Franjinhas culturais



Não subscrevo na íntegra o texto de Ricardo Carvalho, que a seguir transcrevo, apenas porque julgo que aos arquitectos cabe a obrigação de prestar contas do trabalho que fazem – um dever de accountability que, como referiu recentemente o Lutz Brückelmann, seria bom expandir-se também a outras áreas profissionais.
Dito isto, partilho da mesma inquietação perante um fenómeno de escândalo mediático, discutindo arquitectura com base em dois “renders”. Pior, quando a controvérsia é alimentada nos mesmos termos por colegas de profissão que exibem semelhante falta de conhecimento da matéria em causa. Eis a blogosfera e o culto do amador em todo o seu esplendor. Fazem-se teses comparativas com o «Franjinhas», depreciando um e reverenciando outro, esquecendo-se que o projecto de Teotónio Pereira foi à data merecedor de prelecções ainda mais ácidas - tão polémico, de facto, que o prémio Valmor não seria concedido durante os três anos seguintes à sua atribuição. A coisa, de resto, faz eco com a cultura dominante: que a arquitectura só parece ser notícia quando é tratada como se fosse um caso de polícia – veja-se, a título de exemplo, a polémica em torno do Mercado do Bolhão. Mas em Portugal parece ser mais fácil ficar-se famoso por se atar a uma árvore, do que por plantar mil.

Ironia ou uma petição que se enganou no objecto?
"Petição online - Largo do Rato - Crimes urbanísticos à solta em Portugal.” Aí está online uma petição contra a construção de um novo edifício de habitação entre a Sinagoga e o Largo do Rato em Lisboa. Sem conhecer o objecto de interesse destas pessoas, poderíamos pensar que se trata de um novo edifício de Seguros ou da Federação Portuguesa de Futebol, ou apenas de escritórios como esses que se constroem todos os anos e que são absorvidos pelo quotidiano sem direito a um qualquer blog. Porque é que este projecto de Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus teve honras de opinião de alguns vereadores e de centenas de bloggers?
Como arquitecto não posso deixar de pensar na possibilidade de os cidadãos participarem nos temas da sua cidade (bairro ou condomínio). Contudo, participar não pode significar manipular ou deixar-se manipular. Não será ingénuo supor que estamos todos preparados para discutir, para além do “gosto” ou “não gosto”, o conjunto de obras de arquitectura ou engenharia que todos os dias arrancam e que não são garante de uma transformação positiva? Não acontece, como todos sabemos. Não é possível nem desejável. É necessário delegar e responsabilizar quem tem essa tarefa.
E no Largo do Rato o que é que aconteceu? Um projecto aprovado pela Câmara Municipal que convoca outro tipo de relações urbanas que não habitualmente aquelas que (infelizmente) os lisboetas viram ser propostas por arquitectos e aprovadas pelos promotores. No projecto de Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus já não existe qualquer referência estilística ou forma reconhecível na tradição do pior pós-modernismo como acontece com os edifícios vizinhos. Por outro lado, não é anódino - essa não é uma qualidade em si, será apenas uma circunstância. A arquitectura não se discute aí. Discute-se nas qualidades de escala, tipológica e materiais, que em síntese produzem um significado cultural. Este significado será percebido nesta e numa geração futura como cultura mas também como “beleza”. A arquitectura é um conhecimento transmissível (que até é ensinado em algumas universidades) mas é cada vez mais difícil que possa acontecer e ser partilhado por todos. A ter que propor uma interpretação do projecto - e a sua defesa - diria que é um projecto que reequilibra o Largo do Rato que, como sabemos, já possui um magnífico edifício pétreo concluído em 1834 - a Mãe d’Água, da autoria do engenheiro-arquitecto pombalino Carlos Mardel. O projecto objecto da polémica possui essa mesma força compacta e trabalha com a densidade. A densidade é um dos temas da cidade histórica e, já o sabemos hoje, da cidade contemporânea. Mais do que protagonizar uma ruptura, o edifício permite uma leitura actual dessas permanências históricas. Essas permanências que vereadores e bloggers vêem ameaçadas e que no seu tempo de origem possuíam a mesma matriz e eventual radicalidade.
[Ricardo Carvalho, arquitecto, professor universitário e crítico de arquitectura do PÚBLICO]

3 comentários:

  1. Olá. Eu também li o referido artigo, mas não estou nada de acordo com a redução das possibilidades de apreciação da arquitectura (por parte dos "leigos") ao GOSTO ou NÃO GOSTO.

    Desde logo porque o gosto é uma sintese de análises variadas, que as pessoas fazem relativamente ao objecto dessa mesma análise. Niguém diz GOSTO ou NÃO GOSTO porque sim ou porque não.

    Depois o GOSTO deve ser completamente secundarizado nestas coisas. Eu pessoalmente gostomuitíssimo do Convento de Cristo, de Tomar. Mas não o colocaria no meio do Largo do Rato. Isto, porque, bem ou mal, com ou sem conhecimentos técnicos de arquitectura, tenho o bom senso e o mínimo de sensibilidade para perceber que o lugar também conta.

    Atenção: nem sequer tenho opinião formada sobre o problema do Largo do Rato. É apenas um exemplo.

    Pessoalmente, penso que o artigo do Público é bem a demonstração de uma certa cegueira por parte de alguns arquitectos face à comunidade e sobretudo aos lugares onde querem encaixar as suas obras, o seu legado.

    A arquitectura, como outras ARTES, não e um domínio exclusivo dos arquitectos. Penso que a arquitectura é um tema demasiado sério para ser deixado apenas aos arquitectos, e que são as pessoas que não os arquitectos que os fazem evoluir.

