Dia do cão


Roadkill Family Album, Nigel Grimmer, 2003.

A ideia lançada por um conjunto de deputados para a promoção de um Dia do Cão poderia ter sido arremetida para o baú de tantas outras iniciativas de consequência irrelevante. Um dia destinado à questão do desprezo e crueldade para com os animais dificilmente mudará a mentalidade da maioria dos cidadãos deste país. O que surpreende não é tanto a proposta em si ou o seu possível alcance, mas o conjunto repetido de reacções que tem gerado em sua volta.
Opinião sintomática, infelizmente não isolada, a de Helena Matos disponível no Público de hoje. A colunista faz a caricatura habitual da causa da defesa dos direitos dos animais. Escreve:
O Dia do Cão é o reverso duma sociedade decadente, onde os cidadãos já estão a perder direitos e receiam profundamente pelo seu futuro mas onde as elites, incapazes de assumirem as suas responsabilidades no anunciado descalabro, procuram desesperadamente manter a ilusão do progresso. E nessa ilusão progressista nada brilha mais do que a expressão “mais direitos”.
Helena Matos é incapaz de vislumbrar o seu próprio olhar carregado de preconceitos, que toma pela realidade. Talvez lhe seja difícil imaginar que a elite dos membros de associações de defesa dos animais é maioritariamente composta por carolas de bolso curto. Prossegue misturando no saco toda a espécie de “causas ridículas”, pelas quais diagnostica a nossa triste existência contemporânea:
O Estado português, por enquanto, pode continuar entretido com os cães porque, no que à espécie humana diz respeito, falhou rotundamente(…).
A mensagem, de resto, anda de boca em boca não apenas na imprensa escrita mas também na blogosfera, com o Abrupto e o Bloguítica a darem o devido relevo do sentir nacional. A conclusão, extraída do seu embrulho crítico-jornalístico, é a do costume: os que se preocupam com os animais não tem mais nada que fazer da vida; “gostam mais dos animais do que das pessoas” e “com tanta gente a morrer à fome estes andam preocupados com os cães”.
Continuamos longe de perceber que a questão do respeito pelos animais se insere no mesmo tecido sociológico de que faz parte o desenvolvimento da consciência cívica; não estanque da “sociedade das pessoas”. É mais fácil escandalizarmo-nos com o Dia do Cão do que contextualizarmos a nossa realidade e concluir sobre o que ela diz de nós próprios. Longe estamos, decerto, de exemplos como o de Inglaterra, em que uma instituição como a RSPCA gere um orçamento anual de 80 milhões de libras sem apoio estatal, totalmente suportado pelo financiamento e patrocínio de privados e cidadãos independentes. A organização, que desenvolve uma extensa acção no terreno, na iniciativa política e na área educativa, dispõe de um corpo de inspectores próprios que dão seguimento a denúncias de maus-tratos e abandono de animais, sendo um caso exemplar do poder que pode residir na associação cívica gerida na base do lucro social.
Uma realidade longe, é certo, da portuguesa. Estamos, como os indicadores de desenvolvimento apontam, mais próximo da Grécia onde, em vésperas da realização dos últimos Jogos Olímpicos de Atenas, a administração pública promoveu a morte por envenenamento da grande maioria dos animais abandonados da cidade.
Em Portugal o Dia do Cão continuará bem longe das consciências. Afinal aqui, ao que se vê, todos são já dias das bestas.

15 comentários:

  1. Muito obrigada pelo seu link!
    Um abraço amigo,
    Daniela

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  2. Fotografia espantosa e texto à mesma altura.

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  3. Obrigado pelo texto.
    Uma pessoa pensa que os valores civilizacionais vêm com a educação e ficamos de boca aberta a ler o que estas pessoas escrevem. Talvez seja o reflexo da tal lenga-lenga do estado miserável da nossa educação, que eu não sei se acredite totalmente.

    Acho que afinal não é educação. A civilização anda para a frente com base numa massa crítica de pessoas com determinados valores. Parece que a evolução civilizacional de Portugal está estagnada até que ninguém morra de fome. Como os mesmos que impõem esta fasquia para andar para a frente, não me parece que, estejam a fazer algo para isso, ficaremos por aqui durante muito tempo.

