A imagem tradicional do arquitecto radical é a de um jovem zangado rebeliando-se contra o sistema. A avant-garde define-se mais por aquilo que é contra do que pelo que é a favor. Isto conduz a uma sucessão de contradições edipianas em que cada geração diz o oposto daquela que a antecedeu. E se a tua agenda está dependente de ser o adverso de outra pessoa, então não és mais que um seguidor – ao contrário. (…)
[Bjarke Ingels (BIG), Manifesto #30 via Iconeye]
Confesso. Eu comprei a tese do Bjarke Ingels na primeira vez que a ouvi. Como “ser contra” pode ser um padrão cultural adquirido. Como o radicalismo pode não passar de uma forma de seguidismo intelectual. Nada mais, de facto, do que a expressão dissimulada do conservadorismo contra aquilo que é realmente desafiador.
Quanto mais penso nisso mais lhe reconheço razão. Que toda a estrutura do nosso pensamento intelectual parece estar construída sobre “ser contra” qualquer coisa. Ser radical vende; como se irreverência fosse equivalente a presunção de má fé para com tudo o que nos rodeia.
De vez em quando dou por mim a defender o projecto que todos odeiam. É uma patologia minha, reconheço. Mas não gosto de grandes certezas óbvias. Prefiro as minhas dúvidas.
Por várias razões – porque não faço deste espaço o repositório de prelecções assassinas, de peticionarismos, de bota-abaixo, de clamores contra tudo o que nos cerca porque todos sem excepção são “corruptos e vendidos e tristes” – vou merecendo epítetos de vendido ao sistema. O sistema, verifico-o muitas vezes, são pessoas que trabalham sete dias por semana com dedicação e pesadas contrapartidas pessoais. Mas eu, ao que parece, porque me movo mais pelo que dou valor do que por aquilo a que não reconheço mérito, vendi-me a “eles”.
Segundo esta blogosfera sou também um monstro censurador. Pela simples razão de achar que uma caixa de comentários não é um convite para a inanidade mental. Por considerar que a argumentação crítica não é incompatível com um mínimo de civilidade. Que a convicção de superioridade de argumento não legitima que se presuma do lado oposto a nulidade intelectual ou mesmo moral.
Se escrevo algumas linhas a propósito do projecto de Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus, é motivado mais pela recusa de adesão ao panfletarismo do que pela aclamação daquele objecto. E, no entanto, aquele objecto devia, no mínimo, intrigar-nos. Acusam-no de ser a edificação pura dos mais elevados índices de construção. Talvez. Mas isso é o que resulta de grande parte das comissões de arquitectura – por cá, tanto de arquitectos como por não arquitectos. Em projectos irrelevantes, não-arquitecturas, modernidades de segunda ou pastiches fantasiados de “tipologia envolvente”, que a poucos desperta pulsões peticionárias.
Então: porquê este? O que é que incomoda ali, realmente?
O “sítio”! Sem dúvida. Não tanto a verdade do sítio – um quarteirão de remate indefinido, uma sequência de empenas acotoveladas, uma ausência de leitura de frente urbana. Mas uma ideia de sítio – a Lisboa histórica – e a preconceitualização do que nela pode ou não suceder.
A proposta de Valsassina e Aires Mateus pressupõe a volumetrização dura daquele fecho de quarteirão. O alinhamento de fachada mantém-se e sobre ele se define uma escavação que abre o térreo à rua. E assim resulta a ascensão daquela massa pesada – o edifício que se eleva para receber a frente pública – gesto praticamente imperceptível naquele infeliz “render” frontal.
Compreendo e aprecio aquela suspensão volumétrica, mais observável na vista da maquete e no corte longitudinal (ver abaixo). Mas tenho a minha distância para com a dureza impermeável daquela construção – não na sua materialização formal, bastante bela por sinal – mas no seu significado urbano. E aqui refiro-me a muita da arquitectura contemporânea que hoje incide exactamente nessa dimensão da densidade urbana – debruçando-se sobre o exercício de permeabilidades que abrem a possibilidade infinita de apropriação do lugar privado pelo público – tornando o sítio da arquitectura em parte do lugar da cidade. Exercícios – como muita da arquitectura contemporânea norte-Europeia, como Bjarke Ingels que acima referi, por exemplo – que são o oposto da urbanidade portuguesa estabelecida, de fronteiras duras entre o privado e o público.
E aqui estamos já a discutir algo que extravasa o projecto do Rato mas de que ele pode servir de ponto de partida, porque são as nossas tipologias urbanas depositárias de uma matriz cultural que promove a opacidade entre público e privado. E neste edifício talvez possamos começar por questionar isso mesmo; que é uma arquitectura pouco generosa. Mas que vem na matriz desse fazer cultural, do nosso erguer de muros entre o que é o meu espaço e o território de todos. Nesse sentido, nada ali é uma verdadeira ruptura. E assim, talvez encontremos alguma pertinência no que escreveu Ricardo Carvalho no Público. Que o que choca é o gosto: “aquilo é feio, uma monstruosidade, um mamarracho”! Ou seja, entramos no mínimo denominador comum de uma discussão de arquitectura.
