Segunda-feira
Fins de Agosto de 1991.
Ficámos no segundo andar de um prédio meio desabitado com uma tasca no rés-de-chão. Algures nas ruas de San Polo, em pleno coração da cidade e fora do percurso dos turistas. Ali conhecemos a Veneza dos venezianos.
Juntavam-se ao fim de tarde na tasca para beber tintos e comer queijo enquanto jogavam jogos de taberna e cantavam trechos de ópera. Parecia o cenário de um filme, mas assim era e aquela cantoria ecoava pelas ruas estreitas e o fino canal, entrando pelas janelas abertas dos vizinhos.
O cheiro! Ah, o cheiro a humidade intensa e o calor quase insuportável de Verão. Mas era fantástico, era estar mesmo ali no meio do suor e da vida real. Os reflexos no tecto, os sons da calçada, uma senhora que regressa das compras, uma conversa incompreensível na mercearia, um rádio no terceiro andar, o gaiato que grita à janela...
Veneza é a cidade cosmopolita parada no tempo, do inevitável Palazzo Grassi e do Museu Guggenheim à beira rio, do mercado de legumes do Rialto e da Praia do Lido com relvado frente ao bungalô.
Regressei a Veneza passados dois anos e fiquei alojado com amigos no Albergue de Juventude da ilha de Giudecca. Com horário para entrar e para sair e cheiro a pés de inter-railers já não me pareceu a cidade do Corto Maltese.
Um dia hei-de voltar em busca da minha Veneza.
[imagem via]
[em cima do muro]
Quinta-feira
A história de uma mulher a viver o tempo emprestado de um coração doente. A história de um jovem que inventa um mundo de utopia para a sua mãe frágil. Adeus Lenine! é uma história de amor, dos laços de uma família que alimentam uma vida impossível, onde tudo pode acontecer.
Outubro de 1989. Em Berlim Oriental, nos dias que antecedem a queda do Muro, Christiane vê o seu filho Alex ser preso pela polícia durante uma manifestação de protesto. Aquela imagem vai despoletar o colapso do seu fraco coração, entrando num coma que durará vários meses.
Quando ela regressa milagrosamente à vida, Alex está determinado em trazer para casa a sua mãe mantendo-lhe a ilusão de que a Alemanha não se reunificou e que o regime comunista se mantém como dantes. Os meses que se seguem contam o tempo suspenso da luta de Alex, impelido a ocultar cada vez mais a realidade de um mundo em mudança lá fora.
O filme surpreende pelo tom agridoce de um drama com tons de comédia. Mas acima de tudo existe aqui uma afirmação política, fazendo uma curiosa análise da falência de um regime, ao mesmo tempo que a vaga da transformação capitalista traz consigo um individualismo indiferente a tudo o que se perde no caminho, toda uma cultura, todo um modo de ser. Adeus Lenine! percorre assim nessa mesma transição, suspenso no muro de uma vida efémera, da História que cai pesadamente sobre pessoas comuns. Sem ênfases panfletárias, o filme retrata essa complexidade da vida, inquietante da dúvida perante o futuro que chega.
Belíssima é a luta de Alex, criador da utopia da sua mãe, perseguindo os pequenos restos de uma cultura em rápido desaparecimento. Esses bens preciosos, o saco de café, o frasco de picles, os sinais do tempo que passou com os quais recria a doce mentira que rodeia o quarto da mãe. Mas a realidade é sempre mais forte que os sonhos e também o sonho Christiane vai ser posto à prova. Eis então que perante a inevitável queda do Muro, Alex vai reescrever a História numa passagem de delicioso burlesco, não o que foi, mas aquilo que poderia ter sido (e que o respeito pelos que não viram o filme me impede de revelar aqui).
A mentira de Alex acabará por cair como todas as mentiras, mas doce surpresa, é Christiane que agora esconde a verdade aceitando o sonho do filho como o seu. Alex nunca saberá o que a sua mãe descobriu, e que o amor silenciou. Para ele, a sua mãe terá para sempre vivido num mundo de sonho e utopia, que só o seu amor foi capaz de inventar.
O país que a minha mãe deixou para trás era um país em que ela acreditava; um país que nós mantivemos vivo até ao seu último suspiro; um país que nunca existiu naquela forma; um país que, na minha memória, sempre irei associar à minha mãe.
A história de uma mulher a viver o tempo emprestado de um coração doente. A história de um jovem que inventa um mundo de utopia para a sua mãe frágil. Adeus Lenine! é uma história de amor, dos laços de uma família que alimentam uma vida impossível, onde tudo pode acontecer.
Outubro de 1989. Em Berlim Oriental, nos dias que antecedem a queda do Muro, Christiane vê o seu filho Alex ser preso pela polícia durante uma manifestação de protesto. Aquela imagem vai despoletar o colapso do seu fraco coração, entrando num coma que durará vários meses.
Quando ela regressa milagrosamente à vida, Alex está determinado em trazer para casa a sua mãe mantendo-lhe a ilusão de que a Alemanha não se reunificou e que o regime comunista se mantém como dantes. Os meses que se seguem contam o tempo suspenso da luta de Alex, impelido a ocultar cada vez mais a realidade de um mundo em mudança lá fora.
O filme surpreende pelo tom agridoce de um drama com tons de comédia. Mas acima de tudo existe aqui uma afirmação política, fazendo uma curiosa análise da falência de um regime, ao mesmo tempo que a vaga da transformação capitalista traz consigo um individualismo indiferente a tudo o que se perde no caminho, toda uma cultura, todo um modo de ser. Adeus Lenine! percorre assim nessa mesma transição, suspenso no muro de uma vida efémera, da História que cai pesadamente sobre pessoas comuns. Sem ênfases panfletárias, o filme retrata essa complexidade da vida, inquietante da dúvida perante o futuro que chega.
Belíssima é a luta de Alex, criador da utopia da sua mãe, perseguindo os pequenos restos de uma cultura em rápido desaparecimento. Esses bens preciosos, o saco de café, o frasco de picles, os sinais do tempo que passou com os quais recria a doce mentira que rodeia o quarto da mãe. Mas a realidade é sempre mais forte que os sonhos e também o sonho Christiane vai ser posto à prova. Eis então que perante a inevitável queda do Muro, Alex vai reescrever a História numa passagem de delicioso burlesco, não o que foi, mas aquilo que poderia ter sido (e que o respeito pelos que não viram o filme me impede de revelar aqui).
A mentira de Alex acabará por cair como todas as mentiras, mas doce surpresa, é Christiane que agora esconde a verdade aceitando o sonho do filho como o seu. Alex nunca saberá o que a sua mãe descobriu, e que o amor silenciou. Para ele, a sua mãe terá para sempre vivido num mundo de sonho e utopia, que só o seu amor foi capaz de inventar.
O país que a minha mãe deixou para trás era um país em que ela acreditava; um país que nós mantivemos vivo até ao seu último suspiro; um país que nunca existiu naquela forma; um país que, na minha memória, sempre irei associar à minha mãe.
[preconceitos urbanos]
Sexta-feira
O texto que aqui publiquei na íntegra (ler A Bolha Imobiliária: Causa Ou Efeito?) da autoria do Arquitecto Nuno Portas levanta o véu a alguns dos preconceitos que enfermam as políticas de ordenamento do território em Portugal. A tese de Portas reflecte sobre a percepção generalizada (mas simplista) de que os problemas urbanísticos e ambientais do país se devem ao excesso de oferta imobiliária fomentado pela inconsciência dos municípios, que pelo sobredimensionamento das áreas urbanas dos planos que aprovam e pela permissividade do licenciamento procuram encher os cofres camarários. Mas o seu texto vai muito para além disto, aflorando alguns dos principais problemas do planeamento para os quais essa percepção pública e política não está sequer desperta. É sobre eles que gostava de contribuir com uma reflexão.
Os planos de ordenamento do território, nomeadamente os de nível local, têm por obrigação estabelecer um correcto equilíbrio entre as pressões promotoras do crescimento urbano e o respeito pelos valores ambientais e culturais do território. Não se pode nem deve escamotear as responsabilidades dos municípios nos erros de gestão urbanística que se vão cometendo por todo o país, que continuam a gerar massas urbanas amorfas que destroem qualquer resquício de qualidade de vida que aí se possa estabelecer. O problema é realmente grave é gera esse grau 0 de arquitectura onde residem as maiores densidades populacionais a quem é negada a possibilidade de usufruir de equipamentos essenciais, de espaços públicos, de lazer ou de desporto, enfim, todos aqueles que deveriam ser normais e acessíveis numa sociedade desenvolvida.
