Ter um blogue tem estas coisas boas, os pequenos gestos que fazem entrar a luz pelos nossos dias adentro. Obrigado Sara. Republico este texto para ti.
Tacteando o caminho
Em geometria descritiva usa-se a palavra charneira para descrever o eixo de rotação de um plano. A charneira é a linha de viragem de uma projecção, ou em sentido figurado, o momento em que a realidade se transforma.
Quando, em 1992, eu e o meu irmão planeámos viajar para o Nepal, vimo-nos empurrados pelo incrível apoio dos pais cuja motivação roçava a inconsciência. Nesses dias conversei com a minha prima Margarida que já lá tinha estado e nos havia inicialmente proposto a ideia da aventura. Ela contou-me como tudo aquilo era fantástico e diferente, o que tinha visto e o que devíamos fazer. No final da conversa teceu umas palavras sobre como, quando regressou, tudo lhe parecia estranho. O regresso tinha sido deprimente, tudo lhe parecia distante como se nada retivesse a mesma importância.
Não pude compreender aquilo e rapidamente o esqueci na densidade da viagem. A chegada a Nova Delhi de noite sem reservas, o ambiente sufocante, uma viagem de comboio rumo a norte até ao fim da linha, um autocarro pela monção e a passagem na fronteira fora de horas. O Nepal foi como devia ter estado à espera, estranho e fascinante como só podia ser aos olhos límpidos e inexperientes de dois jovens ocidentais.
A aventura que um dia espero contar aqui com o tempo devido e as fotografias entretanto guardadas numa pasta poeirenta, foram um tempo de charneira nas nossas vidas. Não o podíamos ver mas pudemos comparar nos nossos retratos, o antes e o depois. A experiência ficou guardada nos traços da cara como minúsculas marcas que escorreram junto do olhar e nas barbas por fazer que entretanto nos iam crescendo. E quando regressámos recordei as palavras da Margarida, pois também a mim tudo pareceu distante nesse regresso a Portugal. Não era o país que me desagradava, mas esta existência sem parâmetro de comparação que nos submerge num monte de futilidades diárias.
Esse tipo de sensação vamos perdendo com o passar dos dias, à medida que a lucidez se vai esbatendo na rotina do tempo. O que fica no fim é como um sonho quase esquecido, mas que nos diz no fundo da mente que algo não está certo como um pequeno alerta no prisma distorcido das percepções quotidianas.
A realidade é que o mundo é um lugar ambíguo onde é difícil cultivar grandes certezas. Ao pôr o pé fora da Europa pela primeira vez compreendemos que não era o mundo que estava lá fora mas antes nós que sempre viveramos num estranho aquário, ignorantes da nossa própria condição.
No Nepal, com a lucidez da distância de milhares de quilómetros, descobri pela primeira vez o que significa ser Português. De volta a Portugal, foi difícil não acabar por esquecê-lo. Nestes dias em que vamos tacteando o caminho sem conseguir ver o que espreita para lá do horizonte tenho tentado recordar aqueles longos dias de viagem num país longínquo, onde a lembrança do som das gaivotas junto ao mar ao pôr do sol me fazia perceber aquilo de que eu era feito. E olho à minha volta para um país de gente esquecida, ignorantemente insatisfeita com a sua falta de generosidade e maturidade.
Entretanto, dia a dia, vamos perdendo o tempo que passa, à espera de uma charneira nas nossas vidas.
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Este texto foi publicado em 10 de Fevereiro de 2005.
Olá! Desculpe a invasão! Que bom que tive a chance de ler o texto. Costumo publicar posts passados também. Precisamos tatear nossas estradas, nossos caminhos. Precisamos deixar marcas, para sabermos por onde voltar. Gostei bastante.
ResponderEliminar:)
ResponderEliminarobrigada pela gentileza.
"Temos que transcender os lugares que nos amarram" certo?
Li o texto na altura e foi um dos que me prenderam para sempre à barriga de um arquitecto. Eu também já tive algumas charneiras e é bom saber que não estamos sós neste sentimento de gente estrangeira no seu país.
ResponderEliminarObrigado por nos teres lembrado.
Um abraço.
(ontem passei pela tua terra, mas foi de fugida e nem entrei)
ZM
Compreendo perfeitamente porque é que a "Sushi Lover" volta tantas vezes a este texto, Daniel!...
ResponderEliminarÉ lindíssimo!
O teu blog merecia um prémio pela originalidade!
ResponderEliminarE continuo a voltar a este texto Daniel.
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