«Está na presença de um Pritzker»
A primeira edição da nova série do Jornal Arquitectos (n.º 234), com direcção de Manuel Graça Dias, abre com o sugestivo tema de capa «Ser Populista». O editorial inicia o debate sobre a forma como a arquitectura é discutida no espaço público, lugar tantas vezes enviesado por argumentações demagógicas que, na sua aparência, se parecem revestir da legitimidade própria das evidências indiscutíveis.
Graça Dias faz uma breve referência à polémica que rodeou a proposta do edifício no Largo do Rato, da autoria de Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus. Vale a pena relembrar que, a respeito deste projecto em particular, autarcas da cidade de Lisboa utilizaram expressões como «excrescência urbana» e «ditadura da arquitectura da modernidade». No calor do momento até a intelectualmente insuspeita Clara Ferreira Alves exprimiu as suas perplexidades na sua crónica regular no Semanário Expresso: «(…) que os bairros antigos das cidades são para ser deixados em paz, reabilitados e mantidos longe das garras modernistas de arquitectos visionários que normalmente habitam bairros tradicionais, casas tradicionais, e jamais põem os pés como moradores e utilizadores nos monos que eles assinam».
A conflituosidade parece tornar-se registo recorrente do modo como se discute arquitectura, fora do meio estrito da profissão. O eco destas controvérsias repete-se em petições onde prevalece, na maior parte dos casos, o apelo à emoção sobre uma desejável busca argumentativa de base racional.
O problema que Graça Dias identifica tem, no entanto, duas faces distintas. Como o próprio refere: «(…) lutar contra todas as formas de populismo que cercam a nossa actividade, pressupõe, também, que consigamos, nós arquitectos, retirar o máximo de arbitrário que possa existir nos desenhos que propomos».
A este respeito importa dizer que, no caso do Largo do Rato, estamos perante um projecto de iniciativa privada sobre um terreno particular, cujos contornos jurídicos e financeiros são bem distintos daqueles que rodeiam as obras de promoção pública. Nesse âmbito ganham ainda mais sentido as palavras seguintes do editorial do JA. Escreve Graça Dias:
«Dito de outro modo, o populismo ganha maior amplificação e capacidade de sedução se, do outro lado, o trabalho do arquitecto não conseguir provar a fundamentação das diversas opções; se, realmente, a carga de arbitrariedade for de tal modo evidente que a defesa das escolhas fique encurralada no pântano dos “gostos”.»
O debate que se desenvolve nos vários artigos que compõem esta edição do Jornal de Arquitectos enferma da dificuldade em extravasar a discussão do plano da generalidade. É mais difícil dissecar estes problemas quando falamos de projectos específicos, nesse território ingrato onde as pessoas têm nome. Onde as palavras, mesmo se assertivas, ferem a susceptibilidade e podem magoar colegas que nos são próximos ou que sabemos serem profissionais de percurso esforçado e reconhecidamente sério.
Mais difícil se torna quando o ambiente da discussão pública que nos rodeia não é regido pelo princípio da boa fé – num exercício constante de desmontagem das intenções ocultas, mesmo quando elas não existem, do ângulo político, das invejas ou da mesquinhez de quem mais não quer do que ser ouvido. Acima de tudo torna-se impossível o debate dessa desejável «cidadania» quando tudo nos arrasta para o domínio da suspeição – esse anátema bem traduzido na frase do Gato Fedorento: «o que tu queres sei eu».
Um caso paradigmático da dificuldade em travar este tipo de discussão é o procedimento em torno do novo Museu dos Coches. Valerá a pena relembrar um episódio que teve lugar na sessão de apresentação pública do projecto, nas instalações da Ordem dos Arquitectos em meados de Outubro do ano passado, em que esteve presente o arquitecto Paulo Mendes da Rocha. Aberta a fase de intervenções, um espectador ergueu-se para expor as suas críticas à proposta, sendo interrompido por um colega presente na sala que lançou essa fatídica frase: «Está na presença de um Pritzker».
Trata-se de uma demonstração exemplar da negação do diálogo, sustentada num pretenso dever de submissão para com a superioridade intelectual do autor. Fazendo caricatura, mais será dizer que não se pode criticar um novo filme de Steven Spielberg por se tratar de um vencedor do Óscar.
Esta deslocação do debate sobre a obra concreta, na complexidade das suas circunstâncias, para o plano pessoal, mais não faz do que dirigir a reacção pública para uma esfera de não-discussão. O fenómeno repete-se na forma como agentes políticos e promotores públicos utilizam o nome de arquitectos reconhecidos para legitimar à partida os projectos que dirigem, esmagando as resistências de um eventual debate público.