A pouco e pouco, os portugueses têm vindo a descobrir as insuficiências e deficiências da realidade urbana onde vivem. À medida que as necessidades básicas dos cidadãos vão sendo satisfeitas, vai igualmente nascendo uma consciencialização da comunidade urbana para com um nível mais elevado de preocupações: a qualidade do ar que se respira, a poluição sonora, o arranjo dos espaços exteriores, a ocupação dos tempos livres, a cultura erudita e o valor estético do ambiente urbano. Como escreveu Leonardo Benevolo, estas novas exigências contemporâneas exigem que se combine numa verdadeira síntese um sentido de responsabilidade social, ou seja, um empenhamento colectivo na produção de cidade, ao mesmo tempo que se salvaguarda o respeito pela privacidade e individualidade dos cidadãos.
Qualquer modelo de planeamento urbano passa por estabelecer, como diz Nuno Portas, regulamentos administrativos limitativos de direitos. A justificação para tal reside nessa exigência colectiva do fazer cidade. À luz da experiência e da doutrina do urbanismo europeu, não consigo sequer conceber outro modelo, ou aquilo a que o Lourenço chama de liberalismo no planeamento urbano . Será esse liberalismo a que se deu o nome de AUGI, Áreas Urbanas de Génese Ilegal, vulgo bairros clandestinos. Aqueles que se caracterizam por ruas com passeios de 50 centímetros quando os têm, ausência de equipamentos e zonas públicas, elevadas concentrações de construção habitacional e ausência de princípios urbanísticos ou de arquitectura? Também me parece que não.
Mas voltando ao texto original, essa afectação de regulamentos ao território não pode ser fixada ad eternum, seja pela vontade autoritária dos municípios ou pela incapacidade de alterar em tempo útil os planos quando estes estão desactualizados ou contrariam empreendimentos necessários com pressupostos que entretanto deixam de fazer sentido.
E porque estas realidades são diversas no âmbito do território, os termos e os princípios de regulação urbanística não podem ser idênticos para todo o país. Portas alerta para as diversas variáveis do problema, resumidas a uma frase lapidar: que nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida, tendo que oferecer várias frentes de desenvolvimento e capacidade para responder pela incerteza relativa ao aparecimento de novas necessidades no tecido urbano.
É por esse grau de incerteza que os mitos que alguns professam em relação ao crescimento urbano (mesmo quando fundados em boas intenções) acabam por ter efeitos perniciosos e contrários aos inicialmente pretendidos. O controle e restrição cega do aumento do perímetro das áreas urbanas é um exemplo desses mitos.
A acção municipal ao nível da oferta de solo urbano pressupõe a gestão equilibrada da extensão da área construída, por diversos factores. Poderia sublinhar vários como a racionalização das necessárias infra-estruturas e a viabilidade da sua gestão, a necessidade de integração e respeito ambiental ou ainda factores de interesse colectivo bastante diversos. Mas por outro lado, o planeamento municipal interfere directamente com o mercado privado do solo, da urbanização e da construção. Sendo o sector privado o actor principal das realizações urbanísticas, e actuando numa realidade concorrencial, torna-se necessário garantir uma folga de actuação, ou seja, um sobre-dimensionamento das áreas urbanizáveis que garanta prevenir situações de monopólio ou oligopólio.
E porque muitas vezes não existe sensibilidade nas autarquias para este facto, nem capacidade técnica para o abordar ao nível dos planos, acaba pela sua acção por desestabilizar a capacidade de auto-regulação do mercado e criar perversões de todo o sistema.
Não se podem assim criar mitos e diabolizar determinados fenómenos, construíndo uma doutrina legislativa à luz dos problemas dos grandes centros urbanos do país que são, ao mesmo tempo, os centros de decisão jurídico-política, pensando que o problema é idêntico ao nível das cidades médias ou do interior.
A inconsciência desta realidade dá azo a desvios entre a oferta de espaço urbanizável e o mercado real, ora promovendo um crescimento caótico (quando em excesso), ora provocando o aperto e a especulação do mercado (quando em falta). Estas distorções tornam difícil assegurar a defesa do interesse público tanto quando é necessário assegurar usos públicos ou regular os custos da oferta. De passagem, Nuno Portas refere que este problema tem de ser combatido através do reforço técnico e participativo das autarquias. Mas infelizmente, em Portugal, assistimos exactamente ao fenómeno inverso, ou seja, a uma desregulamentação da prática do planeamento urbanístico. Ora o exercício de atribuições e competências delegadas ao nível municipal exige cada vez mais a sua dotação em meios adequados, meios que no âmbito do planeamento urbanístico são essencialmente técnicos e humanos. Infelizmente não só não vemos aprofundar a competência técnica dos orgãos estatais como vemos esboroar qualquer sentido e entendimento do que é o serviço público e a causa pública neste sector.
No nosso país, a falta de capacidade técnica e conhecimento especializado é mais uma das carências do sistema estatal, acentuando a falta de compreensão do significado da missão pública e da responsabilidade que lhe está associada. Sem desenvolver processos contínuos de avaliação da realidade e mediação dos interesses activos na área do urbanismo, os decisores políticos parecem julgar que resolvem as carências existentes com doutrinas fundadas em percepções superficiais e parciais do problema. Este simplismo é e será o caminho para a insustentabilidade.
O texto que aqui publiquei na íntegra (ler A Bolha Imobiliária: Causa Ou Efeito?) da autoria do Arquitecto Nuno Portas levanta o véu a alguns dos preconceitos que enfermam as políticas de ordenamento do território em Portugal. A tese de Portas reflecte sobre a percepção generalizada (mas simplista) de que os problemas urbanísticos e ambientais do país se devem ao excesso de oferta imobiliária fomentado pela inconsciência dos municípios, que pelo sobredimensionamento das áreas urbanas dos planos que aprovam e pela permissividade do licenciamento procuram encher os cofres camarários. Mas o seu texto vai muito para além disto, aflorando alguns dos principais problemas do planeamento para os quais essa percepção pública e política não está sequer desperta. É sobre eles que gostava de contribuir com uma reflexão.
Os planos de ordenamento do território, nomeadamente os de nível local, têm por obrigação estabelecer um correcto equilíbrio entre as pressões promotoras do crescimento urbano e o respeito pelos valores ambientais e culturais do território. Não se pode nem deve escamotear as responsabilidades dos municípios nos erros de gestão urbanística que se vão cometendo por todo o país, que continuam a gerar massas urbanas amorfas que destroem qualquer resquício de qualidade de vida que aí se possa estabelecer. O problema é realmente grave é gera esse grau 0 de arquitectura onde residem as maiores densidades populacionais a quem é negada a possibilidade de usufruir de equipamentos essenciais, de espaços públicos, de lazer ou de desporto, enfim, todos aqueles que deveriam ser normais e acessíveis numa sociedade desenvolvida.
A pouco e pouco, os portugueses têm vindo a descobrir as insuficiências e deficiências da realidade urbana onde vivem. À medida que as necessidades básicas dos cidadãos vão sendo satisfeitas, vai igualmente nascendo uma consciencialização da comunidade urbana para com um nível mais elevado de preocupações: a qualidade do ar que se respira, a poluição sonora, o arranjo dos espaços exteriores, a ocupação dos tempos livres, a cultura erudita e o valor estético do ambiente urbano. Como escreveu Leonardo Benevolo, estas novas exigências contemporâneas exigem que se combine numa verdadeira síntese um sentido de responsabilidade social, ou seja, um empenhamento colectivo na produção de cidade, ao mesmo tempo que se salvaguarda o respeito pela privacidade e individualidade dos cidadãos.
Qualquer modelo de planeamento urbano passa por estabelecer, como diz Nuno Portas, regulamentos administrativos limitativos de direitos. A justificação para tal reside nessa exigência colectiva do fazer cidade. À luz da experiência e da doutrina do urbanismo europeu, não consigo sequer conceber outro modelo, ou aquilo a que o Lourenço chama de liberalismo no planeamento urbano . Será esse liberalismo a que se deu o nome de AUGI, Áreas Urbanas de Génese Ilegal, vulgo bairros clandestinos. Aqueles que se caracterizam por ruas com passeios de 50 centímetros quando os têm, ausência de equipamentos e zonas públicas, elevadas concentrações de construção habitacional e ausência de princípios urbanísticos ou de arquitectura? Também me parece que não.
