[morte na estrada: aguarde a sua vez]

Quinta-feira



Quase todos consideramos o carro como um bem essencial à nossa vida. O carro liberta-nos, permite-nos ir aonde queremos quando queremos. O carro promove-nos, facilita o relacionamento com os amigos seja para ir até à praia ou numa saída para jantar. É parte daquilo que somos – sim, eu sou Mercedes ou Renault, um Volkswagen ou um Peugeot. E quando finalmente vendemos o velho carrinho temos pena dele como se fosse parte da família.

As mentalidades mudam. A sociedade começa actualmente a olhar para o automóvel como uma potencial fonte de perigo. Todos os dias morrem nas estradas europeias o equivalente à queda de um avião de média dimensão. Todos os anos, no mundo inteiro, ocorrem mais de 40.000 mortes causadas por acidentes rodoviários, o equivalente a apagar uma cidade média do mapa.
Como se explica então o grau de aceitação dos cidadãos para com esta falta de segurança, quando outros meios de transporte efectivamente mais seguros são alvo de forte sensacionalismo na ocorrência de um qualquer acidente pontual?
As vítimas de acidentes de viação, mortos e feridos, custam à sociedade dezenas de biliões de euros mas os custos humanos são incalculáveis. Se nenhuma outra razão houvesse, estas seriam suficientes para sustentar o objectivo que a União Europeia agora pretende atingir e para o qual se está a mobilizar: reduzir o número de vítimas para metade até 2010.

Mas a União Europeia enfrenta uma série de dificuldades, nomeadamente pela relutância que muitos estados membros manifestam para com intervenções nesta área de nível comunitário.
A verdade é que em vários países os cidadãos continuam avessos à utilização de cintos de segurança apropriados para crianças, ao uso de cadeiras específicas para crianças pré-adolescentes ou à harmonização dos níveis máximos de alcoolémia permitidos (questão que anda a ser discutida na UE há doze anos), entre outras práticas. A atitude destes cidadãos, entre os quais estão muitos portugueses (talvez a maioria dos condutores), não reflecte assim qualquer racionalidade perante os factos estatísticos da fatalidade rodoviária. Este é, talvez o primeiro problema a enfrentar então: a consciencialização dos cidadãos.

Não basta assim maravilhar-nos com as boas práticas europeias que resultam de sociedades efectivamente mais desenvolvidas. É fundamental intervir aos vários níveis do problema: da educação dos pedestres; da formação técnica e cívica dos condutores; da punição severa dos infractores; da melhoria das condições das estradas perigosas ou dos pontos de alta ocorrência de acidente.
Ao mesmo tempo há-que criar e beneficiar as alternativas mais saudáveis de transporte sempre que possível, tornando as nossas cidades mais amigas de quem as habita. Como a própria UE afirma – a garantia de estradas seguras nas cidades é pré-condição para, por exemplo, promover a bicicleta como meio de transporte. Como quase sempre é preciso olhar para dentro e começar a fazer o trabalho de casa. Para que um dia não seja a sua vez de entrar nas estatísticas.

[uma aventura na quinta do sargaçal]

Quarta-feira

É um dos meus blogs favoritos. A história de uma família portuguesa como nenhuma outra que eu conheça. A história do abandono da cidade grande. Uma história de descoberta. Sejam benvindos à Quinta Do Sargaçal.
Porque por vezes, o melhor que há em Portugal são mesmo os portugueses...