    Rui Silva
    Almada

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  2. Em primeiro lugar duas questões básicas:

    1ª - A Arquitectura, sobretudo quando em espaços públicos, é demasiado importante para ser deixada exclusivamente aos Arquitectos (aos quais, muitas vezes, falta mesmo quase tudo do resto desse tal "mundo" que alguém quer ensinar nas escolas...);

    2ª - A construção de um novo edifício no centro histórico de uma Cidade NÃO representa apenas uma questão de "arquitectura", tratando-se eminentemente de uma questão CULTURAL.


    Dito isto, porque me recuso a ter de ouvir um escritor para ter opinião sobre um livro, ou um realizador para formular a minha opinião sobre um filme (embora possa dar atenção aos críticos que pessoalmente admire), também não careço de opiniões "iluminadas" para poder "achar" o que entender sobre o assunto, pese embora às alexandras baptistas ou cecílias conceições, que manifestamente pretendem "doutrinar" as massas ignaras antes de lhes permitirem o dom da palavra livre (e sem apresentarem a anteriori as respectivas "declarações de interesses" neste assunto, claro...).


    Isto sem prejuízo, obviamente, de concordar plenamente com a maioria das opiniões aqui já manifestadas por alguns Arquitectos, que aliás pessoalmente desconheço.


    A Arquitectura é uma Arte, ou uma Técnica (como quiserem), mas nunca será necessário ser Arquitecto para a discutir. Era só o que nos faltava...


    Quanto à segunda questão, a minha opinião de simples Engenheiro Civil (de Urbanismo e Transportes) com vinte anos de PRÁTICA é de que, independente da apreciação do novo edifício previsto enquanto objecto arquitectónico em si (discussão quanto a mim algo estéril, ou de interesse meramente académico), ou mesmo enquanto objecto arquitectónico NAQUELE LUGAR, em que todas as opiniões serão à partida admissíveis ("gostos não se discutem", não é?), a questão magna que se deve colocar às autoridades que decidem o seu licenciamento, e que devem acima de tudo prosseguir uma política de DEFESA DO INTERESSE PÚBLICO, é a do IMPACTE URBANÍSTICO que aquele bloco de apartamentos vai provocar no Largo do Rato.


    Ao contrário dos que só usam os olhos para "ver" o fenómeno do Urbanismo, o referido impacte não se mede apenas em termos de visualização, ou seja, não constitui uma mera "questão decorativa".


    O impacte urbanístico GLOBAL está para o impacte visual (apenas um aspecto parcial, se bem que com a sua importância), como uma "maquete animada" (isto é, com um botãozinho que a "liga e desliga"!) está para uma "maquete" clássica, que apenas representaria fielmente a realidade, ainda que "à escala", se não existisse a dimensão temporal (são "maquetes" estáticas, quando a realidade é dinâmica, excepto porventura às 04:00 da madrugada na Noite de Natal...).


    Explicando melhor: o verdadeiro impacte urbanístico do previsto novo bloco de apartamentos naquele local da Cidade irá medir-se, muito mais do que pela compressão visual do Largo do Rato e sua envolvente, pelo aumento dos níveis de tráfego e de estacionamento que a sua ocupação e utilização irá gerar.


    Quer pelo volume da sua geração própria, que não deverá propriamente ser muito reduzido, quer sobretudo por estarmos perante uma zona já sobre-saturada no tocante a esses sistemas urbanos, pelo que a injecção de mais tráfego e estacionamento (sobretudo ILEGAL, em segunda fila, por exemplo) terá o efeito semelhante a deitar mais vinho tinto num copo já cheio sobre uma toalha branca!


    Numa intersecção viária fulcral da Cidade, onde se pede urgentemente menos pressão de tráfego e de estacionamento (e de ruído e de poluição atmosférica, etc. ...), injectar mais carga só pode ter como efeito a "toalha", que de "branco" já tem tão pouco, ficar cada vez mais e mais "ensopada"...


    LISBOA, CIDADE BRANCA, não era?


    Claro que vou assinar a petição.


    Ant.º das Neves Castanho.

    22 de Julho de 2008 16:39

    como resposta e retirado do blog "lesma morta"

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  3. Eu assinei a petição, contrariando uma tendência de me manter alheada dessas constantes solicitações para contestarmos tudo e todos.

    Desde logo, assinei porque o prédio (que nem bem posso gostar ou não, já que a imagem é pouco clara e o texto não elucida) é desnecessário e tapa o pouco verde que ainda se vê no Largo do Rato; porque mais do que construir blocos de apartamentos é urgente recuperar os que existem ao abandono (e eu moro no bairro dos prédios devolutos!); é preciso criar jardins e espaços para as pessoas, em vez de se atulharem os cantos e as esquinas com mais projectos assinados.

    Eu interesso-me por arquitectura e penso que as cidades só têm a ganhar com bons projectos, mas Lisboa precisa mais de recuperar os prédios que tem do que de fazer novos. Precisa de lavar a cara, arrancar os ares condicionados das paredes exteriores (e que pingam todo o Verão na cabeça de quem passa!), acabar de vez com as instalações eléctricas e das televisões a subir como trepadeiras pelos prédios, a entrar nas casas por buracos mal acabados. Lisboa precisa de árvores, porque no Verão há zonas onde se apanha uma insolação só de as atravessar; precisa de reduzir o número de faixas de rodagem nas principais avenidas e alargar os passeios para que as pessoas possam circular, andar a pé, respirar! Lisboa precisa de atenção e não de blocos de apartamentos, e menos ainda numa altura em que se lê "Vendo" em quase todas as janelas da cidade!

    Eu assinei esta petição e vou assinar todas as que contrariarem aquilo que é preciso fazer pela cidade: torná-la um lugar onde as pessoas possam viver fora das suas casas.

    Maria S

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