Hortas de lata
O fenómeno das hortas urbanas é sintoma de um certo vazio doutrinário no planeamento das cidades. Porventura tão antigas como os primeiros subúrbios, as hortas espontâneas – ou hortas de lata – traduziam as necessidades de uma população vinda para o mundo urbano em busca de mais oportunidades de emprego e melhores condições de vida, carregando consigo os laços de proximidade com a vida rural.
Algumas destas pessoas, hoje idosas, persistem ainda teimosamente activas em franjas de ruralidade que contrastam com a massa anónima de construção em que se foram tornando as cinturas das principais cidades Portuguesas. A esta população somam-se agora outros grupos de cidadãos, em particular imigrantes com origem Africana e da Europa de Leste.
Da sua actividade podemos testemunhar o aproveitamento dos vazios deixados pelo atravessamento de grandes infraestruturas rodoviárias, terrenos marginais ou expectantes, margens de linhas de água, taludes sem vocação urbanística. São espaços de ninguém, sem função e sem valor no fazer da cidade planeada.
Planeia-se, afinal, aquilo que se dramatiza como importante, aquilo que tem interesse. Planeia-se a construção, planeiam-se as vias e as infraestruturas. E, de algum modo, foi-se planeando uma cidade anónima para pessoas anónimas, um «locus» abstracto onde estes cidadãos não parecem existir ou ter lugar.
Hoje podemos testemunhar o trabalho de teimosia desta gente que imprimiu, ao longo dos anos, uma «layer» de parcelamento espontâneo sobre esta outra cidade. O traçado destas hortas invade os locais mais singulares, tornando de forma persistente em útil o que antes parecia inútil.
Numa altura em que os municípios começam a olhar para estes espaços com renovado interesse será importante questionar porque razões se mantiveram as hortas urbanas tão afastadas da dialética do urbanismo erudito. Esta pequena ruralidade, tomada como curiosidade folclórica ou, no melhor dos casos, com paternalismos pedagógicos, só agora começa a ser entendida na sua dimensão social e ecológica, bem como pelo seu valor enquanto auxílio económico de famílias com maiores limitações financeiras.
É interessante pensar que, vistas no seu potencial de equipamento comunitário, as hortas urbanas representam uma infraestrutura de custos extraordinariamente reduzidos. Algo que se torna ainda mais notório perante o potencial retorno que podem representar na vida efectiva das pessoas. Por outro lado, estamos na presença de uma actividade que permite conferir sentido a áreas antes negligenciadas e de difícil manutenção. Importa assim repensar estes espaços como uma grande oportunidade para a inovação urbana, definindo estratégias e implementando soluções de integração com outros usos – de circulação, de lazer, de convívio comunitário – que enriqueçam a vida das cidades e resgatem esta gente do esquecimento a que, durante tanto tempo, foram deixadas.
A propósito deste tema valerá a pena descobrir um «estudo de caso» real (que desconhecia) de uma grande horta comunitária em Los Angeles presentemente envolta num conflito de interesses em torno do seu aproveitamento para fins de construção. O documentário The Garden revela a história apaixonante de um grupo de agricultores urbanos a braços com um ultimato de expropriação, enredados nas contradições entre o discurso político dominante e os interesses económicos que se parecem sobrepor aos valores humanos que deviam prevalecer no fazer da cidade.
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havia uma tendência parecida em cuba, não era? http://www.metropolismag.com/story/20040301/gardens-renew-cubas-urban-core
ResponderEliminarO Gonçalo Ribeiro Telles (e não só) à muito que falam nisso.
ResponderEliminarMas de facto é muito interessante um certo bucolismo (para o bem e para o mal) que continua a existir no (des)ordenamento do território português. Se é certo que muita da história recente pode ajudar a explicar esse fenómeno não deixa de ser curioso que ele continue a ter uma marca tão forte no território. Por um lado temos estes fantásticos exemplos de hortas circunscritas por nós viários ou até no interior de logradouros modernos (como acontece no Bairro das Estacas no Centro de Lisboa) por outro lado temos os condomínios fechados do género Villa Utopia ou Bom Sucesso (só para falar dos desenhados por arquitectos de renome sendo este ultimo classificado com um distinto PIN) - “Um conjunto dos mais qualificados arquitectos, nacionais e internacionais, bem como um conjunto de paisagistas e técnicos, desenvolveram um conceito inovador: arquitectura contemporânea envolvida pela paisagem”- todos eles com um denominador comum: - a natureza, encenada e artificial, mas sempre o acesso à natureza.