    Sente-se. Vamos ter muito que esperar.

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  4. Há aqui uma questão que não me parece muito bem resolvida neste teu texto. É que se me parece que a questão da bondade para com os animais faz parte realmente de uma cultura de bondade, generosidade e partilha humanas que é bom fomentar, ressalta sobretudo o anacronismo com que a proposta é tomada, assim como a sua inutilidade. De facto, enquanto ouvimos falar sobre as vergonhosas (ou não?) alterações de lei sobre a docência em Portugal, questão importantíssima para o futuro da educação, enquanto estamos atentos às alterações económicas e para o desvio ideológico do nosso mundo (shift) para um cada vez maior liberalismo económico (com tudo o de bom e de mau que traz), com questões como as dos encerramentos de hospitais, de fábricas de automóveis, do monstro da função pública, etc, etc, ouvir pelo meio uma proposta para a criação do "dia do cão" é surreal.

    Atente-se que não defendo a sua estupidez. Mas a sua falta de timing. Num tempo de desesperança em que todo um povo se sente mergulhado, não é a coisa mais importante a fazer.

    Mais que levantar a dignidade dos cães, realmente preferiria que se perdesse tempo a levantar o moral dos portugueses.

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  5. Em completo desacordo com a posta do Daniel, "afino" pelo "coro" dos críticos da proposta.
    Criticar a proposta, o seu conteúdo ou o seu "sentido" de oportunidade, não faz dos "críticos" nenhumas "bestas"
    "Bestas" são os deputados de um país com o cu bem assente no parlamento e que tratam os seus concidadãos (condição de igualdade de que devem estar esquecidos...) como as bestas que não são.
    Mas pelos visto este assunto é muito mais importante do que o numero de crianças sequestradas e escravizadas pelos amorosos progenitores, a coserem sapatos nos fundos dos quintais!
    As comparações com Inglaterra são para quê?

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  6. As vossas opiniões parecem-me tão lógicas como achar que só se tem tempo para uma coisa na vida. Além de que parece-me que há muitas pessoas no sistema governativo, legislativo, fiscalizante, etc. Não é só um mouro que anda a tratar dos professores, do trabalho infantil, das maternidades e de tudo o resto. Ou aquela gente tem só um neurónio e portanto têm que andar todos juntos para fazer uma coisa de cada vez?

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  7. Não conheço concretamente a proposta que é referida neste post: até pode ser mais uma das iniciativas que levam à caridade de salão e do croquete...mas uma coisa é evidente: o discurso que os críticos levantam contra o projecto é da mais básica demagogia e comodismo - e não propõe nenhuma alternativa saudável.

    Aliás não se entende que tipo de programa político daria tal mentalidade...É fazer um ranking dos piores males da sociedade e tratá-los com toda a veemencia um a um por ordem de importância?
    Segundo a mesma concepção que se lixem os professores, os desempregados e a economia nacional enquanto houver problemas muito mais escandalosos como o trabalho infantil, a violência familiar e a criminalidade elevada.

    Aos que pensam desta forma pergunto: Concerteza só começaram a namorar depois do curso tirado para não prejudicar a média, certo?

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  8. Completamente de acordo com o Nuno. A falta de bom senso e a ignorância reside precisamente em formas de pensar que tomam por inútil o envolvimento com causas "menores" quando ainda temos trabalho infantil, violência doméstica, desemprego, e agora as maternidades e os professores e....
    E que tal então também deixarmos de financiar a participação nos acontecimentos futebolísticos! Ou então vamos deixar simplesmente de usufruir de qualquer tipo de diversão ou indo até mais longe de evento cultural! Certamente não é justo as pessoas frequentarem cinemas e teatros e comprarem livros e irem à praia ou de férias, quando existem tantas crianças a passar fome e tantos idosos na miséria e tanto professor no desemprego; e já agora tanta gente ignorante de valores! A mim parece-me mais razoável não ir ao Mundial do que tomar por despropositadas as preocupações sociais dos outros. Aliás quanto mais conheço o ser humano mais gosto dos animais e acho que merecem todo o respeito e protecção que a nossa espécie lhes puder dedicar!
    O problema é haver sempre quem se autopromova como os preocupados da nação, como alibí para as suas posições amorfas. “Se há crianças a coser sapatos, então não tenho de me envolver quando vejo alguém atirar um cão da janela do carro. Até tenho peninha, mas como só está em quinquagésimo na minha lista de prioridades sociais, fica para a próxima”. É a bem portuguesa demonstração de falta de valores humanos (humanos sim) que por cá circula.
    Peço desculpa pela dimensão do comentário mas este tipo de observações tira-me do sério; e já agora:
    A grandeza de uma nação e o seu progresso moral, podem ser avaliados pela forma como tratam os seus animais., Mahatma Gandhi