Mais grave se torna quando, no caso do novo Museu dos Coches, um colectivo de arquitectos de reconhecido mérito subscreve uma petição alheia ao contributo argumentativo sobre a obra para exercer a defesa do autor que, na sua pessoa e na sua obra, não está em causa. Eis uma passagem dessa subscrição: «Considerando, assim, que o novo edifício do Museu Nacional dos Coches, da autoria do arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, há muito militante de uma arquitectura de causas públicas, resultará num edifício de cidade e dos cidadãos com inegável interesse público, para além do valor intrínseco da sua qualidade estética, ética e cívica.»
Podemos interrogar, com igual legitimidade, quais os argumentos de razão que ali se encontram. Podemos, afinal, questionar se as boas intenções que ali se enunciam não são tão vagas quanto as asserções dos descontentes que, do outro lado da barricada, sem pudor rotulamos de populismo.
O traço que se parece repetir nos casos mais notáveis e controversos de obra pública em Portugal é uma ausência de substância programática que torne claras as razões que sustentam os projectos e as soluções encontradas. Ainda que essas razões possam existir, os projectos são apresentados sem que se dê a conhecer o enquadramento do que se pretende realizar, dos seus objectivos, dos seus desígnios.
Temos, como exemplo mais recente, o debate sobre a proposta de reformulação do Terreiro do Paço / Praça do Comércio. Perante um dos lugares mais simbólicos da cidade temos a obrigação de discutir a nossa “visão” da cidade contemporânea. Que expectativas temos, que funções desejamos, que valores buscamos? Que vida humana queremos instituir naquele lugar – que, bem entendido, já não é um Terreiro do Paço, e também já não é uma Praça do Comércio. Que contributo tem esta geração – todos nós, afinal – neste tempo histórico, a dar à cidade de Lisboa?
Perante a grandeza do feito que ali poderá ter lugar, discutir o atrevimento dos losangos ou dos degraus é um pouco como querer discutir uma casa começando pelo papel de parede.
No fundo, no modo como a promoção pública destes procedimentos é politicamente representativa do que somos, revela-se a omissão de uma geração com medo – ou desconhecimento – da sua cultura, do seu lugar, do seu sentido. Perante a ausência de um desígnio, transposto em objectivos concretos e traduzido em conceitos programáticos, avançamos em discussões “compartimentalizadas” sobre pequenos nadas. Acabamos nós, arquitectos, a reduzir a grandeza da arquitectura na sua dimensão urbana ao papel de decorador sensível, de lirismo em lirismo, cada vez mais distante desse público que desejávamos conquistar.
Correndo o risco de me repetir, importa dizer que o processo da arquitectura começa a montante do desenho. Os intervenientes da arquitectura e do urbanismo – promotores e autores – devem compreender que o projecto não é um objecto mas um meio para materializar objectivos, conceitos, valores, em obra física. E que um mau processo, mal planeado e mal pensado, nunca resulta num bom projecto. Seja quem for o autor.
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MAIS UMA VEZ, UM MAGNIFICO TEXTO, DE UMA ASSOMBROSA LUCIDEZ.
ResponderEliminarE como respondeu o interrompido à dita observação fatídica: "Ah ganhou? Parabéns!". Foi uma intervenção muito infeliz desse senhor... Para mais, sendo um dos poucos espaços onde o debate foi alargado a toda a população, é lícito que as pessoas exponham as suas ideias, perguntem... e sejam respondidas. Se queremos que a Arquitectura seja para todos, há que a fazer chegar a todos e promover diálogos e respeitar as diversas posições... sejam eles leigos ou prémios Pritzker.
ResponderEliminarNo Câmara Clara foi abordado o assunto do novo Museu dos Coches, deixo o link:
http://camaraclara.rtp.pt/#/arquivo/132Só para terminar… É como o Daniel refere, não é um prémio que define que tudo o que resulta posteriormente é de igual qualidade... ou que seja o mais apropriado para um determinado contexto… Penso que no exercício da Arquitectura, cada projecto é um caso e estamos sempre a aprender, não existem fórmulas… existem experiências que vamos adquirindo e que vamos inovando… e como tal corremos sempre riscos… incluindo o risco de não correr bem…
Losangos claros e escuros, 3 degraus, e por aí fora... parece-me de facto haver um objectivo concreto e, sem dúvida, um desígnio. Mas isso não garante arquitectura. Quanto ao Rato e aos Coches...questões políticas e erros de comunicação. Mas é só uma opinião.
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