Sinais de desregulamentação

Ainda não se vislumbram muitos detalhes sobre o novo projecto de “licenciamento na hora” que o governo pretende introduzir no âmbito do programa alargado de desburocratização da administração pública. Não se conhece a definição para “projectos menos complexos” nem os termos em que lhes será “dispensada a autorização dos municípios”. A solução a testar no concelho de Odivelas será certamente meritória mas qual poderá ser afinal o seu alcance?
É difícil sustentar que a solução dos problemas que enfermam a acção licenciadora do Estado se resolvam com algumas medidas pontuais. A falta de capacidade técnica e a incompreensão do que é o serviço público conduziu os cidadãos à descrença e ao cinismo. Não se trata apenas da acção do Estado com os cidadãos, muitas vezes é o próprio Estado contra o Estado, confrontando-se entidades e autoridades em lutas sem justificação de que resulta nada mais que improdutividade e júbilo para os activistas da inacção.
É por isto que vão ganhando legitimidade na opinião pública as vozes do nosso sector empresarial que reclamam uma redução nos custos e prazos na execução de processos. O impacto do mau funcionamento da administração na economia portuguesa é um dos sintomas mais conhecidos da nossa desvantagem competitiva. E no entanto as entidades continuam a comportar-se nos termos dos velhos paradigmas de sempre, alheias às consequências mas propalando-se como grandes paladinos na defesa do interesse público, por fim formatado a ideologia abstracta uma vez que o produto da sua acção de décadas é visivelmente nulo. Fazem-no, de resto, em desrespeito da lei, dos prazos e termos com que deviam pautar o seu relacionamento com os cidadãos.
É este tecido fértil à falência que é tão propício à desregulamentação, de que esta nova medida é apenas mais um sinal. É mais fácil seguir a via da implementação de pequenas medidas de cariz meramente jurídico, do que enfrentar a inércia institucional que torna difíceis as grandes mudanças. As instituições são feitas de pessoas, e tradicionalmente, as pessoas são reluctantes à mudança por receio dos seus efeitos. Em Portugal, venceu-se o medo de mudar por um discurso de ininterruptas reformas, cuja estaticidade revela bem a irracional preferência que temos pela situação existente. No Estado, a confiança no precedente é um lugar seguro; escondidos nos formalismos dos procedimentos, os funcionários tornam-se donos das suas regras. Neste tecido cultural, a cultura da crítica trabalha depressa para quebrar o espírito da inovação e do risco. É uma cultura restritiva, individualista e socialmente fraca. E no entanto, incapaz de produzir seja o que for, questiona porque não consegue os máximos resultados do mínimo investimento intelectual que coloca nos seus planos.
No que ao urbanismo diz respeito, os nossos doutrinadores poderão continuar agarrados à ideia melancólica de um ordenamento do território supervisionado pelo Estado, como sua incumbência e responsabilidade constitucionalmente atribuída. E no entanto, ele continuará a perder a sua capacidade de actuação indo a reboque da iniciativa privada, fruto da incapacidade em tornar-se criador de doutrina técnica e promotor de boas práticas. Primeiro com pequenas medidas, depois com a desregulamentação progressiva das suas funções. O interesse público, esse continuará reduzido a uma mera decoração para ilustrar preâmbulos de decretos-lei. Como já vem sendo há muito.

4 comentários:

  1. Se acrescentarmos a toda essa situação que a al. b) do n.º 1 do artigo 30 do DL 555/99 de 16.12 c/ alt. DL 177/2001 de 4.6 estipula um prazo máximo de 20 dias para a emissão do alvará de construção, quando se trate de edificação a erigir em loteamento, prazo esse que, além de não ser cumprido, é de todo desconhecido dos competentes serviços...

    Concluímos que o problema nem é tanto a lei em vigor, mas antes o seu não cumprimento.

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  2. Em vez de ser na hora, não bastaria aplicar a lei? Por exemplo, passar a aplicar a obrigação de responder a um requerimento ou licenciamento num prazo máximo de 30 dias?
    Bem sei que assim passariamos a ter 332 medidas...

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  3. Mais um excelente texto de antologia do Daniel.

    Não gosto muito quando se diz que a lei está bem, o país é que está mal.
    Quando muito que se diga que está tudo mal...
    Porque a lei só está bem se houver um país a acompanha-la - não existe um plano platónico das leis.

    Repare-se que há muita lei que funcionaria na perfeição se considerassemos uma vigilancia omnipresente e uma eficiencia de resposta fulminante...mas isso é utópico e ainda por cima é uma utopia má - pois o resultado tb não seria muito humano.

    As leis devem conter o mesmo tipo de esperteza saloia de quem se tenta aproveitar delas - porque isso é um dado espectável - tal como o individualismo (lembre-se a tese secular de Adam Smith).

    Concordo que a simples aplicação da lei existente seria um avanço mas acredito mais na visão do Daniel... isso só terá significativo se toda a estrutura que existe por trás não andar aos atropelos e consiga transmitir uma coerencia de planeamento e de visão social - em vez da visão egoísta.

    O que queremos é isso... não é que se consiga fazer o mesmo mais rápido.

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