Somos um casal normal numas coisas e anormal noutras. A nossa vida, vista de fora parece "acertada e no bom caminho", segundo vários amigos. Mas, não sabemos se é ou se está e muito menos onde esse bom caminho nos levará.
Digamos que temos uma vida calma que podia ser ainda mais calma, se por exemplo, não fosse este Sargaçal. Temos uma livraria especializada em banda desenhada (Mundo Fantasma) e uma micro editora (MaisBD) e às vezes também fazemos algum design gráfico. Temos uma filha nada menos que espectacular e esperamos um filho em Outubro.
O Sargaçal fica em Cinfães, mesmo ao lado de Vila de Muros. Tem 5 hectares ou coisa que o valha. Dá muito trabalho e despesa. Mas isso seria o menos. Há também o Sr. Cristóvão num crescendo de incomodação, ao ponto de esta semana estarmos a repensar tudo.
A ideia do Sargaçal, vem na sequência da total insanidade da vida nas cidades de hoje. Viemos para aqui porque gostamos do local, tem o Rio Bestança -- um dos rios menos poluídos da Europa, uma associação de defesa do vale e em última análise o Sr. Cristóvão, sempre de lagriminha no canto do olho, acabou por nos convencer.

[best of]

Quarta-feira

Sem nenhuma razão que o justifique (a não ser esta fixação no umbigo) deixo aqui uma listagem de textos anteriores de que continuo a gostar e que julgo ainda merecerem ser lidos. Os títulos são links para os textos completos originais.



|esta|terra|mal|amada|
No entanto, olhados vinte anos depois, quanto custaram esses milhões de contos de poupança estatal, nos largos milhares de acidentes que ali tiveram lugar? Nos custos materiais resultantes directamente dos acidentes? Nos custos em cuidados de saúde dos atingidos, mortos e feridos? E depois, quanto custam os danos pessoais, emocionais, nas famílias das vítimas, os cônjuges, os pais ou os filhos, ou naqueles que ficam atingidos na sua integridade física para o resto da vida. E esse custo, como se repercute em crises, depressões e problemas sociais, em produtividade, nas suas vidas futuras?
Alguém sabe fazer estas contas? Alguém quer fazê-las? Quanto custou ao país, este Verão passado, anos de políticas de incúria e desinvestimento na protecção das florestas? Quanto custou a debilidade de um sistema de manutenção e fiscalização das pontes e infra-estruturas públicas, na noite de 4 de Março de 2001, quando um autocarro se lançou para o vazio das águas do Douro transportando mais de cinquenta pessoas? Quanto têm custado a nossa incúria colectiva, a nossa ignorância e má vontade colectivas?

2004-01-13

|arquitectos|contra|engenheiros|
A realidade é complexa, somos nós que a simplificamos na nossa necessidade de encontrar modelos para estudar a natureza das coisas e desenvolver respostas às questões práticas que se nos colocam. O problema começa quando começamos a pensar as prioridades sobre o nosso ponto de vista específico, desvalorizando os outros pontos de vista como algo que “depois alguém há-de resolver”. Ao longo do nosso trabalho, facilmente vamos encontrar pessoas que insistem em trabalhar sempre com aquelas variáveis que aprenderam, aplicando-as e fazendo delas doutrina, sem pensar se essas verdades o são quando confrontadas com outras componentes da realidade. Pessoas que depois ocupam cargos onde emitem pareceres e tomam decisões que afectam conjuntos largos de cidadãos. É preciso combater essa postura, e esse combate devia começar nas escolas e nas universidades, mas para combater um problema é preciso estar consciente de que ele existe. O que fazer então se a falta de consciência do problema é que é o problema?
2004-01-19

|a|arte|de|violar|o|pdm|
Uma das funções dos instrumentos de planeamento (Planos Directores Municipais, Planos de Urbanização, Planos de Pormenor) é sujeitar à discussão pública as decisões que os organismos públicos tomam em relação ao território. Infelizmente essa discussão raras vezes funciona. Os orgãos estatais, câmaras municipais, etc., quase sempre vêem a consulta pública como um entrave ao processo, uma arrelia burocrática, e não como um momento importante para divulgar e questionar as decisões de planeamento que se estão a tomar.
2004-01-21

|sinais|de|fumo|
Julgo que o verdadeiro confronto que existe na questão do aborto é entre aqueles que vêem a questão sobre um ponto de vista ideológico, uma questão de civilização e de princípios que atira o debate para um patamar de indiscutibilidade, e os que vêem a questão de um ponto de vista pragmático, da realidade social. A verdade é que, com criminalização ou sem ela, o aborto está aí, a acontecer todos os dias.
2004-01-29