Mas voltando ao texto original, essa afectação de regulamentos ao território não pode ser fixada ad eternum, seja pela vontade autoritária dos municípios ou pela incapacidade de alterar em tempo útil os planos quando estes estão desactualizados ou contrariam empreendimentos necessários com pressupostos que entretanto deixam de fazer sentido.
E porque estas realidades são diversas no âmbito do território, os termos e os princípios de regulação urbanística não podem ser idênticos para todo o país. Portas alerta para as diversas variáveis do problema, resumidas a uma frase lapidar: que nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida, tendo que oferecer várias frentes de desenvolvimento e capacidade para responder pela incerteza relativa ao aparecimento de novas necessidades no tecido urbano.
É por esse grau de incerteza que os mitos que alguns professam em relação ao crescimento urbano (mesmo quando fundados em boas intenções) acabam por ter efeitos perniciosos e contrários aos inicialmente pretendidos. O controle e restrição cega do aumento do perímetro das áreas urbanas é um exemplo desses mitos.
A acção municipal ao nível da oferta de solo urbano pressupõe a gestão equilibrada da extensão da área construída, por diversos factores. Poderia sublinhar vários como a racionalização das necessárias infra-estruturas e a viabilidade da sua gestão, a necessidade de integração e respeito ambiental ou ainda factores de interesse colectivo bastante diversos. Mas por outro lado, o planeamento municipal interfere directamente com o mercado privado do solo, da urbanização e da construção. Sendo o sector privado o actor principal das realizações urbanísticas, e actuando numa realidade concorrencial, torna-se necessário garantir uma folga de actuação, ou seja, um sobre-dimensionamento das áreas urbanizáveis que garanta prevenir situações de monopólio ou oligopólio.
E porque muitas vezes não existe sensibilidade nas autarquias para este facto, nem capacidade técnica para o abordar ao nível dos planos, acaba pela sua acção por desestabilizar a capacidade de auto-regulação do mercado e criar perversões de todo o sistema.
Não se podem assim criar mitos e diabolizar determinados fenómenos, construíndo uma doutrina legislativa à luz dos problemas dos grandes centros urbanos do país que são, ao mesmo tempo, os centros de decisão jurídico-política, pensando que o problema é idêntico ao nível das cidades médias ou do interior.
A inconsciência desta realidade dá azo a desvios entre a oferta de espaço urbanizável e o mercado real, ora promovendo um crescimento caótico (quando em excesso), ora provocando o aperto e a especulação do mercado (quando em falta). Estas distorções tornam difícil assegurar a defesa do interesse público tanto quando é necessário assegurar usos públicos ou regular os custos da oferta. De passagem, Nuno Portas refere que este problema tem de ser combatido através do reforço técnico e participativo das autarquias. Mas infelizmente, em Portugal, assistimos exactamente ao fenómeno inverso, ou seja, a uma desregulamentação da prática do planeamento urbanístico. Ora o exercício de atribuições e competências delegadas ao nível municipal exige cada vez mais a sua dotação em meios adequados, meios que no âmbito do planeamento urbanístico são essencialmente técnicos e humanos. Infelizmente não só não vemos aprofundar a competência técnica dos orgãos estatais como vemos esboroar qualquer sentido e entendimento do que é o serviço público e a causa pública neste sector.
No nosso país, a falta de capacidade técnica e conhecimento especializado é mais uma das carências do sistema estatal, acentuando a falta de compreensão do significado da missão pública e da responsabilidade que lhe está associada. Sem desenvolver processos contínuos de avaliação da realidade e mediação dos interesses activos na área do urbanismo, os decisores políticos parecem julgar que resolvem as carências existentes com doutrinas fundadas em percepções superficiais e parciais do problema. Este simplismo é e será o caminho para a insustentabilidade.
[a bolha imobiliária: causa ou efeito?]
Quinta-feira
Transcrevo na íntegra o excepcional texto do Arquitecto Nuno Portas publicado no Público sobre os mitos em torno do planeamento e crescimento das áreas urbanas. A tese é exemplar e um raro exemplo de análise das causas reais do problema, questionando os pressupostos e preconceitos vigentes na área do planeamento urbanístico sobre os quais poucos parecem querer reflectir.
O texto dá pano para mangas e merece uma séria reflexão. Escreverei algo mais sobre isto nos próximos dias. Para já fica o texto original. Os sublinhados são, evidentemente, da minha responsabilidade.
A Bolha Imobiliária: Causa Ou Efeito?
Desde há algum tempo que se vêm repetindo os artigos de opinião e as declarações políticas que convergem numa tese urbanística que parece politicamente correcta e a ponto de justificar alterações legislativas ou fiscais que estariam a ser preparadas. A tese é bem simples: os problemas urbanísticos e ambientais do país devem-se à chamada "bolha", ao excesso de oferta imobiliária, sendo que esse desperdício de solos, infra-estruturas e energia seria fomentado pela inconsciência dos municípios, através do sobredimensionamento dos planos que aprovam e da permissividade do licenciamento com que enchem os cofres camarários (e, quem sabe, as bolsas dos licenciadores).
Mas a tese é simplista: uma coisa é constatar a existência da "bolha"; outra é afirmar que a solução começa por retirar aos municípios as receitas fiscais associadas ao licenciamento, como castigo pela sua voracidade.
Em primeiro lugar, temos que nos pôr de acordo sobre o conceito de "imobiliário" (sobretudo de "construção de nova urbanização") que num dado momento possa ser considerado como desnecessário ou excessivo pela administração central ou local, de forma objectiva, transparente e não discricionária - isto é, que possa ser objecto de um regulamento administrativo limitativo de direitos. A nossa experiência diz-nos que, à luz dos conhecimentos presentes, neste e noutros países europeus, tal limite quantitativo não pode ser fixado de uma vez para sempre ("sempre" é a vigência do regulamento, seja plano, quotas ou outra forma). Podem prever-se metas; podem fazer-se discriminações positivas ou negativas que favoreçam ou refreiem determinadas tendências em relação a outras se localmente legitimadas, já que esta regulação quantitativa nunca poderá ser idêntica para todos os municípios ou regiões, quando se sabe que não se trata apenas de refrear a residência mas os serviços, as indústrias, os vários tipos de suporte do turismo, etc., com consequências óbvias para a modernização, o emprego, as mobilidades.
A tese "maltusiana" parte do pressuposto de que pode ser tecnicamente inquestionável a previsão quantitativa do crescimento numa dada região ou município com base na evolução demográfica de cada localidade, que, no último meio século, vem desafiando todos os cálculos de tipo mecanicista (por exemplo, população/famílias/casas) por uma razão principal que não posso aqui desenvolver: o crescimento ou transformação das cidades e vilas, cada vez menos separadas entre si, depende muito mais de factores de sociedade (modos e estilos de vida), das tendências de desenvolvimento económico (PIB, bacias de emprego, mobilidade dos agentes económicos, e peso do sector da construção, preferências do aforro e endividamento das famílias...) e da alteração das acessibilidades territoriais (contínuos espaciotemporais, enclaves, generalização do transporte individual...) do que dos saldos fisiológicos agregados.
Para além desta dificuldade, a tradução destas previsões em planos de usos do solo ainda é mais problemática: é que, ao contrário do que muitos pensam, não basta multiplicar metros quadrados ou número de fogos por um índice de ocupação, para estimar o solo urbanizável a prever num PDM. É sabido que a área edificada é apenas uma fracção do seu total, que inclui outras actividades, vias, espaços livres ou intersticiais, etc. Não tem, portanto, sentido dizer-se que os PDM do país, todos somados, dariam para dezenas de milhões de portugueses!
O que estes cálculos simplistas não têm em conta é que o que mais cresce (sobretudo com o PIB) é o espaço médio por habitante, porque aumentam as suas necessidades, as novas instalações das actividades e equipamentos, os espaços livres urbanos, as vias de comunicação e os estacionamentos, etc. E, para além disto tudo, nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida: é essencial para a sua própria viabilidade que ofereça para o médio prazo várias frentes de desenvolvimento, para além de outras razões relacionadas com a incerteza das preferências, com a redução dos riscos de entesouramento ou oligopólio por parte dos proprietários ou promotores beneficiados pelo "aperto" do zonamento.
