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O recente episódio das Torres de Alcântara, projecto da autoria de Siza Vieira, levantou um debate interessante. Julgo que a questão de fundo não se prende de todo com a qualidade (artística, estética) da proposta, ou do seu significado no contexto da cidade. Também me parece irrelevante se existe ou não um motivo de especulação fundiária da parte dos promotores do grupo Silveira. Persiste na mentalidade portuguesa (especialmente no estado) esta presunção de culpa em relação ao promotor privado, tratado como um bandido por um dos seus objectivos ser a rentabilidade do seu empreendimento, sem a qual nada se faria. O problema que levanta o projecto de Siza é questionar abertamente a validade (urbanística) dos instrumentos de planeamento em vigor. Levantar a questão não é crime nenhum e Siza tem todo o direito de o fazer como qualquer outro. Mas a questão não pode morrer no ar sem que se exponham as conclusões.
Uma das funções dos instrumentos de planeamento (Planos Directores Municipais, Planos de Urbanização, Planos de Pormenor) é sujeitar à discussão pública as decisões que os organismos públicos tomam em relação ao território. Infelizmente essa discussão raras vezes funciona. Os orgãos estatais, câmaras municipais, etc., quase sempre vêem a consulta pública como um entrave ao processo, uma arrelia burocrática, e não como um momento importante para divulgar e questionar as decisões de planeamento que se estão a tomar. No entanto, para o bem ou para o mal, quando aprovados, os planos têm valor legal e garantem (?) regras de igualdade perante todos os cidadãos.
Analisemos então o caso de Alcântara. Quando o PDM define que a altura máxima dos edifícios para aquela zona é de oito pisos, está a impor uma regra igual para todos os cidadãos que ali queiram edificar. Pode questionar-se se os oito pisos têm alguma validade urbanística, se daí resulta uma boa imagem de cidade, se existiriam formas mais interessantes de fazer cidade com mais ou menos altura dos edifícios. Mas, repito, para o bem ou para o mal, se essa discussão e as conclusões daí resultantes não se fizerem no âmbito do planeamento, com que legitimidade se poderão fazer avulso, à vontade deste ou daquele promotor? Se se abrir uma excepção para o caso das Torres de Alcântara com que argumento se impedirá o seu vizinho de promover uma proposta semelhante? E que cidade resultará da soma de excepções, por muito relevantes que pareçam, se não tiverem sido planeadas em conjunto e segundo um procedimento democrático (que os instrumentos de planeamento tentam, em princípio, garantir)?
É importante que se comece a discutir a cidade ao nível do planeamento, e essa discussão deve questionar até se a mecânica existente dos planos é funcional. É preciso lembrar que o conceito jurídico dos PDM, dos Planos de Urbanização e dos Planos de Pormenor foi criado num tempo em que não existiam os sistemas de informação geográfica e os instrumentos de análise que cada vez mais estão à disposição na área do planeamento territorial. Brevemente terá de se pensar em reformar a tipologia dos planos, o seu conteúdo e a sua forma e ajustá-los aos objectivos de fazer cidade. No entanto, por muito versáteis que se tornem, os planos serão sempre por natureza conservadores. Ao impor regras que evitam abusos por parte de alguns, os planos revestem-se de condicionantes que evitam a criatividade e o génio de outros. Por isso, essa criatividade, esses rasgos de génio, têm de ser trazidos para dentro da discussão dos planos onde se revestirão de legitimidade, em vez de se fazer passar ao lado deles de forma arbitrária e abrindo perigosos precedentes que outros não se coibirão de aproveitar.
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