|máquinas|de|inquietação|
Seja quem for o interlocutor, uma argumentação não é uma luta, não é uma forte asserção emocional, mas a progressão de ideias desde as premissas até à conclusão. Numa abordagem racional, essa argumentação começa com pressupostos, os dados que acreditamos serem certos, desenvolvendo uma racionalização até alcançar conclusões. O discurso da inquietação é um discurso que tenta perfurar a razão do receptor através do apelo à sua emoção. O perigo reside na força que um tal apelo é capaz de gerar, sem que o receptor questione genuinamente as motivações que o levam a aderir.
2004-01-30

|esperança|
O que preocupa é que, enquanto se paga o POLIS, continuam a cometer-se os mesmos erros de planeamento urbanístico ao nível do fazer cidade nova, por todo o país, erros que nos obrigarão a pagar os POLIS do futuro e que hoje bem podíamos estar a evitar cometer à partida.
2004-02-10

|intraduzível|2|
A morte não espera por nós, não espera que completemos a nossa lista de coisas para fazer. A morte não aguarda por pedidos de desculpa ou declarações de amor. Chega, e pronto. Será que as coisas mudam por sabermos que vamos morrer. Porque eu vou morrer. E tu vais morrer. Não tenhas dúvidas. Será que isso nos deve fazer mudar?
A liberdade vem de dentro - freedom is from within - disse Frank Lloyd Wright. Isso é tudo. Desde que abrimos os olhos pela primeira vez, tudo é ganho, tudo é lucro, mesmo a dor.

2004-02-13

|casamento|e|adopção|gay|
Existe um problema com a nossa sociedade, que é o de não exprimir em relação a cada um de nós uma verdadeira preocupação com o bem estar, se somos felizes, se sentimos estar a fazer as escolhas acertadas para a nossa vida. No entanto, já lhe é relevante aquilo que fazemos, com quem o fazemos e porquê. Ora o amor, nas suas várias formas, é um bem precioso.
2004-02-27

|transcender|
O modo como projectamos o espaço define o que somos enquanto humanos. Por isto saímos da caverna, porque já não nos revemos nela. E por isso a arquitectura não é uma arte amordaçada. O que a define é exactamente o homem. O que define uma porta é o homem a passar nela. Se não passar não é uma porta. Há quem encontre nos “constrangimentos” da realidade um espartilho para a sua imaginação, ao ponto do próprio cliente se tornar num constrangimento do artista. Esta atitude não tem nada de erudito, é uma mentira. Não tem nada que ver com arte, nada que ver com liberdade. É tão absurda como dizer que as regras da gramática são um constrangimento para o escritor ou para a literatura.
2004-03-09

|o|cão|com|três|patas|
O resto da história é fácil de adivinhar. Dois anos depois, eu e a minha mulher somos os felizes donos do Moby, o cão com três patas, crescido, viçoso, que corre, sobe e desce escadas como qualquer outro. Um cão com três patas é um sobrevivente. A prova, de que a vida é difícil. E no entanto, por vezes, saltando para alcançar um biscoito ou correndo a brincar com outro cão, torna-se gracioso, como se uma quarta pata subitamente invisível aparecesse novamente. E faz-me lembrar, quando a vida parece afundar-se em problemas, que com esperança e alegria de viver todas as dificuldades se ultrapassam, e tudo se conquista.
2004-03-18

|à|espera|do|desastre|
Apesar de não se poder prever a ocorrência de um sismo, as suas consequências podem ser minimizadas. As acções preventivas podem e devem fazer-se a vários níveis, tanto no planeamento e construção urbanística, como ao nível da protecção civil e da sensibilização da população geral. Infelizmente, verificamos que em Portugal os erros se cometem em cima dos erros, silenciosamente satisfeitas as diversas entidades uma vez que “a lei é boa”.
2004-04-02

|vida|contemporânea|
Ontem parávamos na montra da loja de electrodomésticos para nos vermos aparecer naquela televisão com máquina de filmar ao lado. Amanhã teremos a cara espalhada por toda a parte sem ligar a isso.
2004-06-18