Chegamos assim à parte crucial da tese: a da responsabilidade da gestão municipal no suposto excesso de urbanização. Parece-me, no mínimo, surpreendente que alguém conhecedor do terreno - economistas, urbanistas, juristas - possa pensar e afirmar que os municípios são os principais responsáveis pela "bolha imobiliária" para auferirem mais receitas, donde a necessidade de lhas retirar quanto antes.
É que se esse raciocínio estivesse certo, quereria dizer que os promotores imobiliários deste país construíam casas só para aquecer e encher os cofres das câmaras! Ora, se há milhares de fogos novos construídos todos os anos que estão por usar, é porque alguém os compra (em prazo aceitável pelo promotor da oferta) por outras razões que não a de ir para lá viver de imediato. E é este o fenómeno que importa perceber, para que se saiba onde e como pode ser atenuado com eficácia. Para isso, é necessário avaliar os projectos de futuro das famílias e as alternativas das aplicações das poupanças que se lhes oferecem - isto é, o lado da procura -, sem o que se não podem avaliar as tendências da oferta, hoje essencialmente privada, não só nas grandes aglomerações, mas também nas cidades de menor dimensão.
Acontece também que, para além do "imposto autárquico", as taxas que as autarquias cobram, proporcionais às superfícies construídas, seja nos centros infra-estruturados, seja nas periferias com maior défice delas, não lhes podem ser retiradas, mesmo que se prometa compensá-las no bolo dos impostos retidos ou transferidos para as autarquias, sabe-se lá com que garantias.
Por razões simples: para que a nova construção contribua, proporcionalmente às necessidades, para recuperar a infra-estrutura velha e completar a nova - o que exige uma recuperação parcial da mais-valia gerada no conjunto do município. Aliás, já há muito que se devia ter consignado a arrecadação dessas taxas para um fundo de urbanização, para que os agentes económicos e os utilizadores possam avaliar o seu destino. Além do mais, os valores em causa não são sequer de monta a levar os municípios a não aprovar o que já está previsto em plano (a questão seria outra nos casos de ilegalidade). E como é sabido, retirar essa taxa prevista e praticada desde a Lei das Finanças Locais, não contribuirá sequer para baixar os valores de venda dos imóveis novos ou recuperados.
Quanto a saber se é bem ou mal aplicada, é algo que se aplica igualmente a qualquer governo central e cuja apreciação pertence, em última análise, aos respectivos eleitores.
Mas o que nos parece claro é que castigar financeiramente os municípios não terá influência na quantidade do que se urbaniza ou reurbaniza e retarda a boa gestão pró-activa e, portanto, irremediavelmente negocial (quer se goste ou não) do urbanismo municipal.
Nas entrelinhas ou expressamente, quem tem levantado este problema convoca outros fantasmas urbanísticos que tem procurado exorcizar: o do ataque à urbanização periférica (estaria aí o pior da tal "bolha imobiliária") para defender o objectivo nobre do "retorno à cidade ou ao centro", como se a periferia não fosse cidade e não pudesse ter centralidade(s). Esta ilusão é dispensável. Revitalizar os "centros" e melhorar as condições de vida nas "periferias" são acções interligadas e quem não perceber qual é a nova unidade territorial em que vivemos perde as duas. Mas esta é outra questão que passa pelo reforço técnico e participativo das autarquias, e por governos metropolitanos com legitimidade própria, que tratem (só) o que cada uma, isolada, não pode fazer. E não é substituível por medidas mágicas de engenharia fiscal, que parecem diabolizar as consequências sem querer conhecer as verdadeiras causas e, se necessário, actuar sobre elas.
[Nuno Portas, Arquitecto]
Transcrevo na íntegra o excepcional texto do Arquitecto Nuno Portas publicado no Público sobre os mitos em torno do planeamento e crescimento das áreas urbanas. A tese é exemplar e um raro exemplo de análise das causas reais do problema, questionando os pressupostos e preconceitos vigentes na área do planeamento urbanístico sobre os quais poucos parecem querer reflectir.
O texto dá pano para mangas e merece uma séria reflexão. Escreverei algo mais sobre isto nos próximos dias. Para já fica o texto original. Os sublinhados são, evidentemente, da minha responsabilidade.
A Bolha Imobiliária: Causa Ou Efeito?
Desde há algum tempo que se vêm repetindo os artigos de opinião e as declarações políticas que convergem numa tese urbanística que parece politicamente correcta e a ponto de justificar alterações legislativas ou fiscais que estariam a ser preparadas. A tese é bem simples: os problemas urbanísticos e ambientais do país devem-se à chamada "bolha", ao excesso de oferta imobiliária, sendo que esse desperdício de solos, infra-estruturas e energia seria fomentado pela inconsciência dos municípios, através do sobredimensionamento dos planos que aprovam e da permissividade do licenciamento com que enchem os cofres camarários (e, quem sabe, as bolsas dos licenciadores).
Mas a tese é simplista: uma coisa é constatar a existência da "bolha"; outra é afirmar que a solução começa por retirar aos municípios as receitas fiscais associadas ao licenciamento, como castigo pela sua voracidade.
Em primeiro lugar, temos que nos pôr de acordo sobre o conceito de "imobiliário" (sobretudo de "construção de nova urbanização") que num dado momento possa ser considerado como desnecessário ou excessivo pela administração central ou local, de forma objectiva, transparente e não discricionária - isto é, que possa ser objecto de um regulamento administrativo limitativo de direitos. A nossa experiência diz-nos que, à luz dos conhecimentos presentes, neste e noutros países europeus, tal limite quantitativo não pode ser fixado de uma vez para sempre ("sempre" é a vigência do regulamento, seja plano, quotas ou outra forma). Podem prever-se metas; podem fazer-se discriminações positivas ou negativas que favoreçam ou refreiem determinadas tendências em relação a outras se localmente legitimadas, já que esta regulação quantitativa nunca poderá ser idêntica para todos os municípios ou regiões, quando se sabe que não se trata apenas de refrear a residência mas os serviços, as indústrias, os vários tipos de suporte do turismo, etc., com consequências óbvias para a modernização, o emprego, as mobilidades.
A tese "maltusiana" parte do pressuposto de que pode ser tecnicamente inquestionável a previsão quantitativa do crescimento numa dada região ou município com base na evolução demográfica de cada localidade, que, no último meio século, vem desafiando todos os cálculos de tipo mecanicista (por exemplo, população/famílias/casas) por uma razão principal que não posso aqui desenvolver: o crescimento ou transformação das cidades e vilas, cada vez menos separadas entre si, depende muito mais de factores de sociedade (modos e estilos de vida), das tendências de desenvolvimento económico (PIB, bacias de emprego, mobilidade dos agentes económicos, e peso do sector da construção, preferências do aforro e endividamento das famílias...) e da alteração das acessibilidades territoriais (contínuos espaciotemporais, enclaves, generalização do transporte individual...) do que dos saldos fisiológicos agregados.
Para além desta dificuldade, a tradução destas previsões em planos de usos do solo ainda é mais problemática: é que, ao contrário do que muitos pensam, não basta multiplicar metros quadrados ou número de fogos por um índice de ocupação, para estimar o solo urbanizável a prever num PDM. É sabido que a área edificada é apenas uma fracção do seu total, que inclui outras actividades, vias, espaços livres ou intersticiais, etc. Não tem, portanto, sentido dizer-se que os PDM do país, todos somados, dariam para dezenas de milhões de portugueses!
O que estes cálculos simplistas não têm em conta é que o que mais cresce (sobretudo com o PIB) é o espaço médio por habitante, porque aumentam as suas necessidades, as novas instalações das actividades e equipamentos, os espaços livres urbanos, as vias de comunicação e os estacionamentos, etc. E, para além disto tudo, nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida: é essencial para a sua própria viabilidade que ofereça para o médio prazo várias frentes de desenvolvimento, para além de outras razões relacionadas com a incerteza das preferências, com a redução dos riscos de entesouramento ou oligopólio por parte dos proprietários ou promotores beneficiados pelo "aperto" do zonamento.
