintos.
Há gente de mais que se deixa dormir.
Aqui há anos, no decorrer de prolongada viagem de caminho de ferro, apeteceu-me visitar essa pátria em marcha na qual eu me fechara por três dias, por três dias prisioneiro desse ruído de calhaus rolados pelo mar, e levantei-me. Por volta da uma hora da manhã percorri o comboio de lés a lés. As carruagens-cama estavam vazias. Vazias estavam as carruagens de primeira.
Mas as carruagens de terceira abrigavam centenas de operários polacos despedidos de França e que regressavam à sua Polónia. E eu percorria os corredores de ponta a ponta passando por cima de corpos. Parei para observar: de pé, à luz das lampadazinhas eléctricas, distinguia nesse vagão sem compartimentos, e que se assemelhava a uma camarata que tresandava a caserna ou a esquadra de polícia, toda uma população confusa e agitada pelos movimentos do rápido. Todo um povo mergulhado em pesadelos e que regressava à sua miséria. Grandes cabeças rapadas bamboleavam-se na madeira dos assentos. Homens, mulheres, crianças, todos se voltavam dum lado para o outro, como que atacados por todos esses ruídos, todos esses solavancos que os ameaçavam no seu letargo. Não tinham achado a hospitalidade de um bom sono.
E eis que eles me pareciam ter perdido parte da sua condição humana, sacudidos dum extremo ao outro da Europa pelas correntes económicas, arrancados à casinha do Norte, ao jardim minúsculo, aos três vasos de gerânio que eu vira outrora nas janelas dos mineiros polacos. Haviam reunido somente os utensílios de cozinha, os cobertores e as cortinas, em embrulhos mal atados e rasgados por hérnias. Mas tudo o que haviam acariciado ou atraído, tudo o que tinham conseguido domesticar em quatro ou cinco anos de permanência em França, o gato, o cão e o gerânio, haviam sido obrigados a sacrificar e não levavam consigo senão as baterias de cozinha.
Uma criança mamava numa mãe tão cansada que parecia adormecida. A vida transmitia-se no absurdo e na desordem dessa viagem. Eu considerei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo curvado no sono desconfortável, comprimido no fato de trabalho, feito de altos e baixos. O homem fazia lembrar um montão de argila. Assim, despojos informes carregam à noite os bancos dos mercados. E eu pensei: o problema não reside de maneira alguma nesta miséria, nesta imundície, nem nesta fealdade. Mas este mesmo homem e esta mesma mulher um dia conheceram-se e o homem certamente sorriu à mulher e por certo depois do trabalho trouxe-lhe flores. Tímido e desajeitado, tremia talvez à ideia de se ver repelido. A mulher, porém, por garridice natural, a mulher segura da sua graça, divertia-se porventura a inquietá-lo. E o outro, que hoje não é mais que uma máquina de cavar ou de martelar, experimentava desse modo uma angústia deliciosa no coração. O mistério está em que eles se tivessem tornado nestes volumes de argila. Em que terrível molde foram metidos e por ele marcados como por uma máquina de embutir? Um animal envelhecido conserva a sua graça. Por que razão este belo barro humano se estragou?
E eu prossegui na minha viagem por entre este povo cujo sono era turvo como um prostíbulo. Pairava no ar um vago ruído feito de roncos roucos, de gemidos débeis, do raspar dos sapatorros dos que, maçados de um lado, experimentavam o outro. E sempre em surdina esse interminável acompanhamento de seixos revolvidos pelo mar.
Sentei-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher, o filho, bem ou mal, aninhara-se e dormia. Mas a dormir voltou-se e o seu rosto surgiu-me à luz da lampadazinha. Ah! que rosto adorável! Nascera daquele casal uma espécie de fruto dourado. No meio dessa grosseira manada nascera este prodígio de encanto e de graça. Debrucei-me sobre essa fronte lisa, sobre esse doce trejeito dos lábios, e disse de mim para mim: eis um rosto de músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Os principezinhos das histórias em nada se diferenciavam dele: protegido, resguardado, instruído, que não poderia ele vir a ser! Quando, por mutação, nasce nos jardins uma nova rosa, eis que todos os jardineiros se comovem. Isolam a rosa, cultivam a rosa, protegem-na. Mas para os homens não há jardineiro algum. Como os demais, Mozart menino será marcado pela máquina de embutir. Mozart fará as suas alegrias mais altas da música de pacotilha, na fedorentina dos cafés-concertos. Mozart está condenado.
E regressei à minha carruagem. E ia dizendo de mim para mim: estas pessoas quase não sentem a sua sorte. E aqui não é a caridade que me atormenta. Não se trata de nos enternecermos por causa duma chaga eternamente reaberta. Aqueles que a têm não a sentem. Quem é ferido aqui, quem é lesado, é qualquer coisa como a espécie humana e não o indivíduo. Creio pouco na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é de modo algum aquela miséria, onde afinal de contas nos instalamos do mesmo modo que na preguiça. Gerações de orientais vivem na imundície e folgam com isso. O que me atormenta não são aquelas covas, nem aquelas bossas, nem aquela fealdade. É um pouco, em qualquer desses homens, Mozart assassinado.
– Terra dos Homens, Antoine de Saint-Exupéry.