[esta terra mal amada – 2]
Richard Feynman termina esta história com duas evidências. Em primeiro lugar que o cientista, pela sua abordagem que parte de observar a realidade e os fenómenos concretos que aí se verificam, é aquele que dispõe da melhor metodologia com vista à resolução dos problemas. Em segundo lugar, outra evidência, que este cientista nunca ganhará as eleições.
2004-07-30

[alleswirdgut reloaded]

Terça-feira

Já aqui fiz em tempos referência ao trabalho de uma firma de arquitectos que admiro bastante, a AWG – AllesWirdGut Architektur.
Agora o seu site foi remodelado e merece bem uma visita. Estão também expostos alguns novos projectos. As apresentações são geralmente bastante completas, com imagens de modelo, levantamento fotográfico de obras em curso, fotos finais, textos (infelizmente são quase sempre em alemão) e por vezes pequenas animações. Fica feita a proposta.

[cidade sem carros e mobilidade sustentável]

Quinta-feira



A primeira iniciativa de Cidade Sem Carros (In Town Without My Car) ocorreu em França em 1998. O objectivo do evento era fechar parte das cidades ao trânsito automóvel e demonstrar que outras formas de mobilidade são possíveis. No ano 2000, a Comissão Europeia para o Ambiente decidiu promover a Cidade Sem Carros como uma iniciativa europeia.
Em 2002, a campanha para o dia sem carros transformou-se numa inteira semana de actividades dedicadas à Mobilidade Sustentável, um conceito que tem vindo a ganhar o interesse dos cidadãos europeus que estão cada vez mais sensibilizados para com os problemas ambientais.

O tema da Mobilidade Sustentável abrange as mais diversas áreas da nossa vida. Na verdade, os efeitos da mobilidade sentem-se a muitos níveis: da economia ao planeamento urbano, do ambiente à saúde, da educação aos hábitos culturais e sociais.
A crescente consciencialização dos cidadãos para com a necessidade de implementar formas de gestão sustentáveis e abrangentes ao problema dos transportes esteve na origem da realização do Livro Branco para os Transportes (The Transport White Paper – European transport policy for 2010: time to decide), adoptado pela Comissão Europeia a 12 de Setembro de 2001. Este documento procura apresentar um retrato realista da presente situação europeia e fornecer um plano de acção compreendendo medidas a tomar até 2010.

O ETP2010 começa por apontar como principal problema o crescimento desigual dos diversos modos de transporte. Estas desigualdades resultam das diferentes capacidades de adaptação desses modos às necessidades da economia moderna, mas junta-se a este o facto do preço dos transportes não reflectir todos os seus reais custos externos. Acresce ainda que algumas regulações sociais e de segurança não terão sido completamente respeitadas, notavelmente no que diz respeito ao transporte automóvel. Como consequência, o transporte rodoviário abrange hoje ao nível europeu 44% do mercado de transporte de mercadorias e 79% do mercado de transporte de passageiros. Os efeitos desta realidade são, compreensivelmente, a congestão das vias principais e das áreas urbanas e os efeitos da degradação do ambiente e saúde pública, para além do número elevado de acidentes na estrada e demais implicações humanas e financeiras.

Este é um tema fascinante e, como se vê, extremamente complexo. Os transportes urbanos estão hoje – e constantemente – sujeitos ao conflito entre a procura de mais mobilidade, por um lado, e as exigências de redução da congestão de tráfego e dos custos sociais que geram, por outro. Deste modo, a redução do problema no circuito mediático a um mero combate ao automóvel é, em si mesmo, redutora e perniciosa. Por outro lado, a mera veiculação de realidades de outros países europeus que não são minimamente conciliáveis com algumas das realidades nacionais (como a proclamação do ideal da bicicleta como meio de transporte alternativo na deslocação casa-trabalho), não é benéfica a transmitir o sentido de realismo fundamental para que as iniciativas a tomar se revistam de credibilidade perante o cidadão comum. Especialmente numa questão em que o sucesso depende, em grande parte, da adesão desse mesmo cidadão para com uma causa que o pode obrigar a alterar os seus hábitos e modos de vida.