Chegamos assim à parte crucial da tese: a da responsabilidade da gestão municipal no suposto excesso de urbanização. Parece-me, no mínimo, surpreendente que alguém conhecedor do terreno - economistas, urbanistas, juristas - possa pensar e afirmar que os municípios são os principais responsáveis pela "bolha imobiliária" para auferirem mais receitas, donde a necessidade de lhas retirar quanto antes.
É que se esse raciocínio estivesse certo, quereria dizer que os promotores imobiliários deste país construíam casas só para aquecer e encher os cofres das câmaras! Ora, se há milhares de fogos novos construídos todos os anos que estão por usar, é porque alguém os compra (em prazo aceitável pelo promotor da oferta) por outras razões que não a de ir para lá viver de imediato. E é este o fenómeno que importa perceber, para que se saiba onde e como pode ser atenuado com eficácia. Para isso, é necessário avaliar os projectos de futuro das famílias e as alternativas das aplicações das poupanças que se lhes oferecem - isto é, o lado da procura -, sem o que se não podem avaliar as tendências da oferta, hoje essencialmente privada, não só nas grandes aglomerações, mas também nas cidades de menor dimensão.
Acontece também que, para além do "imposto autárquico", as taxas que as autarquias cobram, proporcionais às superfícies construídas, seja nos centros infra-estruturados, seja nas periferias com maior défice delas, não lhes podem ser retiradas, mesmo que se prometa compensá-las no bolo dos impostos retidos ou transferidos para as autarquias, sabe-se lá com que garantias.
Por razões simples: para que a nova construção contribua, proporcionalmente às necessidades, para recuperar a infra-estrutura velha e completar a nova - o que exige uma recuperação parcial da mais-valia gerada no conjunto do município. Aliás, já há muito que se devia ter consignado a arrecadação dessas taxas para um fundo de urbanização, para que os agentes económicos e os utilizadores possam avaliar o seu destino. Além do mais, os valores em causa não são sequer de monta a levar os municípios a não aprovar o que já está previsto em plano (a questão seria outra nos casos de ilegalidade). E como é sabido, retirar essa taxa prevista e praticada desde a Lei das Finanças Locais, não contribuirá sequer para baixar os valores de venda dos imóveis novos ou recuperados.
Quanto a saber se é bem ou mal aplicada, é algo que se aplica igualmente a qualquer governo central e cuja apreciação pertence, em última análise, aos respectivos eleitores.
Mas o que nos parece claro é que castigar financeiramente os municípios não terá influência na quantidade do que se urbaniza ou reurbaniza e retarda a boa gestão pró-activa e, portanto, irremediavelmente negocial (quer se goste ou não) do urbanismo municipal.
Nas entrelinhas ou expressamente, quem tem levantado este problema convoca outros fantasmas urbanísticos que tem procurado exorcizar: o do ataque à urbanização periférica (estaria aí o pior da tal "bolha imobiliária") para defender o objectivo nobre do "retorno à cidade ou ao centro", como se a periferia não fosse cidade e não pudesse ter centralidade(s). Esta ilusão é dispensável. Revitalizar os "centros" e melhorar as condições de vida nas "periferias" são acções interligadas e quem não perceber qual é a nova unidade territorial em que vivemos perde as duas. Mas esta é outra questão que passa pelo reforço técnico e participativo das autarquias, e por governos metropolitanos com legitimidade própria, que tratem (só) o que cada uma, isolada, não pode fazer. E não é substituível por medidas mágicas de engenharia fiscal, que parecem diabolizar as consequências sem querer conhecer as verdadeiras causas e, se necessário, actuar sobre elas.
[Nuno Portas, Arquitecto]
[uma ordem para quê ou para quem]
Quarta-feira
Em plena eleição dos Orgãos Nacionais da Ordem dos Arquitectos veio a actual presidente e candidata à re-eleição, Arqta. Helena Roseta, produzir um artigo intitulado Uma Ordem Para Quê?. O texto publicado no Jornal Público não chega a ser uma declaração de princípios mas tão só uma exposição de aparência idealista e bem intencionada que não responde, infelizmente, ao título do próprio texto.
Uma ordem para quê, afinal?
Talvez os arquitectos se sentissem motivados a participar mais activamente nas discussões internas da ordem se esta deixasse de ser a coutada de uns quantos notáveis e do seu apparatchik de leais subordinados – e já que estamos a falar de coutadas, basta olhar para o que é a Faculdade de Arquitectura de Lisboa para servir de exemplo daquilo que é o sinal dos tempos no Portugal contemporâneo. O fenómeno não é, de resto e como todos sabem, único ou exclusivo desta profissão. É, isso sim, reflexo da postura vigente e uma visão corporativista da acção política, determinada pela influência de grupos cuja prioridade reside na salvaguarda dos seus interesses e direitos adquiridos, sobre todos os outros.
Talvez a ordem pudesse começar por estabelecer com a sociedade civil um diálogo aberto, devolvendo ao saber público o melhor do nosso saber e das nossas preocupações. Em vez de clamar pela enésima vez pela demissão generalizada e insustentável dos poderes públicos em relação à arquitectura, seria mais útil criar canais de comunicação com o público e as estruturas de influência política, promovendo a cultura arquitectónica e sensibilizando para o poder que reside na arquitectura enquanto instrumento de transformação da realidade, do valor e da qualidade de vida que resulta do ambiente construído em que vivemos. Quem, mais que a Ordem, terá capacidade para o fazer?
A Ordem dos Arquitectos dirá que tem feito isso mesmo, sendo aliás uma das suas grandes prioridades e motivo de iniciativas. O debate em torno do Direito À Arquitectura, e nomeadamente a promoção do Projecto de Lei de Revogação (Parcial) do Decreto 73/73, será talvez o maior exemplo. (Nota para os leigos: o Decreto-Lei 73/73 trata-se de um decreto de 1973 que veio permitir que pessoas não qualificadas na área da arquitectura possam assinar e assumir o papel de responsável técnico em projectos de arquitectura).
Infelizmente, depressa esta discussão tem caído para dentro do umbigo dos arquitectos, ficando como sempre a falar para dentro. Expressões panfletárias como É tempo de dar o seu a seu dono são o exemplo claro de como não se está a fazer passar a mensagem a quem interessa. Evidentemente, existe um problema de percepção pública relativamente à importância do trabalho dos arquitectos. Se a maioria das pessoas acharia inaceitável ser alvo de uma análise médica por um não-médico, ou receber aconselhamento jurídico por um não-advogado, já muitos acham normal que quem lhes desenha a casa não seja arquitecto. Por isso mesmo, o que está em causa não pode depender da assunção de discursos panfletários do interesse próprio dos arquitectos, mas a criação de uma base social de apoio à arquitectura generalizada na sociedade, o que só acontecerá se nós próprios, enquanto classe, formos capazes de promover essa sensibilidade sem as habituais arrogâncias altivas que nos caracterizam.
A questão reside, efectivamente, no lema promovido por Helena Roseta: a promoção do reconhecimento do valor do trabalho da arquitectura junto dos poderes públicos e dos cidadãos (sob o lema Arquitectura Para Todos). Mas esse trabalho tem de depender de uma agenda específica, de um plano de acções concretas cuja dimensão e linguagem obtenham o desejado impacto junto da sociedade civil. E isso não depende de declarações de intenções mais ou menos líricas, dos sonhos e das utopias seja de quem for.
É nesta incapacidade de comunicar para fora dos seus interesses próprios que a ordem tem perdido a batalha, dentro e fora do seu grupo de associados. E por não me rever neste tipo de diálogo, voltarei a não votar na eleição dos Orgãos Nacionais da Ordem. Porque, independentemente da simpatia que me inspira este ou aquele candidato, não sinto que estas eleições tenham alguma coisa a ver com a minha vida e a daqueles que me rodeiam.
Em plena eleição dos Orgãos Nacionais da Ordem dos Arquitectos veio a actual presidente e candidata à re-eleição, Arqta. Helena Roseta, produzir um artigo intitulado Uma Ordem Para Quê?. O texto publicado no Jornal Público não chega a ser uma declaração de princípios mas tão só uma exposição de aparência idealista e bem intencionada que não responde, infelizmente, ao título do próprio texto.
Uma ordem para quê, afinal?