Como não poderia deixar de ser o exemplo das hortas parece-me bastante mais interessante principalmente se levarmos em linha de conta o contexto sócio-económico actual. Acredito que seria nesse sentido e com esse tipo de estruturas que poderíamos tornar as nossas cidades melhores e o nosso território mais equilibrado. Como defende a arquitecta paisagista Rosário Salema num recente artigo no Jornal dos Arquitectos a “agricultura promove o esbatimento das fronteiras entre os espaços urbanos e rurais, entre periferias e centros e origina uma população mais móvel e adaptada às duas culturas. A agricultura como actividade económica regulada e reguladora do tempo biofísico constitui uma possibilidade de união entre todas as paisagens, inclusive a humana”.
excelente texto, aliás como a maioria
ResponderEliminarNa Europa, a tendência renasceu no século 19, na Alemanha, mas já desde a antiga Pérsia e Machu Picchu que o "conceito" existe.
ResponderEliminarEm Portugal, temos um grande defensor e difusor do tema, o Arq. Gonçalo Ribeiro Telles. O ano passado por esta altura houve até uma sua participação na "Há Festa na Horta":
http://supergreenme.blogspot.com/2008/05/h-festa-na-horta-dia-comunitrio-na.html
Alguém reconheceria o Reichstag, ao fundo deste grupo de pessoas a plantar batatas, em 1946?
http://pro.corbis.com/images/U1042504INP.jpg?size=67&uid={502df7b4-d235-4560-b0d4-d5764c382d85}"
é a terceira paisagem do Clement que está sempre em discussão mas que pelas mais diversas razões nunca resulta num encaixe concreto e institucional a nível do território.
ResponderEliminaros casos das CPUL's (Continuous Productive Urban Landscapes)nos seus variados exemplos ou das acções de guerrilla urbana verde que não têm a ver com a produtividade agrícola dos interstícios urbanos mas com a sua manutenção e produtividade social e paisagística são sempre interessantes pela mobilização do cidadão que provoca a administração ou outro cidadão com um alerta para o vazio, para o abandono e para as potencialidades dos espaços esquecidos.
a escala é sempre uma questão fundamental destes espaços, para que é que servem espaços que não servem para edificar, que não servem para 'nada'? é uma pergunta que desperta ainda o horror de alguns planeadores e gestores de território que ficam transidos sem uma resposta assertiva aos problemas que se vão multiplicando mas que já existiam e renascem como novos à luz de novos (ou renovados) paradigmas de desenvolvimento.
este é um tema muito apaixonante que nos leva, pelo menos a mim, a olhar com mil olhos para o espaço que me envolve no quotidiano.
Pelo modo que escreve, se vê que és muito inteligente. Cheguei no teu blog através da Fatima, voce teve quem puxar! Parabéns e sucesso. Léia
ResponderEliminarO apelo às hortas urbanas vem também do tempo do Estado Novo, em que Salazar apelava (havendo cartazes de propaganda) à auto-suficiência e ao aproveitamento das terras "sem dono", nomeadamente as que apareciam nas bermas das estradas e caminhos de ferro em desenvolvimento. A célebre campanha de apelo ao consumo do vinho (Beber vinho é dar de comer a 1 milhão de portugueses) também vem dessa altura. Fica aqui o apontamento... :)
ResponderEliminarF.A.
ResponderEliminarNo fundo deve ser o meu salazarismo latente a dar de si. E quer-me parecer que aqueles mexicanos de Los Angeles também devem ser uns fascistas.
Haja dó.
Hortas e autoestradas ... visto estarmos a caminhar para um Mundo menos poluente, principalmente no ramo de transportes, acho bem, é bonito e agardável. Quanto a mim só me resta uns vasos no parapeito da janéla com salsa, pimenta e até tomates já nasceram ...
ResponderEliminarPS: o que mais preocuparia é se, os Alimentos produzidos nessas Hortas, são consideravelmente saudáveis, tendo em conta os automóveis que diáriamente circulam e toda a "poluição" que uma autoestrada produz, penso eu que tudo isto ifluência a qualidade dos produtos agriculas, e toda a vegetação em redor !?, e por fim pode provocar cancros e outros males a quem consome os mesmos, .... penso eu de que ...?! :-).
Gosto muito do seu Blog,
Sou um leitor atento
Fábio
Obrigado a todos pelos comentários.
ResponderEliminarFábio, excelente observação. As águas que drenam das vias automóveis levam consigo vários poluentes, dos gases de escape, óleo, resíduos de pneu, etc. Em vários países começam a aplicar soluções de separação destas águas dos sistemas de drenagem de águas pluviais. E o problema coloca-se também pela infiltração nos terrenos próximos, como os casos que aqui observei.
A justificar um aprofundamento do tema para breve.
caro daniel,
ResponderEliminarinspirado por um trabalho académico realizado no ano passado e depois de uma leitura atenta deste post, resolvi publicar no meu blogue um ensaio sobre a possibilidade das hortas urbanas como elemento morfológico da cidade.
fica de seguida o link: http://ensaio-linear.blogspot.com/2009/10/hortas-urbanas-como-elemento.html
é um tema fascinante e sobre o qual ainda há muito para se escrever.
agradeço o contributo dado pelo barriga