Da perda de coesão em Nova Orleães

No ensaio intitulado As Novas Tecnologias, o Futuro dos Impérios e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, Fernando Carvalho Rodrigues escreve sobre o conceito de perda de coesão. A sua teoria é a seguinte: quando uma determinada estrutura organizacional é alvo de um processo de destruição, seja em perdas humanas, sociais, económicas ou outras que funcionem como factor relevante de coesão, existe um ponto nesse processo em que o declínio é inevitável e já não é possível evitar a desagregação da estrutura.
A partir desse ponto de não retorno, que ali se define como uma variável 1/e ou cerca de 36%, é a própria estrutura que cai por si; porque a percepção do fenómeno sofre um efeito de desproporção em relação à realidade.
Esta ideia é ilustrada com o exemplo da desagregação de um exército durante uma guerra. Quando o nível de baixas atinge entre 10 a 15 por cento, a quantidade de informação produzida pela desorganização (em necessidades logísticas) começa a tornar-se um factor de depredação relevante. O aumento de informação gera o aumento da desordem. Quando o nível de baixas atinge um terço a percepção da destruição torna-se então generalizada (a percepção clara de que se está a perder) e o que era até então um exército passa a ser apenas um bando de homens carente de estrutura.

Esta ideia é depois desenvolvida com um interesse ainda maior a respeito do problema do declínio das cidades enquanto estruturas sociais complexas e centros de poder. São apresentados diversos exemplos entre os quais os casos do surto de peste em Lisboa de 1569, em Veneza de 1631 e de Verona no mesmo ano. Nestes dois últimos casos a perda de vidas humanas superou o referido valor 1/e, grosseiramente um terço da população. E em ambos os casos, apesar de ainda hoje as cidades existirem enquanto referências urbanas e de grande interesse cultural nunca mais recuperaram o estatuto político e a importância geo-estratégica que antes haviam possuído.
A tese de Carvalho Rodrigues é teórica e discutível. Em casos como o de Veneza o declínio da cidade enquanto pólo económico e político relaciona-se igualmente com a perda do monopólio comercial com o Oriente que resultou da abertura das rotas comerciais marítimas; em particular da descoberta do trajecto marítimo para a Índia. Mas o conceito de perda de coesão não deixa de exprimir um fenómeno importante, em especial no papel da pessoa humana como factor de equilíbrio no tecido colectivo e que não pode ser destruído, sob ameaça do colapso generalizado. O professor adianta que basta que uma catástrofe dizime “algo como 10% da população para que a quantidade de informação da estrutura seja tal que a ignorância gerada dentro da organização a destrua”.

Estes números estão, felizmente, muito longe da realidade provocada pela passagem do furacão Katrina. Na cidade de Nova Orleães com uma população de 484.674 (US Census 2000) estão confirmadas 118 vítimas (num total de 659, 13 Setembro) e estima-se um valor máximo de perdas humanas da ordem dos 10.000. No entanto, sabe-se que o número de propriedades e habitações atingidas ou destruídas rondará as 150.000, valor que dá certamente uma noção da disrupção social que ali está a ocorrer. O Army Corps of Engineers prevê que o processo de drenagem da cidade demorará por mais de 40 dias e vários alertas estão já a ser lançados para as consequências imprevisíveis que a poluição das águas por diversos contaminantes biológicos e químicos poderão ter nas áreas naturais circundantes.

Parece razoável supor que a cidade de Nova Orleães será reconstruída e virá a tornar-se um autêntico case-study no domínio da engenharia e da arquitectura. Numa perspectiva optimista, pode até prever-se que venha a retomar um interesse turístico particular e que dinâmicas económicas se venham a desenvolver posteriormente. Mas perante os números e a realidade da catástrofe, a grande incógnita penso prender-se com algo próximo desse fenómeno de perda de coesão; neste caso pela desagregação de um tecido social complexo que se formava não apenas pelas riquezas culturais da cidade mas também pelas suas contradições sociais. Exactamente no tecido humano mais frágil aos efeitos do desastre que agora ocorreu. Poderá Nova Orleães renascer como a Jóia do Sul retomando a magia cultural e o seu valor histórico, ou tornar-se-à apenas uma espécie de disneylândia do jazz, uma cidade cenográfica como uma mera miragem de uma vivência social entretanto desaparecida.

Refs:
As Novas Tecnologias, o Futuro dos Impérios e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, Fernando Carvalho Rodrigues, 1994;
The Lost City of New Orleans?, Lori Widmer, Risk & Insurance, 2000;
Drowning New Orleans, Mark Fischetti, Scientific American, 2001;
Gone With The Water, Joel K. Bourne, Jr., National Geographic, 2004;
Hurricane Katrina, Wikipedia, 2005;
Effect of Hurricane Katrina on New Orleans, Wikipedia, 2005;
Imagem de satélite de Nova Orleães após o Furacão Katrina, Google Maps.

4 comentários:

  1. Nunca tive grande ideia de Carvalho Rodrigues como cientista e esta "teoria" confirma isso: um grande vazio de ideias...

    obvious

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  2. Tem semelhanças com a série de livros de Edgar Morin (O Método), que salvo erro foram produzidas a partir dos anos 70(?)...

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  3. Não é para chatear mas o homem, para além dos galões académicos, foi director de programas de ciência da Nato e é membro do european security research advisory board.
    Claro que, se calhar, é apenas sorte!

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  4. Talvez... mas já o tenho ouvido falar e parece-me um fala-barato convencido. Os seus pares chamam-lhe "Parvalho Rodrigues"... Acho que deve ser mais um daqueles tipos que subiu à custa do trabalho alheio (tipicamente dos seus alunos), digo eu...

    obvious

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