Talvez os arquitectos se sentissem motivados a participar mais activamente nas discussões internas da ordem se esta deixasse de ser a coutada de uns quantos notáveis e do seu apparatchik de leais subordinados – e já que estamos a falar de coutadas, basta olhar para o que é a Faculdade de Arquitectura de Lisboa para servir de exemplo daquilo que é o sinal dos tempos no Portugal contemporâneo. O fenómeno não é, de resto e como todos sabem, único ou exclusivo desta profissão. É, isso sim, reflexo da postura vigente e uma visão corporativista da acção política, determinada pela influência de grupos cuja prioridade reside na salvaguarda dos seus interesses e direitos adquiridos, sobre todos os outros.
Talvez a ordem pudesse começar por estabelecer com a sociedade civil um diálogo aberto, devolvendo ao saber público o melhor do nosso saber e das nossas preocupações. Em vez de clamar pela enésima vez pela demissão generalizada e insustentável dos poderes públicos em relação à arquitectura, seria mais útil criar canais de comunicação com o público e as estruturas de influência política, promovendo a cultura arquitectónica e sensibilizando para o poder que reside na arquitectura enquanto instrumento de transformação da realidade, do valor e da qualidade de vida que resulta do ambiente construído em que vivemos. Quem, mais que a Ordem, terá capacidade para o fazer?
A Ordem dos Arquitectos dirá que tem feito isso mesmo, sendo aliás uma das suas grandes prioridades e motivo de iniciativas. O debate em torno do Direito À Arquitectura, e nomeadamente a promoção do Projecto de Lei de Revogação (Parcial) do Decreto 73/73, será talvez o maior exemplo. (Nota para os leigos: o Decreto-Lei 73/73 trata-se de um decreto de 1973 que veio permitir que pessoas não qualificadas na área da arquitectura possam assinar e assumir o papel de responsável técnico em projectos de arquitectura).
Infelizmente, depressa esta discussão tem caído para dentro do umbigo dos arquitectos, ficando como sempre a falar para dentro. Expressões panfletárias como É tempo de dar o seu a seu dono são o exemplo claro de como não se está a fazer passar a mensagem a quem interessa. Evidentemente, existe um problema de percepção pública relativamente à importância do trabalho dos arquitectos. Se a maioria das pessoas acharia inaceitável ser alvo de uma análise médica por um não-médico, ou receber aconselhamento jurídico por um não-advogado, já muitos acham normal que quem lhes desenha a casa não seja arquitecto. Por isso mesmo, o que está em causa não pode depender da assunção de discursos panfletários do interesse próprio dos arquitectos, mas a criação de uma base social de apoio à arquitectura generalizada na sociedade, o que só acontecerá se nós próprios, enquanto classe, formos capazes de promover essa sensibilidade sem as habituais arrogâncias altivas que nos caracterizam.
A questão reside, efectivamente, no lema promovido por Helena Roseta: a promoção do reconhecimento do valor do trabalho da arquitectura junto dos poderes públicos e dos cidadãos (sob o lema Arquitectura Para Todos). Mas esse trabalho tem de depender de uma agenda específica, de um plano de acções concretas cuja dimensão e linguagem obtenham o desejado impacto junto da sociedade civil. E isso não depende de declarações de intenções mais ou menos líricas, dos sonhos e das utopias seja de quem for.
É nesta incapacidade de comunicar para fora dos seus interesses próprios que a ordem tem perdido a batalha, dentro e fora do seu grupo de associados. E por não me rever neste tipo de diálogo, voltarei a não votar na eleição dos Orgãos Nacionais da Ordem. Porque, independentemente da simpatia que me inspira este ou aquele candidato, não sinto que estas eleições tenham alguma coisa a ver com a minha vida e a daqueles que me rodeiam.
[big in japan]
Segunda-feira
Boa tarde, ou bom dia dependendo da localização geográfica!
Já há algum tempo que leio o seu blog e é de longe um dos meus preferidos principalmente pela inteligência e maturidade dos posts, para além da excelente escolha de temas. Parabéns!
O seu blog foi um dos motivos porque comecei o meu mas infelizmente não consigo escrever diariamente nele... Nem diária nem nunca diga-se de passagem!
Sou ainda uma estudante de arquitectura, neste momento a viver no Japão ao abrigo dum programa de intercâmbio UE-Japao. Este país é fascinante e gostava de ter a disciplina para escrever no blog para arrumar e partilhar ideias...
Adiante, só queria mandar mesmo dar-lhe os parabéns! Há alguém do outro lado!
Aqui tão longe sabe bem ler em português!
Obrigado, Sayonara,
Sara Godinho, uma leitora atenta
[via email]
Eu é que agradeço as palavras de incentivo. É sempre bom receber feedback, ainda para mais quando chega do outro lado do mundo. Deixo o meu blog aberto às suas aventuras inter-continentais se alguma vez resolver deixá-las por escrito. Mande um postal, mande uma fotografia, mande um yen, mas diga qualquer coisa...
Um abraço e a melhor sorte com o curso.
Boa tarde, ou bom dia dependendo da localização geográfica!
Já há algum tempo que leio o seu blog e é de longe um dos meus preferidos principalmente pela inteligência e maturidade dos posts, para além da excelente escolha de temas. Parabéns!
O seu blog foi um dos motivos porque comecei o meu mas infelizmente não consigo escrever diariamente nele... Nem diária nem nunca diga-se de passagem!
Sou ainda uma estudante de arquitectura, neste momento a viver no Japão ao abrigo dum programa de intercâmbio UE-Japao. Este país é fascinante e gostava de ter a disciplina para escrever no blog para arrumar e partilhar ideias...
Adiante, só queria mandar mesmo dar-lhe os parabéns! Há alguém do outro lado!
Aqui tão longe sabe bem ler em português!
Obrigado, Sayonara,
Sara Godinho, uma leitora atenta
[via email]
Eu é que agradeço as palavras de incentivo. É sempre bom receber feedback, ainda para mais quando chega do outro lado do mundo. Deixo o meu blog aberto às suas aventuras inter-continentais se alguma vez resolver deixá-las por escrito. Mande um postal, mande uma fotografia, mande um yen, mas diga qualquer coisa...
Um abraço e a melhor sorte com o curso.
[onde acaba um país]
Quinta-feira
Uma escola deserta é um templo de vidas antigas. São as vidas de um interior que morre esquecido, lá aonde o país acaba.
Onde o estado não existe e os políticos já não prometem, onde economistas não teorizam e sociólogos também não chegam, fora dos modelos e dos planos de papel, existem terras onde já não há país. Onde o calor de um corpo solitário não chega para aquecer o frio de Inverno que entra pelas frestas do mundo lá fora.
Na escola de um menino só, uma voz não chega para calar o som da chuva que cai. Esta é uma vida feita do silêncio da serra e da dureza das pedras. O Tiago não sabe ainda mas talvez venha a descobrir que nasceu numa terra onde não existe país. Ele não conta nas contas da democracia. Ele é o interior esquecido e inútil de um corpo sem futuro e sem sentido.
Talvez o país não sirva para acolher aos sonhos deste menino, sonhos demasiados grandes para um país de gente tão pequena. Talvez o menino da aldeia sonhe com pouco mais que um amigo para brincar nas horas mortas do recreio. Talvez o procure nessas horas passadas ao computador dentro dos mundos do sonho e dos jogos, monitorizado, abandonado, para sempre esquecido.
Porque abandona o país a sua própria terra. O que procura nas montanhas de cimento e nos rios de asfalto, na cidade em movimento erguida contra o silêncio do vento e das serras. Este é um país que foge do seu próprio silêncio e da verdade de si próprio.
Talvez tenhamos deixado de ser país há muito. Talvez tenham passado demasiados séculos da última vez em que nos erguemos num desígnio comum. E também aí, o destino era a partida e não a chegada. Um país de gente em busca de um sol que se põe no mar, lá, onde o país não chega.
Talvez o Tiago sonhe com o regresso dessa gente que partiu. De repente, ei-los todos ao longe voltando a casa, de regresso às aldeias, aos ribeiros e à eira. Ei-los de volta, novos e velhos enchendo a casa do povo, a escola e a taberna. Eis que todas as aldeias se enchem em festa, que cantam e dançam e a vida volta às ruas e às praças do sonho de um menino que sonha, lá onde o país não chega.
Uma escola deserta é um templo de vidas antigas. São as vidas de um interior que morre esquecido, lá aonde o país acaba.