Há gente de mais que se deixa dormir.
Aqui há anos, no decorrer de prolongada viagem de caminho de ferro, apeteceu-me visitar essa pátria em marcha na qual eu me fechara por três dias, por três dias prisioneiro desse ruído de calhaus rolados pelo mar, e levantei-me. Por volta da uma hora da manhã percorri o comboio de lés a lés. As carruagens-cama estavam vazias. Vazias estavam as carruagens de primeira.
Mas as carruagens de terceira abrigavam centenas de operários polacos despedidos de França e que regressavam à sua Polónia. E eu percorria os corredores de ponta a ponta passando por cima de corpos. Parei para observar: de pé, à luz das lampadazinhas eléctricas, distinguia nesse vagão sem compartimentos, e que se assemelhava a uma camarata que tresandava a caserna ou a esquadra de polícia, toda uma população confusa e agitada pelos movimentos do rápido. Todo um povo mergulhado em pesadelos e que regressava à sua miséria. Grandes cabeças rapadas bamboleavam-se na madeira dos assentos. Homens, mulheres, crianças, todos se voltavam dum lado para o outro, como que atacados por todos esses ruídos, todos esses solavancos que os ameaçavam no seu letargo. Não tinham achado a hospitalidade de um bom sono.
E eis que eles me pareciam ter perdido parte da sua condição humana, sacudidos dum extremo ao outro da Europa pelas correntes económicas, arrancados à casinha do Norte, ao jardim minúsculo, aos três vasos de gerânio que eu vira outrora nas janelas dos mineiros polacos. Haviam reunido somente os utensílios de cozinha, os cobertores e as cortinas, em embrulhos mal atados e rasgados por hérnias. Mas tudo o que haviam acariciado ou atraído, tudo o que tinham conseguido domesticar em quatro ou cinco anos de permanência em França, o gato, o cão e o gerânio, haviam sido obrigados a sacrificar e não levavam consigo senão as baterias de cozinha.
Uma criança mamava numa mãe tão cansada que parecia adormecida. A vida transmitia-se no absurdo e na desordem dessa viagem. Eu considerei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo curvado no sono desconfortável, comprimido no fato de trabalho, feito de altos e baixos. O homem fazia lembrar um montão de argila. Assim, despojos informes carregam à noite os bancos dos mercados. E eu pensei: o problema não reside de maneira alguma nesta miséria, nesta imundície, nem nesta fealdade. Mas este mesmo homem e esta mesma mulher um dia conheceram-se e o homem certamente sorriu à mulher e por certo depois do trabalho trouxe-lhe flores. Tímido e desajeitado, tremia talvez à ideia de se ver repelido. A mulher, porém, por garridice natural, a mulher segura da sua graça, divertia-se porventura a inquietá-lo. E o outro, que hoje não é mais que uma máquina de cavar ou de martelar, experimentava desse modo uma angústia deliciosa no coração. O mistério está em que eles se tivessem tornado nestes volumes de argila. Em que terrível molde foram metidos e por ele marcados como por uma máquina de embutir? Um animal envelhecido conserva a sua graça. Por que razão este belo barro humano se estragou?
E eu prossegui na minha viagem por entre este povo cujo sono era turvo como um prostíbulo. Pairava no ar um vago ruído feito de roncos roucos, de gemidos débeis, do raspar dos sapatorros dos que, maçados de um lado, experimentavam o outro. E sempre em surdina esse interminável acompanhamento de seixos revolvidos pelo mar.
Sentei-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher, o filho, bem ou mal, aninhara-se e dormia. Mas a dormir voltou-se e o seu rosto surgiu-me à luz da lampadazinha. Ah! que rosto adorável! Nascera daquele casal uma espécie de fruto dourado. No meio dessa grosseira manada nascera este prodígio de encanto e de graça. Debrucei-me sobre essa fronte lisa, sobre esse doce trejeito dos lábios, e disse de mim para mim: eis um rosto de músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Os principezinhos das histórias em nada se diferenciavam dele: protegido, resguardado, instruído, que não poderia ele vir a ser! Quando, por mutação, nasce nos jardins uma nova rosa, eis que todos os jardineiros se comovem. Isolam a rosa, cultivam a rosa, protegem-na. Mas para os homens não há jardineiro algum. Como os demais, Mozart menino será marcado pela máquina de embutir. Mozart fará as suas alegrias mais altas da música de pacotilha, na fedorentina dos cafés-concertos. Mozart está condenado.
E regressei à minha carruagem. E ia dizendo de mim para mim: estas pessoas quase não sentem a sua sorte. E aqui não é a caridade que me atormenta. Não se trata de nos enternecermos por causa duma chaga eternamente reaberta. Aqueles que a têm não a sentem. Quem é ferido aqui, quem é lesado, é qualquer coisa como a espécie humana e não o indivíduo. Creio pouco na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é de modo algum aquela miséria, onde afinal de contas nos instalamos do mesmo modo que na preguiça. Gerações de orientais vivem na imundície e folgam com isso. O que me atormenta não são aquelas covas, nem aquelas bossas, nem aquela fealdade. É um pouco, em qualquer desses homens, Mozart assassinado.
– Terra dos Homens, Antoine de Saint-Exupéry.
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