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  9. Caro Nuno
    Criticar o projecto (do dia do cão) é demagógico?
    Demagógicos são os políticos que "esquecem" o prometido, sempre que tal lhes é conveniente, e que estão no parlamento, para, entre coisas piores, brincar "aos dias de"...
    A comparação (com o trabalho infantil) é demagógica?
    Sim, mas para "os devidos efeitos", não é nem mais nem menos demagógica do que as comparações que são feitas na posta com o "caso" inglês, ou com o "episódio" Grego.
    É comodista, porque não propõe alternativas? Mas desde quando é que a critica têm por "obrigação" propor alternativas? E alternativas para que? Por mim escrevo, mas não me parece que o "discurso dos críticos" seja contra o "direito do cães", ao seu dia.
    Quanto ao "tipo de programa politico"... onde é isto já vai... qualquer dia não se pode abrir a boca ou escrever um comentário num blog, sem o "caixilho" da ideologia devidamente reconhecida, de preferência sobre a forma do cartão partidário!
    A "insinuação" sobre o desvalor da "mentalidade" de, por certo, tal "doente", acho uma coisa ainda pior quase (in)qualificável...
    "Fazer o raking dos males", não me parece uma boa ideia, não só, porque nem todos os desempregados de Portugal (demagogia) seriam suficientes para a enormidade da tarefa, mas, principalmente porque arranjavam logo maneira de meter mais uns boys ao barulho...
    E queres maior demagogia, em forma de “processo” de intenções com “culpa” formada, do que a tua pergunta final?
    Olha que eu não vi em nenhum dos “discursos dos críticos”, nada de semelhante. Repito, que eu tenha lido, ninguém questionou a “sanidade” (a “correcção”?) da vida “sentimental”, ou “amorosa”, de suas excelências os deputados proponentes...
    Quanto a demagogia estamos conversados. Cada um usa a quer, conforme o “estilo”.
    A questão não é esperar pela resolução dos males dos humanos antes de chegar a vez dos canídeos. A questão é que não deixa de ser comovedora a preocupação com os animais, da parte de quem tão pouca preocupação manifesta para com... tanta coisa.

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  10. AM, tenho por regra não personalizar discussões, aceitar e até compreender argumentações contrárias. Não encontrei razões para contrariar a sua anterior participação, não por concordância mas por aceitar que o espaço de comentários merece abertura e não deve estar sob a mira constante do autor de um blog. Adianto estas palavras apenas para questionar o seu juízo de “demagógico” para com a referência aos exemplos que lhe dei, da Inglaterra e da Grécia.
    Não vejo porque seja demagógico citar o exemplo da RSPCA, demonstrativo de como diferentes posturas culturais produzem resultados distintos, com expressão, neste caso, até ao nível institucional. Exemplos conhecidos do norte da Europa e dos Estados Unidos, não apenas da questão da defesa dos animais, mas do associativismo em torno de todas as causas possíveis e imaginárias, seriam bons para compreendermos a distância que nos separa desses níveis de participação cívica que constroem as sociedades democráticas que tanto gostamos de admirar. A sociedade que temos em Portugal não é fruto de nenhuma espécie de fatalismo: ela é o produto da nossa cultura e da nossa dinâmica social; uma dinâmica que os exemplos externos demonstram ser muito pobre.
    O exemplo grego que citei é demagógico? Posso aceitar que sim. Mas olhemos então para o “caso português”. Será normal que milhares de “animais de estimação” sejam abandonados todos os anos por altura das férias. Ou imagina a quantidade de cães que são abandonados durante o período da caça, muitas vezes com um chumbo em cima. Animais que podemos apreciar miseráveis à beira da estrada, à espera do desastre inevitável. Imagina o número de cães que são literalmente “atirados” para dentro dos recintos das instituições de defesa de animais abandonados, como que despejados em contentores por cidadãos que de resto se julgam socialmente respeitáveis. Contribuindo assim de forma irresponsável para agravar as dificuldades em que vivem essas associações.
    Será aceitável o nosso fraco envolvimento cívico, seja com que causas for – sem nenhuma participação e reduzindo-se, quando existe, à inscrição (muitas vezes sem pagar sequer as cotas).
    Será demagógico afirmá-lo? Talvez. Mas será isto consentâneo com uma sociedade civilizada? Estarão estes fenómenos assim tão longe da mesma mentalidade que pactua com a realidade de um país onde crianças têm de coser sapatos para comer, ou são vítimas silenciosas de maus-tratos, ou são despejadas em instituições onde as possamos ter longe da vista? Serão estas realidades assim tão estanques uma da outra? Afirmo, com a demagogia que quiserem, que tudo isto é o tecido social de um país de vivências crescentemente centradas na experiência do “eu”. Lugar de comodismos passivos, de ausência de mobilização e vontade para participar nas mudanças, que tanto reclama em frente à televisão. O único palco onde, parece, realmente existir.