Onde o estado não existe e os políticos já não prometem, onde economistas não teorizam e sociólogos também não chegam, fora dos modelos e dos planos de papel, existem terras onde já não há país. Onde o calor de um corpo solitário não chega para aquecer o frio de Inverno que entra pelas frestas do mundo lá fora.
Na escola de um menino só, uma voz não chega para calar o som da chuva que cai. Esta é uma vida feita do silêncio da serra e da dureza das pedras. O Tiago não sabe ainda mas talvez venha a descobrir que nasceu numa terra onde não existe país. Ele não conta nas contas da democracia. Ele é o interior esquecido e inútil de um corpo sem futuro e sem sentido.
Talvez o país não sirva para acolher aos sonhos deste menino, sonhos demasiados grandes para um país de gente tão pequena. Talvez o menino da aldeia sonhe com pouco mais que um amigo para brincar nas horas mortas do recreio. Talvez o procure nessas horas passadas ao computador dentro dos mundos do sonho e dos jogos, monitorizado, abandonado, para sempre esquecido.
Porque abandona o país a sua própria terra. O que procura nas montanhas de cimento e nos rios de asfalto, na cidade em movimento erguida contra o silêncio do vento e das serras. Este é um país que foge do seu próprio silêncio e da verdade de si próprio.
Talvez tenhamos deixado de ser país há muito. Talvez tenham passado demasiados séculos da última vez em que nos erguemos num desígnio comum. E também aí, o destino era a partida e não a chegada. Um país de gente em busca de um sol que se põe no mar, lá, onde o país não chega.
Talvez o Tiago sonhe com o regresso dessa gente que partiu. De repente, ei-los todos ao longe voltando a casa, de regresso às aldeias, aos ribeiros e à eira. Ei-los de volta, novos e velhos enchendo a casa do povo, a escola e a taberna. Eis que todas as aldeias se enchem em festa, que cantam e dançam e a vida volta às ruas e às praças do sonho de um menino que sonha, lá onde o país não chega.
[turning torso]
Terça-feira
Inspirado numa escultura de Santiago Calatrava, o Turning Torso é um projecto onde não se distingue quando acaba a arquitectura e começa a engenharia. O edifício maioritariamente habitacional encontra-se em plena construção na cidade de Malmo, na Suécia, estando prevista a sua conclusão para o Verão de 2005. A obra pode ser acompanhada a par e passo no site oficial.
Inspirado numa escultura de Santiago Calatrava, o Turning Torso é um projecto onde não se distingue quando acaba a arquitectura e começa a engenharia. O edifício maioritariamente habitacional encontra-se em plena construção na cidade de Malmo, na Suécia, estando prevista a sua conclusão para o Verão de 2005. A obra pode ser acompanhada a par e passo no site oficial.
[my brain hurts]
Terça-feira
O André e o BrainstormZ voltaram a contrariar a minha tese da defesa do papel social do estado e a insistir em não reconhecer a superioridade intelectual dos meus argumentos. Como se não bastasse, no blogue No Mundo, o CMF junta-se à festa e comenta o meu desagrado em ter sido rotulado de socialista pelo André, o que se tratou de um mal-entendido.
Perante isto, e uma vez que já não resolvemos isto com conversa, proponho-me a reunir uma quadrilha de tipos de esquerda para resolver isto à moda antiga e fazermos uma espera a estes liberais. VAMOS A ELES CAMARADAS!!!
A seguir, eis uma foto da inolvidável Daisy Duke dos Dukes Of Hazzard.
O André e o BrainstormZ voltaram a contrariar a minha tese da defesa do papel social do estado e a insistir em não reconhecer a superioridade intelectual dos meus argumentos. Como se não bastasse, no blogue No Mundo, o CMF junta-se à festa e comenta o meu desagrado em ter sido rotulado de socialista pelo André, o que se tratou de um mal-entendido.
Perante isto, e uma vez que já não resolvemos isto com conversa, proponho-me a reunir uma quadrilha de tipos de esquerda para resolver isto à moda antiga e fazermos uma espera a estes liberais. VAMOS A ELES CAMARADAS!!!
A seguir, eis uma foto da inolvidável Daisy Duke dos Dukes Of Hazzard.
[fim de semana]
Sexta-feira
You got a fast car
I want a ticket to anywhere
Maybe we make a deal
Maybe together we can get somewhere
Any place is better
Starting from zero got nothing to lose
Maybe we'll make something
Me, myself, I got nothing to prove
You got a fast car
I got a plan to get us out of here
Been working at the convenience store
Managed to save just a little bit of money
Won't have to drive too far
Just 'cross the border and into the city
You and I can both get jobs
And finally see what it means to be living
You see my old man's got a problem
He live with the bottle, that's the way it is
He says his body's too old for working
His body's too young to look like his
My mama went off and left him
She wanted more from life than he could give
I said "somebody's got to take care of him"
So I quit school and that's what I did
You got a fast car
Is it fast enough so we can fly away?
We gotta make a decision
Leave tonight or live and die this way
I remember we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
And I had a feeling I could be someone, be someone, be someone
You got a fast car
We go cruising to entertain ourselves
Still ain't got a job
And I work in a market as a checkout girl
I know things will get better
You'll find work and I'll get promoted
We'll move out of the shelter
Buy a bigger house and live in the suburbs
'Cause I remember we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
I had a feeling I could be someone, be someone, be someone
You got a fast car
And I got a job that pays all our bills
You stay out drinking late at the bar
See more of your friends than you do of your kids
I'd always hoped for better
Thought maybe together you and me would find it
We got no plans and ain't going nowhere
So take your fast car and keep on driving
'Cause I remember when we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
I had a feeling I could be someone, be someone, be someone
You got a fast car
Is it fast enough so you can fly away?
You gotta make a decision
Leave tonight or live and die this way
[Tracy Chapman, Fast Car]
You got a fast car
I want a ticket to anywhere
Maybe we make a deal
Maybe together we can get somewhere
Any place is better
Starting from zero got nothing to lose
Maybe we'll make something
Me, myself, I got nothing to prove
You got a fast car
I got a plan to get us out of here
Been working at the convenience store
Managed to save just a little bit of money
Won't have to drive too far
Just 'cross the border and into the city
You and I can both get jobs
And finally see what it means to be living
You see my old man's got a problem
He live with the bottle, that's the way it is
He says his body's too old for working
His body's too young to look like his
My mama went off and left him
She wanted more from life than he could give
I said "somebody's got to take care of him"
So I quit school and that's what I did
You got a fast car
Is it fast enough so we can fly away?
We gotta make a decision
Leave tonight or live and die this way
I remember we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
And I had a feeling I could be someone, be someone, be someone
You got a fast car
We go cruising to entertain ourselves
Still ain't got a job
And I work in a market as a checkout girl
I know things will get better
You'll find work and I'll get promoted
We'll move out of the shelter
Buy a bigger house and live in the suburbs
'Cause I remember we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
I had a feeling I could be someone, be someone, be someone
You got a fast car
And I got a job that pays all our bills
You stay out drinking late at the bar
See more of your friends than you do of your kids
I'd always hoped for better
Thought maybe together you and me would find it
We got no plans and ain't going nowhere
So take your fast car and keep on driving
'Cause I remember when we were driving, driving in your car
Speed so fast I felt like I was drunk
City lights lay out before us
And your arm felt nice wrapped 'round my shoulder
And I had a feeling that I belonged
I had a feeling I could be someone, be someone, be someone
You got a fast car
Is it fast enough so you can fly away?
You gotta make a decision
Leave tonight or live and die this way
[Tracy Chapman, Fast Car]
[ground zero]
Quinta-feira
[um]
Ground Zero. Este é o nome dado ao lugar vazio deixado no centro da cidade de Nova Iorque onde as torres gémeas do World Trade Center colapsaram depois do ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001.
A humanidade encontrou nesse dia o seu símbolo e o seu nome. Zero, ou perto de zero é o conhecimento humano das forças que motivam o comportamento humano individual, as dinâmicas sociais e a capacidade de as controlar. São essas as forças que motivaram os indivíduos por detrás dos eventos de 11 de Setembro. Desconhecidos e incontrolados, eles continuam a determinar o comportamento dos principais intervenientes dos nossos tempos.
