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Quinta-feira

Impressiona verificar, por exemplo, como se discute com leviandade a questão da interrupção voluntária da gravidez, esquecendo os intervenientes que, mais uma vez, o problema se deve tratar antes: só um plano coerente de Educação para a Saúde o poderá, pelo menos, atenuar.

Escrevia Daniel Sampaio no Público de sábado passado sobre estudos recentes reveladores da grande falta de informação dos estudantes portugueses sobre questões como a Sida e outros aspectos da educação sexual. Denuncia depois a quase total ausência de uma verdadeira educação sexual nas escolas, pelo menos de forma organizada, e a necessidade de se investir definitivamente naquilo que chama de uma Educação para a Saúde.
Existe uma ideia feita, recorrentemente repetida, de que quando falamos de sexo os jovens já sabem tudo. É uma ideia tremendamente errada e infelizmente bastante perigosa. A verdade é que os miúdos não sabem quase nada, eles estão cheios de preconceitos. Basta fazer-lhes umas quantas perguntas sobre assuntos como a prostituição, a Sida ou até sobre preferências sexuais e ver as respostas que muitos atiram para o ar, os medos, as dúvidas e mesmo as intolerâncias.
As questões de que fala Daniel Sampaio deviam estar no centro do debate do aborto, porque é um debate que não pode ser feito sem se falar de educação e de cultura.
Fernando Rosas, conhecida figura do Bloco de Esquerda, dizia na SIC Mulher há algumas semanas que a lei em vigor contra o aborto era uma lei estúpida que devia ser alterada, acrescentando de passagem, julgo que de forma que nem ele terá ponderado bem, que era uma lei para a qual o Bloco apelava à desobediência civil, uma lei que as pessoas deviam recusar-se a cumprir. Apesar de me rever em grande parte no discurso que o Bloco de Esquerda tem relativamente a esta questão, julgo que a afirmação que ali foi feita é o tipo de mensagem que põe em causa o princípio do que se devia defender. Dizer que se apela à desobediência civil é esquecer que uma política de descriminalização do aborto tem de ser também uma política de combate ao aborto. Julgo que isto merece alguma reflexão.

O caso de uma mulher que ao longo da vida fez uma dezena de abortos, com honras de prime-time em telejornal, foi um retrato recente de ignorância e de miséria. Seja em que cenário for, o aborto não pode ser encarado como uma forma de contracepção ou uma opção de planeamento familiar. No entanto, não nos podemos contentar com a tranquilidade ideológica com que alguns se revêem nas posições de criminalização. Pode-se proibir o aborto mas não se pode proibir a ignorância, o medo, a realidade humana. Temos de perceber que vivemos num dos países da Europa com mais casos de gravidez na adolescência. Temos de perceber que Portugal é um país onde muitas famílias subsistem com grande repressão económica. É para esse país que é preciso legislar. Será justo criminalizar e prender mulheres que recorreram ao aborto num país que em nada investe na educação das pessoas, dotando-as de uma real capacidade de consciencializar e reflectir sobre os seus comportamentos, as suas escolhas e decisões.
Julgo que o verdadeiro confronto que existe na questão do aborto é entre aqueles que vêem a questão sobre um ponto de vista ideológico, uma questão de civilização e de princípios que atira o debate para um patamar de indiscutibilidade, e os que vêem a questão de um ponto de vista pragmático, da realidade social. A verdade é que, com criminalização ou sem ela, o aborto está aí, a acontecer todos os dias. É urgente que se comece a falar, de uma vez por todas, em educação sexual. Não é apenas uma educação em abstracto, uma espécie de biologia do sexo, mas uma verdadeira educação comportamental. Daniel Sampaio fala de uma Educação para a Saúde, que contemplasse o ensino e a reflexão sobre algumas questões essenciais da saúde dos jovens, por exemplo: alimentação, sono, higiene básica, questões posturais, exercício físico, saúde mental, etc., e na qual deveria ser incluída uma forte componente de educação para a sexualidade. Esta escolha de palavras, educação para a sexualidade, é uma expressão muito acertada para o que deve ser um conteúdo de ensino não só sobre o sexo num sentido estrito, mas algo que extravasa para os comportamentos individuais, o relacionamento interpessoal, as tolerâncias que temos para com a diferença, o egoísmo e a atenção ao “outro”, uma educação para a vida consciente. Aquilo de que necessitamos verdadeiramente é de uma revolução dos pensamentos que só pode resultar de um investimento nas pessoas. A urgência desse investimento extravasa em muito o problema do aborto, sendo fundamental para defender os jovens e mesmo os adultos do flagelo da depressão, da insegurança, de relacionamentos sustentados pela submissão lesiva do indivíduo, da alienação social, enfim, para saber sobreviver com consciência num mundo que por vezes nos rodeia de diversos perigos.

Receio que o contributo relevante que alguns dos mais lúcidos portugueses vão oferecendo ao país, como este exemplo de Daniel Sampaio e outros que, apesar de tudo, vão surgindo, se vá perdendo nas entrelinhas do dia a dia como sinais de fumo no horizonte que cedo se esfumam no esquecimento, sem uma reflexão consequente da parte dos media e sem obter qualquer eco na realidade política portuguesa.

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