O problema do automóvel é, assim, um caso particularmente importante e sensível. A percepção de dependência do automóvel que sentem os cidadãos faz com que estes não se sintam minimamente sensibilizados para com o dia da Cidade Sem Carros, não estando igualmente despertos para a divulgação dos objectivos da Mobilidade Sustentável.
É por isso fundamental aprender com a experiência europeia nesta matéria. São os nossos parceiros europeus que começam já a reflectir sobre novas preocupações, nomeadamente a necessidade de resolver o problema do automóvel dentro do sistema de transportes urbanos. Por outras palavras, isto significa que não basta eliminar o automóvel quando não existem estruturas complementares de transporte. Pelo contrário, só criando alternativas viáveis e plenamente funcionais de transporte urbano (boas redes de circulação pedonal, circuitos de bicicleta praticáveis, interfaces de ligação carro/transporte público, sistemas de transporte público eficazes e ecológicos, eliminação de barreiras arquitectónicas, entre outras iniciativas – e finalmente uma boa integração de todas elas) se encontrará a aceitação dos cidadãos para a criação de restrições ao automóvel.

Por outro lado não basta – como dita a experiência desses países – criar um bom sistema, é igualmente necessário consciencializar os cidadãos a adoptá-lo. Assim, o sucesso do desafio da mobilidade sustentável depende da capacidade de fazer o marketing positivo e educar as pessoas a optar por novos hábitos, na certeza de que o abandono do automóvel não seja um abandono da qualidade de vida, mas precisamente o contrário.

[rojkind arquitectos]

Quarta-feira

Uma proposta de visita ao México para conhecer o trabalho da firma Rojkind Arquitectos. Projectos na área da habitação, comércio, edifícios públicos e mais alguns concursos, tudo embrulhado numa bela apresentação.


Edifício Tlaxcala, conjunto habitacional na Cidade do México, México, 2004. Rojkind, arquitectos.

[concurso de ministros]

Terça-feira

Tem sido difícil regressar à blogosfera. Não é falta de assunto, antes pelo contrário. O último mês foi surpreendentemente rico em factos notáveis. Da odisseia naval do “Borndiep” ao agora malfadado concurso de colocação de professores, vão-se somando exemplos da confrangedora degradação da realidade nacional.
Na verdade, o que me arrasta neste regresso à disciplina da escrita é a sensação de voltar a ser sugado para o panorama das misérias politico-mediáticas, das quais estive abrigado durante algumas semanas. Existe algo de errado com este estado de coisas e o país está cada vez mais propício à crónica. Não me conformo com esta sensação de fatalidade, como se tudo tivesse de ser mesmo assim, como se o país tivesse atravessado um qualquer ponto de não retorno em direcção à mediocridade total.
Quem me conhece sabe que eu não sou extremista, mas neste momento sinto-me à espera de uma qualquer sublevação nacional. Depois de ouvir o primeiro ministro mais chique de Portugal a gritar na Assembleia que não existe alternativa ao seu governo resta-me partir por aí à procura de alguma revolução onde eu me possa inscrever.
No estado em que as coisas estão, talvez o ideal fosse mesmo fazer um concurso de colocação de ministros.

[porto côvo]

Terça-feira



Porto Côvo é um lugar onde a força do mar, a dureza das rochas e a vasta extensão do interior ainda preservado se unem para criar a rara beleza das coisas improváveis. Essa beleza, que vem das coisas que só a Natureza sabe criar com os seus lentos processos, permanece visível a todos os que por ali passam e é de esperar que resista por muitos mais anos. O mesmo já não se pode dizer da aldeia de pescadores que ali surgiu, encastrada no refúgio da baía e no topo do pequeno promontório.