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  11. É isso, somos um "país de bancada", onde todos se sentam e dizem aos outros o que estaria correcto fazer mas fazer algo de concreto e na prática....

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  12. http://corta-fitas.blogspot.com/2006/06/moqueca-meditabunda.html

    http://origemdasespecies.blogspot.com/2006/06/dias-assim.html

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  13. Caro AM, se ainda não percebeu, o dia nacional é o que menos importa.

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  14. Caro Daniel
    Se ainda não percebeu, foi por isso mesmo que "deixei" esse comentário.

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  15. Nem eu, nem ninguém que aqui se tenha expresso, acorreu em defesa do dito “dia nacional do cão”. E ao contrário do que pensa (AM), aqueles que de alguma forma estão ligados à questão da defesa dos animais não são cepos sem sentido de humor. Também me fico a rir do dia nacional da cerveja com tremoço. Mas sou capaz de ver as várias afirmações de preconceito subterrâneo que têm acompanhado estes exercícios de boa disposição.

    O que se abordou foi a forma como aqueles que tanto contestam o dia do cão, se recusaram a remetê-lo à indiferença. Pelo contrário, parecem julgar o tema muito relevante e digno de chacota. E não existe nada de grave em criticar a efeméride. O Barba Rija, e mesmo o Nuno aqui o fizeram, com sentido crítico e inteligência. O que estimei de grave e serviu de base ao meu texto inicial foi o modo como, a reboque do dia do cão, vários jornalistas e bloggers trouxeram à superfície a habitual retórica crítica da defesa dos animais, que reputam de irrelevante. Uma retórica de que o texto da Helena Matos era exemplar, com a consideração de que os políticos querem dar direitos a quem nunca os pediu (dixit). De facto, um cão que é abandonado, ou mesmo corrido a tiro, ou um gato bebé que é deixado vivo no contentor do lixo, não apresenta queixa às autoridades. Os cães não fazem lobbying nem têm expressão eleitoral.

    Pobre país aquele que precisa de efemérides para construir a sua cidadania. O dia da árvore não resolve o problema da política florestal nem consta que consiga combater incêndios. Mas pergunto-me se um dia nacional dedicado aos cães, ou mais desejável ainda, à questão da defesa dos animais, seria tamanha afronta? Não tem valor educativo? Não poderia canalizar apoios para com associações que exercem, com dificuldade, um trabalho de reconhecido valor social, de cariz educativo e até de saúde pública? Repugna-vos assim tanto? Pois, e perdoem-me a tirada demagógica, muitos daqueles que gostam de atirar a questão da defesa dos animais abandonados para debaixo do tapete das causas irrelevantes, não se importam de ir lá deixar os cães que lhes pesam na rotina.

    Gostava de saber, desses senhores que tanto agora se riem, quantas horas da sua vida já dedicaram a trabalho voluntário, pelas causas que tanto afirmam prioritárias. Num banco alimentar, num hospital, numa recolha de fundos, num lar.
    Mas fazer a pergunta, eu sei, também é demagogia…

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