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Sexta-feira



Ouvimos tantas vezes dizer que o país anda deprimido que os portugueses parece que começaram a acreditar. Eu próprio me ponho a pensar na sociedade que estamos a construir e fico triste por me rever pouco no país que se espelha na comunicação social.
Aqui há uns anos vi um debate na BBC sobre o impacto da ciência na evolução da sociedade. Cerca de dez ou doze pessoas discutiam educadamente, ouviam-se, trocavam ideias. Por vezes alguém construía um argumento que não era necessariamente o da sua opinião, mas que utilizava para testar a ideia de um colega seu. Fiquei maravilhado ao ver que se podia fazer de advogado do diabo tão tranquilamente e sem que ninguém lhe apontasse uma caçadeira à cabeça.
Portugal é um país triste em que não se sabe discutir. Basta ver os debates televisivos para ver alguns doutos senhores a descarrilar na gritaria. Ficamos assim com estas discussões à portuguesa: fulano diz “A”, beltrano diz “B”. Fulano diz novamente “A”, mas desta vez de forma mais aguda. Beltrano reage “B” ruidosamente. Ninguém ouve o próximo. Ninguém parece dizer: repare, olhe que se “B”, então “C”... E como evitará o resultado “D”?
Ao ver os debates da Assembleia da República, este sentimento torna-se ainda mais doloroso. O verdadeiro debate de ideias é quase inexistente, quase sempre as partes tomando uma posição sectária irredutível, construindo os argumentos à medida do seu interesse próprio e ouvindo nenhum outro. O resultado é esta sensação de vivermos num país fictício. O país da política constrói-se à medida do que cada um quer ver e tornou-se mais virtual que a terra média.
Receio que vamos novamente assistir a tudo isto com a questão do aborto a regressar à ordem do dia. Gostaria de dizer à partida, para não manipular ninguém, que sou a favor da descriminalização do aborto. No entanto, reconheço que é possível construir uma argumentação plausível do lado contrário. Afirmaram os defensores da não descriminalização, na altura do referendo de 98, que o combate ao aborto deve ser realizado através duma aposta real na educação sexual e no acompanhamento familiar. Creio que isto merece a concordância de todos. No entanto, quando vejo os principais defensores políticos da criminalização a ignorar o problema do aborto real, mal a questão desaparece da esfera do nosso quadro jurídico, começo a sentir-me mal com a hipocrisia. Alguma vez vimos Bagão Félix ou Paulo Portas preocuparem-se com o problema do aborto clandestino em Portugal. Agora que estão numa posição de governo, alguma vez os vimos manifestar interesse em que se promova a educação sexual como forma de combater o aborto. Estarão satisfeitos? É que a mim parece-me que um país que insiste na criminalização tem a responsabilidade de promover uma política de combate ao aborto por outros meios. Ou ficamos satisfeitos por viver no país que se gaba de ter a legislação mais avançada do mundo, mesmo que tenha a realidade mais atrasada da Europa.
Mais hipócrita ainda é a posição de Durão Barroso. O nosso Primeiro Ministro afirma que o aborto é uma questão de consciência, mas como disse uma comentadora do jornal Público, não se importa que o país consagre uma lei penal para regular a consciência de cada cidadão. É a posição típica de uma certa cobardia nacional que prefere fugir às questões difíceis, obviamente partilhada pelos 68% de eleitores portugueses que preferiram ir à praia no dia do referendo.
Acredito sinceramente que a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez é a melhor forma de combater o problema real do aborto clandestino. Infelizmente não vivemos num mundo ideal, nunca viveremos numa realidade de aborto zero. Mas podemos viver num país onde se fazem muito menos abortos. Descriminalizando, o país ganha a responsabilidade de combater o problema socialmente, e dá às mulheres que desejem abortar a oportunidade de estarem envolvidas por um ambiente onde possam, por um lado, receber informação, e por outro, fazer a sua escolha acompanhadas e reflectindo sobre a decisão que desejam tomar.
Sobre estas e tantas outras questões nacionais, parece-me que a comunicação social se demitiu há muito do seu papel, deixando de ser um espaço de reflexão para se tornar numa máquina de inquietação. Mais, nos dias que correm, a fogueira da política é generosamente ateada pelos “media”. Veja-se agora o “grave problema” das cartas anónimas apensas ao processo da Casa Pia. Realmente, fico para aqui a pensar na importância do problema. Seja boa ou má a decisão de anexar as ditas cartas ao processo, a verdade é que elas têm a importância que cada um lhes quiser dar. O próprio processo de acusação dá-lhes a importância que elas merecem considerando-as totalmente irrelevantes.
Quem não as acha irrelevantes são os meios de comunicação social. Mal o processo foi aberto parece que já saltaram lá para dentro em busca de escandaleira... Toca de saltar cá para fora as ditas cartas, apimentadas com um ou dois bons nomes sonantes. E assim vive o país dos media e da política entretido. Inventa-se um “caso”, e depois a chuva de reacções e contra-reacções já dá para alimentar uns quantos telejornais. Por fim, em boa conclusão, vem um douto senhor jornalista qualquer dar uma lição de moral ao país e exigir seriedade e justiça. Ora bolas...

Notas:
Para informações úteis sobre o problema do aborto vale a pena visitar o site Doctor Ann (em inglês), da rede Teenage Health Freak.

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