Talvez o rumo determinante da América que hoje conhecemos tenha sido traçado pelo pós-segunda guerra mundial. Envolvida numa guerra fria e um processo crescente de militarização, lançou-se numa demanda expansionista de influência mundial contra o(s) comunismo(s). O processo de décadas transformou a economia militar e o armamento num pilar pesado do equilíbrio económico da América e da sustentação do modo de vida dos americanos.
Eis uma nação refém da sua própria estrutura de poder. Por isto dizia-me um amigo numa conversa ao serão que “ganhe Bush ou Kerry, quem ganha é a América”. Certamente, com Kerry a América não deixaria de ser uma superpotência dominadora e economicamente pressionante sobre o resto do mundo e muito particularmente sobre a Europa (ao nível financeiro, militar, científico, político, etc). O investimento militar e financeiro já colocado na invasão do Iraque tornaria impossível também a Kerry qualquer recuo da presença americana naquele país. Mas Kerry significaria o fim da influência política directa dos grupos económicos que têm determinado as decisões da administração Bush, indiferentes aos pesados custos que a sua política externa têm feito incidir sobre a sua própria população e o mundo.
[dois]
Esta fotografia foi tirada há exactamente uma semana numa manifestação popular de apoio à campanha de John Kerry no Wisconsin. A imagem tornou-se aos olhos de muitos um extraordinário sinal de esperança na mudança, entretanto perdida.
Apesar do desalento que se abate sobre todos os que alimentaram a ilusão de uma derrota de George Bush, é importante sermos capazes de olhar para além dos sentimentos e ver com maturidade e consciência aquilo que aconteceu. E o que aconteceu não se pode expressar em leituras simples.
Convém começar por olhar para os números: entre quase 115 milhões de eleitores votantes, mais de 55 milhões votaram na mudança – 3.7 milhões a menos dos que votaram em Bush. Tão importante como analisar as razões da sua vitória e as causas que mobilizaram o seu eleitorado é olhar também para estes 55 milhões de americanos que perderam, expondo a real fractura sociológica e política das “duas Américas”.
A América é um país extraordinário e cheio de contradições. As raízes fundadoras da cultura americana, tão bem expressas por Thomas Jefferson, estabeleceram em lei os princípios da democracia nos termos em que a conhecemos na sociedade contemporânea. Isto correspondeu a uma ruptura com todas as formas de governo até então conhecidas e impulsionou o difícil progresso em muitos temas sociais e humanos: da abolição da escravatura aos direitos das mulheres, do fim da perseguição religiosa à liberdade de expressão, da liberdade económica a tantas outras áreas da nossa vida.
Mas a grande construção americana é feita de contradições denunciadas por sintomas sociais que nos chocam e revoltam. Lutas de ódio racial, preconceito sexual, fanatismo religioso, posse de armas, pena de morte, eis alguns dos problemas ainda hoje latentes naquela sociedade.
Num país em crise económica, com mais desemprego, entregue a uma guerra com fim incerto, assolada pelo medo do terrorismo, venceu um candidato que tinha como principal ponto forte de campanha os “valores morais” (moral values). Apesar do discurso moderado de Kerry apelando à união dos americanos, é difícil acreditar que ela possa acontecer. Os 48% de eleitores que votaram no democrata não votaram apenas a favor de uma alternativa, votaram também contra a outra. Entregues à perplexidade de compreender o que aconteceu, dificilmente serão capazes de esbater o fosso que se tornou mais largo e visível nos últimos quatro anos e particularmente durante a campanha.
O medo ganhou o dia. O medo do terrorismo. O medo dos estrangeiros. O medo dos liberais. O medo dos gays.
O medo deles próprios.
[três]
Encruzilhada. Um homem promete atravessar o trilho da tempestade e dos perigos. Outro homem aponta a direcção de tempos melhores e um caminho de esperança. Os americanos decidiram seguir o primeiro homem, só porque garante ter o guarda-chuva maior.
Deus os abençoe.
[um]
Ground Zero. Este é o nome dado ao lugar vazio deixado no centro da cidade de Nova Iorque onde as torres gémeas do World Trade Center colapsaram depois do ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001.
A humanidade encontrou nesse dia o seu símbolo e o seu nome. Zero, ou perto de zero é o conhecimento humano das forças que motivam o comportamento humano individual, as dinâmicas sociais e a capacidade de as controlar. São essas as forças que motivaram os indivíduos por detrás dos eventos de 11 de Setembro. Desconhecidos e incontrolados, eles continuam a determinar o comportamento dos principais intervenientes dos nossos tempos.
Talvez o rumo determinante da América que hoje conhecemos tenha sido traçado pelo pós-segunda guerra mundial. Envolvida numa guerra fria e um processo crescente de militarização, lançou-se numa demanda expansionista de influência mundial contra o(s) comunismo(s). O processo de décadas transformou a economia militar e o armamento num pilar pesado do equilíbrio económico da América e da sustentação do modo de vida dos americanos.
Eis uma nação refém da sua própria estrutura de poder. Por isto dizia-me um amigo numa conversa ao serão que “ganhe Bush ou Kerry, quem ganha é a América”. Certamente, com Kerry a América não deixaria de ser uma superpotência dominadora e economicamente pressionante sobre o resto do mundo e muito particularmente sobre a Europa (ao nível financeiro, militar, científico, político, etc). O investimento militar e financeiro já colocado na invasão do Iraque tornaria impossível também a Kerry qualquer recuo da presença americana naquele país. Mas Kerry significaria o fim da influência política directa dos grupos económicos que têm determinado as decisões da administração Bush, indiferentes aos pesados custos que a sua política externa têm feito incidir sobre a sua própria população e o mundo.
[dois]
Esta fotografia foi tirada há exactamente uma semana numa manifestação popular de apoio à campanha de John Kerry no Wisconsin. A imagem tornou-se aos olhos de muitos um extraordinário sinal de esperança na mudança, entretanto perdida.
Apesar do desalento que se abate sobre todos os que alimentaram a ilusão de uma derrota de George Bush, é importante sermos capazes de olhar para além dos sentimentos e ver com maturidade e consciência aquilo que aconteceu. E o que aconteceu não se pode expressar em leituras simples.
Convém começar por olhar para os números: entre quase 115 milhões de eleitores votantes, mais de 55 milhões votaram na mudança – 3.7 milhões a menos dos que votaram em Bush. Tão importante como analisar as razões da sua vitória e as causas que mobilizaram o seu eleitorado é olhar também para estes 55 milhões de americanos que perderam, expondo a real fractura sociológica e política das “duas Américas”.
A América é um país extraordinário e cheio de contradições. As raízes fundadoras da cultura americana, tão bem expressas por Thomas Jefferson, estabeleceram em lei os princípios da democracia nos termos em que a conhecemos na sociedade contemporânea. Isto correspondeu a uma ruptura com todas as formas de governo até então conhecidas e impulsionou o difícil progresso em muitos temas sociais e humanos: da abolição da escravatura aos direitos das mulheres, do fim da perseguição religiosa à liberdade de expressão, da liberdade económica a tantas outras áreas da nossa vida.
Mas a grande construção americana é feita de contradições denunciadas por sintomas sociais que nos chocam e revoltam. Lutas de ódio racial, preconceito sexual, fanatismo religioso, posse de armas, pena de morte, eis alguns dos problemas ainda hoje latentes naquela sociedade.
Num país em crise económica, com mais desemprego, entregue a uma guerra com fim incerto, assolada pelo medo do terrorismo, venceu um candidato que tinha como principal ponto forte de campanha os “valores morais” (moral values). Apesar do discurso moderado de Kerry apelando à união dos americanos, é difícil acreditar que ela possa acontecer. Os 48% de eleitores que votaram no democrata não votaram apenas a favor de uma alternativa, votaram também contra a outra. Entregues à perplexidade de compreender o que aconteceu, dificilmente serão capazes de esbater o fosso que se tornou mais largo e visível nos últimos quatro anos e particularmente durante a campanha.
O medo ganhou o dia. O medo do terrorismo. O medo dos estrangeiros. O medo dos liberais. O medo dos gays.
O medo deles próprios.
[três]
Encruzilhada. Um homem promete atravessar o trilho da tempestade e dos perigos. Outro homem aponta a direcção de tempos melhores e um caminho de esperança. Os americanos decidiram seguir o primeiro homem, só porque garante ter o guarda-chuva maior.
Deus os abençoe.
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