Bairro sitiado



Os episódios recentes de violência que tiveram lugar no Bairro da Bela Vista motivaram algumas considerações sobre a falência do modelo urbanístico do “bairro social”. Vale a pena reflectir sobre esta ideia de causalidade entre criminalidade e urbanismo que é recorrentemente trazida a debate por certos sectores da opinião pública e pelos meios de comunicação.
Não se trata de negar que o ambiente construído favorece tipos específicos de comportamento social, em especial nos grandes meios urbanos dominados pelo anonimato e a massificação. No entanto, quando falamos de falência de um modelo urbanístico enquanto causador de fenómenos de criminalidade violenta, estamos a presumir que um outro modelo, alternativo e “bom”, os poderá combater. No fundo, trata-se de alimentar uma ideia determinista do urbanismo que carrega consigo toda uma visão da acção do Estado sobre o fazer social. O que está então em causa são conceitos de fundo, ideológicos, matriciais do nosso pensar político e que ninguém presume questionar.

Aquilo que devíamos ter presente é que o urbanismo – a cidade material – não vive alheia da realidade social que nos cerca. Não há “modelo” que funcione se rodeado de debilidade económica, de desemprego, de desagregação da vida familiar, de decadência da instituição escolar, de ausência de cultura de comunidade. Ou seja, não há bom urbanismo, por mais Polis que seja, capaz de combater por si a pobreza imaterial que bem descreve José Charters Monteiro: «(…) este tipo de acções, sobretudo a vertente imaterial - a educação, a formação, a criação e oferta de emprego de que tanto ouvimos falar - não tem merecido da parte do Governo Central a necessária atenção nem importância. E enquanto isto não acontecer não aparecerá uma primeira e diferente geração de cidadãos na Bela Vista. Entretanto, vamos na terceira geração de excluídos. Esta, a pobreza material e imaterial, é a questão central para as populações, qualquer que seja o seu bairro. Com a actual crise de modelo social e económico e perante a ineficiência das medidas da governação, infelizmente, estaremos a caminho do alastramento de processos como os da Bela Vista que se estenderão a muitas outras áreas urbanas empobrecidas e sem futuro viável. A Bela Vista é apenas o sinal; precursor porque acumula uma súmula de condições. Neste sentido, o seu plano e os seus edifícios, são o cenário de um processo onde a miséria da população a leva às mais graves consequências. Seria bom que políticos e Administração compreendessem realmente do que se trata e não se deixassem confundir e não nos queiram confundir apresentando os efeitos como sendo as causas destes processos sociais.» Ler texto completo aqui.

Não devemos cair na tentação fácil de colocar no banco dos réus o “bairro social” dos anos setenta pelos problemas da sociedade que entretanto temos vindo a construir. Sem querer alimentar complacência pelos protagonistas dos actos de violência que nos foram dados a assistir nos últimos dias, temos de compreender que eles são também produto de uma realidade sociológica mais complexa de que fazem parte as políticas de subsidiamento de subsistência, a falta de instrução e formação profissional. E, já agora, uma generalizada condescendência com a cultura de violência – tantas vezes veiculada pela televisão – que faz parte do código identitário destes grupos que a terminologia mediática agora se apressa a transitar de “jovens” para “bandos armados” – porque as palavras nunca são inocentes.

Os bairros sociais que hoje nos damos ao luxo de desconsiderar são o testemunho de um esforço de integração de populações que viviam em condições habitacionais de grande carência, a que se somaram os milhares de retornados das ex-colónias. Sucede que a estas acções de integração de primeira geração não se sucederam estratégias políticas dirigidas às gerações seguintes. Aquele urbanismo degradado é apenas a face visível de um problema não resolvido, que entretanto se vem debelando com políticas de rendimento social. Em resumo, trata-se de deitar dinheiro em cima do assunto na esperança que ele não nos venha perturbar, em directo na televisão.

Temos hoje um trabalho inteiro por fazer no sentido de promover uma realidade comunitária saudável em meios sociologicamente difíceis – e que deverá envolver e apoiar membros influentes dessas comunidades, incluir famílias, escolas, acção social, polícia de proximidade. Um trabalho tão mais difícil num momento de atrofiamento económico e em que o Estado vai perdendo capacidade e influência, mas que tem de ser assumido pela simples razão que a alternativa – esperar pelo inevitável – é simplesmente insustentável.
De resto, já temos anos suficientes de democracia para compreender que questões desta natureza não se resolvem com medidas milagrosas, antes dependem de um esforço de longo curso e de uma monitorização acompanhada. É um trabalho sem fim. Começá-lo talvez fosse por isso uma boa ideia.

6 comentários:

  1. Talvez já conheça o "The Architecture of Happiness" do alain de Botton.

    http://www.alaindebotton.com/architecture.asp

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  2. Completamente de acordo com o seu texto relativamente à falência do modelo urbano "bairro social".

    Na mesma medida, será que o modelo dos resorts (ou Quintas das Marinhas) não estrão igualmente falidos.

    E no futuro a reabilitação fisica deste tipo de urbanidades não passará por redesenhar estes modelos utilizando a cabeça, o cad e umas bombas?

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  3. Como sempre, muito bem escrito!
    Parabéns e abraço Daniel

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  4. Tenho uma aversão fidagal contra os arquitectos em geral. Mas decidi juntar este blog aos meus blogues favoritos. Incoerências.

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  5. @J

    Ainda bem: talvez aprenda a ver a Vida (ou a Arquitectura) com outros "olhos"...
    Abraço

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  6. Aversão Fidigal?

    http://www.youtube.com/watch?v=3n7zQSQeO3Y&feature=related

    Para si, de um arquitecto...

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