No Verão de 1990, Rui Veloso regressou à velha aldeia para tocar um concerto único na praça principal. Tinha acabado de lançar “Mingos e os Samurais”, aquele que viria a ser um dos seus discos mais populares e mais vendidos de sempre. Foi um daqueles momentos em que tudo parecia encaixar no sítio certo, partilhado pelas centenas de pessoas que enchiam completamente a praça quadrada.
Naquela noite, o “pai do rock português” tocou por duas vezes a música que havia composto apenas quatro anos antes e que celebrizou o nome da aldeia para sempre.

Talvez nenhuma das pessoas que ali tenham estado, como eu aos dezassete anos, tenha imaginado o quanto Porto Côvo iria mudar nos dez anos seguintes. Transformada em atracção turística, a aldeia tornou-se alvo de uma procura intensa por visitantes nos meses do Verão, que viria a ser a alavanca para o inevitável crescimento urbanístico.

Existe um fino equilíbrio, tantas vezes violado, entre a necessidade de proteger a identidade de um sítio e a necessidade de promover as alterações que resultam da evolução do nosso modo de vida. O medo e a incapacidade de controlar essas transformações (tantas vezes por incompetência dos vários níveis da administração pública do território) conduzem facilmente à protecção fundamentalista das coisas do passado. Perante o medo de se “fazer mal” prefere-se sempre o “não fazer”. Assim se transformam cidades inteiras em parques temáticos de interpretações questionáveis da história (ou da sua “imagem”), em cidades fósseis ou espectaculares cidades mortas.
Este tipo de fundamentalismo certamente criticável nasce e aprofunda-se, no entanto, como reacção à falta de regras que permitem que o crescimento se torne numa força destruidora de todas as referências que constituem o património de um lugar. Como sempre, o equilíbrio é sempre o ponto mais difícil de atingir, oscilando-se entre a paralesia da vivência e a voragem destruidora da especulação.

Existem certamente exemplos mais drásticos para ilustrar estes problemas do que Porto Côvo. Ali, afinal, são ainda visíveis os traços da velha aldeia. Sentado numa das esplanadas da antiga praça pombalina é quase possível imaginar como seria a vida naquelas partes quando a parte nova não existia.
Não consigo, no entanto, deixar de rever ali numa pequena escala todos os erros que se vão fazendo em Portugal por falta de cultura urbanística, ou simples falta de cultura. É como se Porto Côvo, verdadeiramente, não tivesse crescido, mas uma outra coisa qualquer que ali se veio encostar. A velha lógica da rua/passeio/muro/casa multiplicada à exaustão até onde for possível, sem hierarquização de ruas, sem estrutura pedonal, sem espaços públicos, sem nada. Apenas casas e casas e mais casas que certamente renascem para a vida durante os meses de Verão para logo hibernarem durante o resto do ano como uma aldeia fantasma.
Depois vêm aquelas coisas que dão a volta à barriga de qualquer um. Lotes construídos em arruamentos por acabar, ainda em tout-venant e com as caixas de esgoto penduradas no ar. Eis o país em todo o seu esplendor. Ainda estou para descobrir como é possível constituir lotes e vendê-los, e depois construir-lhes casas, quando as obras de urbanização do próprio loteamento nunca chegaram a ser terminadas. E eis agora, dez anos depois, a câmara municipal a anunciar obra em cartazes porque finalmente alcatroou o parque de estacionamento, fez um jardim público e arranjou a frente da praia grande. Então vejamos, o loteador vende as casas sem acabar as ruas, e o estado vem depois a custo fazer tudo aquilo que devia ter resultado da viabilidade do próprio empreendimento.

O mal de Porto Côvo não foi afinal o interesse económico ou a necessidade de crescer, mas antes a ausência de regras de planeamento e de cultura urbanística. É que o “fazer mal” não é uma fatalidade do crescimento urbanístico; o “fazer mal” é resultado da ignorância e da falta de cultura, de que são responsáveis tanto o agente privado como o agente público. Também aqui a nossa pobreza não se faz de falta de meios mas da falta de saber. A nossa pobreza está nas pessoas.