O que nos deve intrigar ali, proponho eu, é uma tradução arquitectónica do jurídico e do económico, do fazer cidade através de objectos cuja textura deve ser eminentemente urbana. Que valores defende a arquitectura e o urbanismo inscritos em norma legal, em conceito económico, produto directo da nossa cultura, da nossa portugalidade. Que valores nos movem; como questionamos esta cisão entre os domínios público e privado que são expressão de uma carência do lugar da comunidade, enquanto conceito cultural que deveria estar na base de tudo o que é uma cidade, que é exactamente onde a comunidade devia acontecer.
E se quisermos de facto falar disto, então temos de defender o espaço público das ideias – seja nos blogs ou na arquitectura – não com peticionarismos, com reducionismos morais. Mas com a abertura bastante para compreendermos esta nossa natureza e o que nela queremos transformar. E dispormo-nos a ouvir, verdadeiramente, os outros.
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Também já dei por mim a defender este projecto não por empatia pelos renders e cortes que correm por aí mas porque tudo sempre esbraceja e desata a gritar quando algo "moderno" se decide construir na cidade. Dizem-me que há muito espaço nas zonas novas da cidade para os devaneios dos arquitectos como se fossemos um bando de arruaceiros que devam ser empurrados para os subúrbios.
ResponderEliminarInfelizmente perco toda a razão da minha luta pela arquitectura na cidade quando os exemplos que se vêem a ser construídos não acrescentam nada à cidade, antes removem (ex: descaracterização da av. liberdade ou avenidas novas).
Acho que este projecto está a ser agarrado como bandeira pelos que assistem à destruição que se vai fazendo por Lisboa em nome do "progresso".
O trabalho do arquitecto está complicado hoje em dia com as pressões dos promotores, inúmeros regulamentos e decretos-lei. Quantos projectos não vi já eu com o pé-direito mínimo de 2,40 apenas porque é o mínimo legal e assim constrói-se mais pisos e vendem-se mais casas, sem ter em conta questões de bem-estar ou conforto?
Não quero com isto desculpar os arquitectos e concordo quando dizes que sim, deviam (devíamos...) prestar contas de soluções de projecto.
Concordo com as posições expressas no texto. E, muito embora com grande apreço pelos dois arquitectos, também tenho a sensação que a volumetria e o carácter monolítico do edifício podem resultar excessivos.
ResponderEliminarO Largo do Rato há muito que não é "carne nem peixe". Aqueles que contestam este projecto, adeptos da preservação do património edificado, parecem pouco incomodados com a inexistência ali de um verdadeiro Largo, no sentido urbanístico e histórico, pouco incomodados com os desnivelamentos e muros feitos em cedência para com a praga automóvel. Será que este novo edifício não contribui para dar mais "coerência" ao local?
Estranhamente, os mimetismos e os maus edifícios, e há tanto disso em Portugal, nunca são alvo de polémica pública e abaixo-assinados. O que parece incomodar mesmo é a ousadia das propostas mais qualificadas, uma espécie de resistência ao convívio com o futuro.
[Roteia]
Eu também sou mais de falar do que gosto do que do que não gosto e, em geral, quando vai muita gente para um lado começo a questionar-me se não será interessante explorar o outro.
ResponderEliminarEm Portugal gasta-se infinitamente mais energia a dizer mal das coisas que não se apreciam do que a louvar aquelas que se apreciam.
Para se dizer bem de alguma coisa tem que se estar bem consigo próprio e isso é o que muito boa gente não está.
Tiro-te o meu chapéu por este texto.
Um abraço.
Não concordo em nada com o que escreve nem com a filosofia geral do seu blog. Não concordar ou estar contra, ao contrário do que diz, é um dos grandes défices da cultura presente em que devemos ser "proactivos" ou vestir de azul.
ResponderEliminarPara começar devo dizer que sou do norte e desconheço copletamente o local, por isso uma qualquer opinião sobre o projecto em si peca necessariamente por isso.
ResponderEliminarApenas queria acrescentar uma questão que levantas no teu texto. O edifício levanta-se, deixando o espaço público "entrar". Como dizes e bem, isso é perceptível no corte e na maquete, mas aparentemente nem se nota na fotomontagem.
Li algures que essa fotomontagem tinha saído num jornal diário. Levanto aqui a questão de se saber por quem foi feita, se pela dupla de arquitectos, se por algum outro interesse.
Todos sabemos que o que muitos vêm são esses "bonecos"...
Ricardo,
ResponderEliminarAs imagens que publiquei acima foram extraídas da net mas, segundo creio, fazem parte da documentação oficial. Existe ainda uma vista lateral que pode ser encontrada na página web do Frederico Valsassina - ou através de uma simples pesquisa no Google. A fotomontagem a que te referes será uma versão publicada no semanário Expresso, acessível num artigo do Cidadania LX e que servia uma apresentação em jeito de antes-e-depois.
Anónimo(a)
Por vezes sinto que o que vejo na blogosfera me fará rebentar um fusível. Depois leio textos como este Pensar dentro da caixa, no Blogoexisto, e relembro-me que não posso levar isto tão a sério.
Leiam o último parágrafo da entrevista ao Manuel Salgado na última página do Diário de Notícias" de 2008.08.04.
ResponderEliminar"Claro que tem saudades de fazer projectos. E está com ganas para um em concreto: Tornar o Largo do Rato, "onde está tudo errado", num lugar aprazível que já foi"."